segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Recuos, tropeços, direitos, LGBT, política




Foi mal. Um tropeço e um recuo.
Não por ter implicado uma revisão, um ajuste tático ou doutrinário, que são inerentes à política não principista. Mas pelo modo como foi tomada a decisão. Pelo timing. Pelo efeito que produziu e pela imagem que criou.
Saíram do texto o compromisso de apoiar propostas em defesa do casamento civil e igualitário, o compromisso de desenvolver material didático para conscientizar sobre a diversidade de orientação sexual e as novas formas de família e o apoio à PLC 122, que tramita há anos no Congresso e equipara o crime de homofobia ao racismo. Reiterou-se, assim, a posição da presidente Dilma que, em 2011, pressionada pela bancada evangélica no Congresso, interrompeu a distribuição de material didático para combater a intolerância nas escolas e afastou seu governo da discussão do tema da orientação sexual.
Apesar do recuo, o plano de Marina Silva continua afinado com demandas igualitárias. Deixa aberta uma estrada para os que querem lutar para fazer avançar a agenda dos direitos.
Na nova redação, propõe-se a garantir os direitos oriundos da união civil homoafetiva; a implementar, assim que aprovado no Congresso, o Projeto de Lei da Identidade de Gênero Brasileira –a Lei João Nery – que regulamenta o direito ao reconhecimento da identidade de gênero das "pessoas trans", com base no modo como se sentem e veem; a dar tratamento igual aos casais adotantes, com todas as exigências e cuidados iguais para ambas as modalidades de união, homo ou heterossexual; a normatizar e especificar o conceito de homofobia no âmbito da administração pública e criar mecanismos para aferir os crimes de natureza homofóbica; a incluir o combate ao bullying, à homofobia e ao preconceito no Plano Nacional de Educação; a garantir e ampliar  a oferta de tratamentos e serviços de saúde para que atendam as necessidades especiais da população LGBT no SUS; a considerar as proposições do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT na elaboração de políticas públicas específicas para populações LGBT.
Pode ser pouco, para os que querem tudo. Podem ser somente palavras. Mas há um compromisso publicamente assumido.
Explicações e justificativas para a retificação foram dadas. Não convencem. “Falha processual de editoração” é certamente a pior delas, até por ser inadmissível em quem deseja governar. Não se falou em redistribuição de ênfases ou em inadequação, mas teria sido possível. Também não convenceria. A mídia e os adversários ganharam uma prenda na bandeja, deitaram e rolaram nas redes sociais, vendo no fato a prova final do reacionarismo visceral da candidata, de sua inflexão claramente obscurantista que impulsionaria uma “onda conservadora” que levaria o país às trevas medievais. Palavras também.
O recuo se deveu ao medo de perder votos de evangélicos. Pastores e igrejas ameaçaram. Puseram pressão. Conseguiram algo. Foi mais jogo de cena, destinado a dar a impressão de que têm ascendência sobre a candidata. Algumas pessoas chegaram mesmo a ver no fato a prova de que o Estado laico estaria ameaçado.
Mas desde quando evangélico vota em evangélico? Fosse assim o pastor candidato já teria inflado meses atrás. O mundo evangélico é vasto e diversificado, assim como o mundo operário, o da classe média e o dos subalternos. Os alinhamentos não são automáticos, passam por muitos desníveis e articulações. Se a maior parte do eleitorado de um candidato estivesse entre os pastores e seus seguidores, esse candidato teria poucas chances de vencer.
Seja como for, foi uma demonstração de que cabeças batem onde não deveriam bater. Uma leitura engajada poderia dizer: foi um tropeço numa caminhada que tem questões mais sérias para enfrentar. Pode até ser, mas deveria ter sido evitado.
A temática dos direitos civis – da igualdade de gêneros, raças e etnias, da liberdade de crença, das opções sexuais, do combate à homofobia – integra o panteão das grandes conquistas civilizatórias. O século XXI nasceu impulsionado por esses direitos, não se dissociará deles. Partidos, movimentos e pessoas que se querem integrantes da esquerda democrática não podem se omitir nessa questão. Estão por definição comprometidos com ela.
Pode-se dizer que o tema não é matéria do Executivo, que o Presidente cumpre leis e diretrizes fixadas no Legislativo e pelo debate público democrático. Talvez nem deva constar de programas de governo. Marina o incluiu no dela, os demais, nem isso. Os que fazem política “para ganhar” não se manifestam. Preferem denunciar os recuos e as dificuldades dos que o fazem. Temem perder apoios não só entre os evangélicos, mas sobretudo entre vastas camadas da população.
Deste ponto de vista, uma leitura menos passional dos textos das diversas candidaturas reconhecerá que nenhuma delas trata da temática LGBT melhor que o de Marina. O capítulo sobre cidadania e identidades – que fixa diretrizes referentes aos direitos humanos, aos jovens, às mulheres, às pessoas com deficiência, às comunidades tradicionais e quilombolas, à população negra, aos idosos, aos movimentos sociais e populares, ao sindicalismo – é claro, detalhado e progressista. Pode ser que não consiga ser cumprido, mas é um passo importante.
Casamento entre homossexuais, direitos amplos e combate à homofobia são temas sobre os quais devem existir leis, mas são acima de tudo questões que precisam ser ampla e abertamente discutidas. Deve ser motivo de aplauso quando algum candidato toca nelas.
Manifestações de conservadorismo da sociedade, assim como interferências religiosas e artimanhas políticas, devem ser levadas em conta, mas não de modo passivo, conformista. Devem ser enfrentadas. Podem ser diluídas com a ajuda de ações governamentais e políticas públicas corajosas e do efeito-demonstração das declarações de suas lideranças políticas.
O trabalho de diluição do conservadorismo é mais cultural que político. Cabe mais à sociedade civil que ao Estado. É um componente da luta de ideias e da luta político. Uma questão que requer esforço concentrado e distribuído no tempo. Depende dramaticamente da ação de partidos, organizações, militantes, professores, escolas, intelectuais, mais do que de políticos profissionais. Mas um Estado laico, ético e democrático, com os governos e os aparatos que nele se baseiam, não pode ficar à margem.
Quem não tem ousadia suficiente para abraçar a causa, deve procurar não atrapalhar. Não deve dar sinalizações contraditórias que só servem para irritar e confundir. Cumprirá um importante papel se simplesmente deixar a sociedade respirar, fomentando o debate e ajudando a arejar corações e mentes.
Assim também com os que querem avançar de uma só vez, sem passos atrás e sem concessões, sem fazer política ou considerar a dinâmica do poder. A emoção e a passionalidade ajudam pouco, pois se se trata de luta política, então se trata mais de empenho prático que de afirmação de princípios.
A perda de confiança na política – escrevi no livro Em Defesa da Política – “prolonga, ao invés de encurtar, a situação de miséria e injustiça em que vivemos, pois deixa aberta uma única porta para a transformação social -- a porta da violência e do confronto --, fechando a passagem principal, a das mudanças progressivas decorrentes de lutas e pressões diuturnas, fundadas na mobilização de massas organizadas e habilitadas para negociar, impor e garantir conquistas”.
Isso tem a ver com democracia, que sempre implica “um jogo de poderes e contra-poderes: sua natureza é dada pela intervenção deliberada de sujeitos organizados. Trata-se de uma construção, que depende de correlação de forças, de capacidades organizacionais, técnicas, políticas e intelectuais, e que não vive fora do conflito, do confronto constante entre as partes e os poderes. Toda democracia é forma (instituições, regras) e movimento, silêncio e ruído. Em seu coração, pulsa uma aposta: a de que é possível mudar o modo de vida e de decisão, deslocar hegemonias e fundar novos pactos”.

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