domingo, 23 de dezembro de 2012

Tempos de justiça e corrupção

Exceção feita às eleições municipais, cuja importância foi enorme, o ano político de 2012 termina sob o signo da corrupção e da busca de justiça e de equilíbrio entre os poderes da República.
De Carlos Cachoeira a Rosemary Noronha, passando pelo julgamento do mensalão e chegando às denúncias de Marcos Valério, tivemos um eixo. Uma nova fase pareceu despontar na vida nacional. O protagonismo e o prestígio de que o STF passou a desfrutar emergem como fato novo, que ainda terá de ser bem compreendido, até para se ver em que medida implica o rebaixamento dos outros poderes.
O fio que liga os crimes – de uma forma ou de outra associados a formação de quadrilha, tráfico de influência, corrupção ativa e peculato – é o mesmo que une negócios e política, ou seja, que mostra a invasão da política pelo mercado e pelo dinheiro. Seu ponto de partida, no Brasil recente, desponta na votação da emenda da reeleição de FHC e nas privatizações dos anos 90 e encorpa com o caso Waldomiro Diniz (março de 2004), assessor da Casa Civil da Presidência flagrado recebendo propina. Passa pelo mensalão, pelas denúncias de compra de dossiês falsos contra políticos, pelas relações de Cachoeira com políticos de vários partidos e culmina no caso Rose. Fica dramaticamente reforçado com as declarações de Valério comprometendo Lula no mensalão.
É inevitável que bombas desse tipo estourem no colo do PT. O partido tornou-se a bola da vez, o adversário a ser batido. Cresceu, paradoxalmente, durante os anos em que mais se sabe de casos de corrupção. Elegeu e reelegeu Lula, elegeu Dilma, ganhou eleições em estados e municípios antes inacessíveis, tornou-se uma potência política, caminhando como se nada o atingisse ou prejudicasse. Suas cúpulas insistem em associar as denúncias de corrupção a um plano sórdido da direita, da mídia e da “Justiça conservadora” para desconstruir o PT, desestabilizar seus governos e ocultar suas conquistas. Não percebem que o argumento é ruim, insistem em não reconhecer erros e escolhas equivocadas, prolongando a percepção de que o partido naturaliza a corrupção.
O poder é, em si mesmo, possibilidade e armadilha. Concede aos que dele se aproximam múltiplas vantagens, mas também abre as portas para a tentação, os falsos amigos, as negociatas. Os poderosos muitas vezes se embriagam com os trunfos de que passam a dispor: nomear, indicar, pedir e decidir tornam-se verbos que se confundem no seu léxico e que os fazem, com frequência, meter os pés pelas mãos.
O poder não é imune ao tempo. Tende a se desgastar com o andar do relógio. O poderoso se entedia e passa a ser atraído ou pela inércia ou pela disposição ao risco. O tempo do poder também acompanha o tempo social, precisa decifrá-lo e se ajustar a ele. Hoje, nesse tempo de redes, conectividade, informações livres e reflexividade em que vivemos, o poder não consegue mais fazer o que fazia antes. O sistema político-administrativo copia a estrutura em rede da vida, vendo crescer focos de competição dispostos horizontalmente. O poder precisa negociar, ouvir e dialogar mais, lidar com obstáculos e desafios constantes. Está mais exposto, tem menos aura e opera muitas vezes rés ao chão, enfiando-se em arapucas “mequetrefes”. Pode cair em descontrole agudo.
Controles rigorosos não combinam com redes e conectividade. Nomear um assessor pode ser o primeiro passo para o inferno: subordinados tendem a se tornar pequenos reis e rainhas de pequenos feudos, nichos de onde operam e corrompem. O caso Rose é emblemático. Beneficiada pelo vínculo pessoal que manteve por anos com Lula e outros poderosos, ela viabilizou um esquema nas barbas do poder. O esquema ganhou vida própria, envolvendo os que o patrocinaram e dele se beneficiaram.
Não se trata de relativizar nem muito menos de diminuir a responsabilidade dos dirigentes. Ninguém chega ao comando de um escritório regional da Presidência sem o devido apoio superior. Mas é preciso dar a cada um a sua parcela de culpa. Não é plausível analiticamente (embora funcione como agitação) que se estabeleçam a priori linhas de comando trabalhando em prol da corrupção, como se determinados partidos ou políticos fossem especializados na prática de crimes. Há mais afã desbragado pelo aproveitamento das oportunidades de poder e muito mais aparelhamento de agências e órgãos estatais – um aparelhamento que, à diferença do tradicional, pode até mesmo receber verniz ideológico, “anticapitalista”. Cada época tem seu tipo particular de corrupto, e o de hoje parece ser o “facilitador”.
Nas décadas recentes, muitas pessoas desejosas de ascensão social, emprego e prestígio foram projetadas em postos-chave do Estado, enredando-se em esquemas e maracutaias. Seus padrinhos conhecem as regras do jogo, não podem ser isentados de culpa. Não há mais “idealistas” no âmbito público e estatal. Também não há como contar com os mecanismos de controle da burocracia, cujas normas e cujo ethos jamais prevaleceram impávidos entre nós. Com isso, as oportunidades de aparelhamento aumentaram sensivelmente. As correias de transmissão entre Estado, partidos e particulares ficaram descontroladas.
Precisaremos de tempo e determinação para que os atores entendam a nova estrutura da vida e domem os sistemas. Mas quanto antes começarmos a nos mexer em sentido reformador, melhor. Muito pode ser feito a partir da organização da indignação e dos desejos de se ter um país mais decente. Se aqueles que se mostram aguerridos no combate aos escândalos de hoje capricharem na mira, poderão funcionar como um polo de ativismo ético-político que ajudará a que se processem os escândalos que ainda virão, reduzindo paulatinamente sua potência.
Bom 2013 para todos. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/12/2012, p. A2].

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Niemeyer, o comunismo e a arquitetura

Desenho de Oscar Niemeyer

Oscar Niemeyer foi um grande arquiteto. Fiel à essência da arquitetura, foi também um humanista e um intelectual permanentemente atento à vida e às condições dos setores mais pobres e excluídos. Comunista, militante do PCB, foi uma pessoa grandiosa. Cultuou o moderno sem se descolar das raízes nacionais, emprestando à arquitetura uma irreverência que ganhou mundo.

Seu grande legado foi a arquitetura. O que ele fez com sua criatividade, com sua prancheta, projetou a arquitetura brasileira no mundo. Ajudou a embelezar a vida e as cidades. Junto com outros gênios como Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha, que seguiram trajetórias parecidas, ajudou a consolidar a arquitetura como uma arte e uma técnica a serviço do homem.

Sua morte em dezembro de 2012, aos 104, anos enseja muitas reflexões.

Como costuma fazer habitualmente, Reinaldo Azevedo foi contra a corrente e desancou Oscar Niemeyer em seu blog, reproduzindo artigo que escreveu quando o arquiteto fez 99 anos. Antes da republicação, fez um comentário eloquente: "Morreu o arquiteto Oscar Niemeyer, aos 104 anos. Pensava e escrevia coisas detestáveis. Dele se pode dizer o que disse Millôr Fernandes sobre um colega seu de Pasquim: “Metade é gênio, e metade é idiota”.

Muita gente concorda com isso e várias pessoas manifestaram-se em tons parecidos com o de Azevedo. Acham que Niemeyer precisa ser criticado porque era comunista dos brabos, ou pelo menos deveriam todos se lembrar disso para "colocá-lo em seu devido lugar". Se o cara pensava mal, parte de sua obra deve ter sido contaminada, parecem querer dizer, e alguns dizem mesmo.

Os anticomunistas militantes, o pessoal mais à direita, que gosta de se apresentar como "conservador", formam a parte mais ativa dessa linha de avaliação. Invariavelmente, baixam o nível, pois sua forma de fazer crítica política, estética ou ideológica jamais faz concessões ao bom gosto, à educação ou ao refinamento. Outros, mais liberais, criticam o stalinismo de Niemeyer, que o teria feito tomar posições equivocadas e falar besteira demais, ainda que isso não sirva para desmerecer sua obra. Entre uns e outros, flutua Reinando Azevedo: "A estupidez política de Niemeyer, que defendia regimes homicidas, não condena a sua obra. Mas a sua obra também não absolve a sua estupidez política".

É uma discussão antiga e interminável essa. Cultura e política. Poderia um reacionário escrever coisas da perspectiva generosa do homem, algo libertário ou que mostrasse a verdadeira face da vida? Alguns filósofos marxistas, como Lukács, responderam firmemente que sim, chamando isso de "vitória do realismo".

Os que criticam o comunismo de Niemeyer deveriam proceder do mesmo jeito quando analisassem sua obra de arquiteto.

Da minha parte, mantenho tranquilamente a opinião de que Niemeyer teve extraordinária importância na cultura brasileira e na arquitetura mundial. Mas gostaria de acrescentar o seguinte.

Oscar era mesmo meio stalinista. Um homem do seu tempo, que abraçou o comunismo como um credo e o praticou de forma inflexível, agarrado às suas convicções e sem arredar pé um centímetro delas. Foi pouco dialético, pouco arejado. Não o conheci pessoalmente, mas acompanhei suas relações com o PCB durante os anos em que atuei no partido e mesmo depois. Oscar jamais foi um renovador no âmbito partidário ou do marxismo, nunca aceitou a ideia de democracia como valor universal, sempre pensou que a revolução viria por uma explosão dos indignados e famélicos do mundo. Acho que não entendeu as transformações que ocorreram no capitalismo e no mundo moderno. Poderia ser criticado por isso, se fosse o caso.

Mas não é o caso, pois Oscar jamais foi um político e muito menos um formulador político. Tomou posições políticas muitas vezes de forma ingênua, passional, fiel a suas convicções ou obediente às diretrizes partidárias. Não deveria, portanto, ser criticado naquilo que julgam ser seu "pensamento político", que nunca foi por ele formulado, explicitado ou esclarecido. Ele atuou, digamos assim, como um pensador passivo, um repetidor. Na arquitetura, porém, foi um criador, e aí está o seu legado.

É isso, simples assim. Fazer um auê a esse respeito agora que o cara morreu é tão primitivo e equivocado quando acender velas para ele e tratá-lo como um santo ou alguém a ser canonizado. E não ajuda em nada a que se compreenda melhor seu papel e especialmente o significado de sua arquitetura.

domingo, 25 de novembro de 2012

Violência e distensão


Passado quase um mês do segundo turno das eleições que consagraram Fernando Haddad como futuro prefeito de São Paulo, daria até para dizer que a cidade experimenta um bem-vindo clima de distensão política, após os confrontos eleitorais de que ninguém mais quer lembrar, tão ruins foram.

Daria mesmo, não fosse a violência. Ao crescer dramaticamente de intensidade, ela vem produzindo mortes em cascata, quase sempre sob a forma de execuções sumárias de autoria desconhecida. Homens encapuzados, que surgem das sombras, mas não só. Medo e pânico nas famílias, sobretudo nas periferias urbanas. É uma situação que faz a cidade ficar meio à deriva e põe em xeque a política de segurança seguida pelos governos estaduais nos últimos anos, evidenciando a ineficiência dos métodos repressivos por ela recomendados e em nome dela praticados.

Embora anunciada há tempo pelos estudiosos da área, a situação ainda não passou para o plano propriamente político, no qual deverá ser avaliada com outros critérios. Os paulistanos – mas não somente eles – estão à espera de explicações, além evidentemente de medidas que desarmem a bomba em que parecem viver. Querem saber, por exemplo, porque a polícia paulista é tão temida e mal vista quanto o PCC, a ponto de ser percebida como tão responsável quanto os criminosos pela violência que saiu do controle. A sucessão de revides, chacinas, vinganças e extermínios expõe a céu aberto a falta que faz uma visão clara de polícia, de política de segurança e de gestão democrática da segurança pública. Políticas de segurança movidas a tiros, como se se estivesse numa “guerra não declarada” permanente, são a estrada mais curta para o fracasso. Todos perdem com elas, a começar dos mais frágeis. Por respeito a seus cidadãos e a seus policiais, vitimados igualmente pelo fracasso que se prolonga, São Paulo merece coisa melhor.

A opinião pública também quer saber por que é que somente agora um ministro de Estado – José Eduardo Cardoso, da Justiça – resolveu denunciar a situação calamitosa e indigna dos cárceres brasileiros, verdadeiras usinas de degradação e alimento poderoso para a violência. Virá de sua denúncia oportuna alguma medida concreta que modifique a situação, modernize e humanize as prisões do país?

As três instâncias federativas – união, estados e municípios – estão envolvidas até a medula com o tema. São corresponsáveis pela situação a que se chegou. O mais correto, portanto, o mais criterioso e o mais democrático, é que arregacem as mangas, deem-se as mãos e cooperem entre si. Efetivamente, em termos práticos, não de modo retórico e protocolar.

Seria trágico, por exemplo, se disputas partidárias e cálculos eleitorais terminassem por se interpor entre governantes do PT e do PSDB e complicassem o tratamento cooperativo e solidário do problema.

Por isso, não há como deixar de saudar o clima de distensão política das últimas semanas. É um novo ponto de partida. Ele não implica, nem significa, o cancelamento das diferenças e dos conflitos interpartidários, até porque, com a derrota do PSDB na cidade que era sua menina dos olhos, o partido terá de afiar as armas da crítica para tentar voltar a crescer. É de se esperar que deixe de lado o estilo belicoso e adjetivado (improdutivo em termos de imagem e de sedução da cidadania) e adote a contundência analítica, que certamente será ouvida pela população e recebida com atenção pelo PT. Com mais adjetivos que substantivos, olhando mais para trás que para frente, nada acontecerá de positivo para o partido.

Da parte do PT, e especialmente do prefeito Fernando Haddad, o momento já não é mais de júbilo e comemoração da vitória, mas de início de um trabalho de construção que justifique os votos obtidos. Aqui também pouca serventia terá a retórica inflamada, o discurso da confrontação e da destruição dos adversários, como se fossem inimigos. Trata-se muito mais de ponderar, agregar, congregar, ainda que sem abrir mão da identidade e das pretensões. 

Fernando Haddad tem talento para empreender esse movimento. Flutua com bastante independência dentro do PT. Parece sinceramente determinado a fazer um governo que contribua para por em novas bases o relacionamento entre os políticos, com suas siglas, e entre os políticos, os governantes e a população. Mostrou suas cartas logo depois de fechadas as urnas, quando, em entrevista ao Estado de S. Paulo (31/10/2012), pediu que se levasse em consideração seu passado, que é um “testemunho da minha disposição para construir consensos em torno de propostas que atendam ao interesse público”. Com a frase, quis valorizar sua trajetória, mas também estabeleceu um princípio de conduta, reforçado com a declaração de que “gestos de distensão” “são importantes para mostrar que divergências são discutidas durante a campanha”.

Deu um recado para fora – para o mundo político – e para dentro, para seu partido, que ainda tem integrantes que permanecem “em campanha”, dispostos a aproveitar a onda para esmagar seus adversários e “inimigos”. Para ambos, o novo prefeito enfatizou que o seu será um “governo de coalizão”, mas que não fará “toma lá dá cá” e resistirá com firmeza e serenidade ao assédio e à pressão desenfreada por cargos. Não loteará seu secretariado. O norte a ser seguido será o plano de governo aprovado nas urnas. Nas primeiras nomeações que fez, de alto teor técnico, foi o que se viu.

Da Prefeitura da maior cidade do país pode despontar uma perspectiva animadora. Se ela se confirmar, e for complementada com iniciativas semelhantes das demais instâncias da federação e do conjunto dos partidos democráticos, contribuirá sobremaneira para que se estabilize outra plataforma de relacionamento intergovernamental no país, com a qual problemas gravíssimos como o da segurança pública e da violência poderão ser muito mais bem equacionados. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 24/11/2012, p. A2].
 

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Uma fala no Encontro Virtual Latino-americano


Tive o prazer de participar do II Encuentro Virtual Latino-americano promovido pela Fundación Claritas de Buenos Aires entre 29 de outubro e 10 de novembro de 2012.
O tema do encontro desse ano foi "Responsabilidade cidadã - Caminhos de incidência política para a coesão social", associado ao compromisso de participação dos cidadãos na vida pública tendo em vista a construção de sociedades mais equitativas e coesas.
A dinâmica do encontro possibilita a geração de espaços de diálogo entre atores procedentes de diversos países da América Latina, mediante conferências, foros de discussão e relato de experiências. Está dirigido para pessoas que atuam em organizações da sociedade civil, cooperativas, organismos estatais e no setor privado, além de cidadãos interessados na temática. Em 2012, foram 860 participantes de diferentes países da região.
Minha intervenção foi modesta e simples, mas me deu grande satisfação. Fiz uma breve conferência sobre alguns temas e problemas que me parecem integrar, em posição de força, a agenda democrática atual, independentemente do país que se tome em consideração.
O eixo da conferência foi a ideia de reforma democrática da política, com a qual, em minha opinião, poderemos promover maiores aproximações entre os cidadãos e o Estado. Criar instituições que melhorem a qualidade da democracia é um projeto abrangente, que inclui, em lugar de destaque, um esforço concentrado dos agentes da sociedade civil para melhorar a qualidade da cultura política e da educação cívica dos cidadãos.
O vídeo com a minha fala está acima. Creio que os demais podem ser acessados no site do encontro, clicando aqui.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Os dois Fernandos, Aloysio e a política


                                     

Logo na abertura do pós-eleitoral paulistano, momento de distensão e relaxamento, ganharam destaque alguns construtores políticos e lideranças partidárias, animados, um, pela vitória, e outros dois, pela derrota.
Quando o prefeito eleito de São Paulo, Fernando Haddad, do PT, em entrevista publicada dia 31/10/2012 pelo jornal O Estado de S. Paulo, pediu que se levasse em consideração o seu passado, que é um “testemunho da minha disposição para construir consensos em torno de propostas que atendam ao interesse público”, ele não quis somente valorizar sua trajetória. Quis estabelecer um princípio de conduta, reforçado com a declaração de que “gestos de distensão” “são importantes para mostrar que divergências são discutidas durante a campanha”.
Foi um recado para fora – para o mundo político – e para dentro, para seu partido, que tem integrantes que ainda permanecem “em campanha”, dispostos a aproveitar a onda para esmagar e triturar seus adversários e “inimigos”. Para o mundo político, o novo prefeito enfatiza que fará um “governo de coalizão” mas que “não faço toma lá dá cá” e resistirá com firmeza e serenidade ao assédio e à pressão desenfreada por cargos. Não loteará seu secretariado. O norte a ser seguido é o plano de governo aprovado nas urnas. A que se esperar com calma até que a pressão saia do alto-mar e chegue à praia, diluindo-se. Uma bela imagem, com muito de sabedoria.
A pressão vem de fora, mas também vem de dentro. O PT é um partido de correntes, e partidos de correntes são sempre associações de interesses que competem entre si. É razoável supor que briguem nas derrotas, jogando a responsabilidade por elas para os “outros”, e que briguem nas vitórias, procurando ocupar posições e controlar recursos de poder que sejam compatíveis com o que julgam ser sua contribuição para o êxito eleitoral. O prefeito vitorioso, no caso, tende a ficar no fogo cruzado, e pode perder terreno nisso.
A favor de Haddad, conta muito seu passado. Ele não é um militante típico do PT. Nunca esteve no coração da máquina partidária, mas na sua periferia: fez mais parte da “sociedade civil” petista que do Estado-Maior do partido. Não foi preso político, nunca (ao que eu saiba) se engajou com paixão nessa ou naquela corrente. Teoricamente, está livre de maiores compromissos e tem hábitos diferentes, procede por outros canais e segundo outras regras. Tenderá a se apoiar nisso para fazer dois movimentos decisivos para seu futuro: (a) administrar a pressão dos companheiros e (b) imprimir caráter mais “racional” a seu governo. O segundo movimento é a porta que ele tem para realizar de fato um governo que “mude São Paulo”, tarefa que não sairá do papel se não contar com recursos técnicos e intelectuais poderosos. Não será um governo técnico, mas com mais técnica, mais conhecimento: um governo composto por intelectuais de novo tipo, cujo modo de ser “não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, persuasor permanente, já que não apenas orador puro”. Especialistas que desejam ser dirigentes: “especialistas + políticos” (Gramsci).
Na entrevista, Haddad também se livrou de uma canga incômoda. Declarou que sua própria declaração de que seria “o segundo poste de Lula” e de que outros postes virão não passou de “uma conversa com a militância, celebrando a vitória”. Para bons entendedores, poucas palavras bastam.
A entrevista do prefeito eleito coincidiu (no tom e no efeito) com manifestações de próceres tucanos. Fernando Henrique Cardoso veio a público, já na véspera do segundo turno, dizer que Serra mostrou tenacidade e energia, mas que o PSDB "precisa voltar a ter uma atitude muito mais próxima do que o povo está sentindo". Disse que o partido "tem que estar alinhado com o futuro” e vai “precisar de renovação”: a gente "tem que empurrar os novos para ir para a frente". Foi interpretado como se estivesse a criticar a velha guarda ou os mais velhos. Mas pôs na roda uma palavra densa – renovação – que precisa ser considerada por qualquer um que queira fazer política partidária. FHC enfatizou que não seria preciso eliminar "os antigos líderes”, mas sim fazer com que eles animem as pessoas mais novas, pois elas sempre trazem ideias novas. "O importante são ideias, não necessariamente novas, mas renovadas para fazer frente às conjunturas". Sem isso, nenhum discurso será convincente.
Quase que como fazendo um dueto com os dois Fernandos, o senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) foi à tribuna do Senado para abrir o debate dentro do PSDB e tentar compreender a derrota em São Paulo. Ambiente tenso, repleto de mágoas, ressentimentos e dificuldades, a reanimação do mundo íntimo dos tucanos será um desafio tão grande quanto à gestão de São Paulo, exageros à parte. Ainda que absolvendo Serra de responsabilidades, o que certamente não pode ser feito, Aloysio foi direto ao ponto: a derrota na cidade ocorreu por "negligência do PSDB", que não teve "presença política" suficiente para sustentar suas pretensões eleitorais. "Por que o resultado eleitoral adverso? Porque a ação administrativa não foi acompanhada da luta política; do esclarecimento das consciências; da articulação com a base da sociedade; com a presença cotidiana do partido, nas associações, nos movimentos sociais; com o distanciamento da população; com a burocratização da estrutura partidária".
Não disse tudo, nem o mais correto em termos de análise política, mas disse muita coisa boa. Pôs o dedo na ferida maior do PSDB: ter dificuldade para ser um partido de quadros e massas, sem o que o ideal da social-democracia não se concretiza. O problema é antigo, mas quase nunca foi discutido em público ou reconhecido.
Alguns leram a intervenção de Aloysio como limitada e equivocada, porque não admitiu a culpa de Serra e dos coordenadores de sua campanha. Não vi assim. Vi na intervenção dele a mão de alguém que pensa a política como uma ação coletiva. Homens políticos não carregam culpas sozinhos; também são estragados, ou tem seus defeitos agigantados, por seus partidos, amigos e apoiadores. Serra tem uma biografia política complicada. É responsável por seus acertos e sobretudo por seus erros, como os da atual campanha. Errou ao postergar a candidatura, comprou brigas internas evitáveis, queimou seu filme junto à opinião pública ao não conseguir explicar direito a saída da Prefeitura em 2010. Errou feio não por ter forçado sua candidatura (não sei se o fez porque não privo da intimidade do PSDB) e sim por não ter conseguido resistir á tentação de permanecer no primeiro plano. Falhou por excesso de protagonismo, digamos assim. Poderia até ter vencido as eleições (seria difícil dada a conjuntura), mas jamais apagaria a imagem de ter apetite demais. E perdeu as eleições não por ter escolhido mal os aliados (ele não tinha com quem se aliar) ou por ter subestimado os adversários (todo mundo sabe que o PT tem força na cidade), mas por não ter encaixado um eixo de campanha, por ter falado bobagem demais e por ter deixado a campanha ser conduzida por gente incompetente (e por ter deixado isso acontecer, assinou um atestado de incompetência).
Mas o PSDB tem muita culpa no cartório, e deve ser parte da boa análise política reconhecer isso. Ficar chutando Serra agora acrescentará pouca coisa à compreensão dos fatos, ainda que sirva para desopilar o fígado dos que estão saboreando sua derrota ou dos que choram seu fracasso.
Muitos analistas políticos não costumam considerar que a vida partidária tem suas limitações e suas obrigações. Aloysio Nunes não disse tudo porque não poderia tê-lo feito, do mesmo modo que muitos petistas cortejam militância ao dizer que o STF está sendo "politizado".  Tucanos sem maiores "responsabilidades partidárias" podem soltar cobras pela boca, mas um dirigente não pode, sob pena de perder o chão partidário. Aloysio não disse que faltou apoio do PSDB a Serra, mas sim que "faltou presença política" do PSDB, o que me parece ser fato incontestável. Talvez ele venha a sacrificar Serra, ou a fazê-lo sangrar, mas terá de ter muito timing para fazer isso sem perder bases de apoio no partido. Acho que ele quer sim abrir o debate, porque sabe que alguém tem de fazer isso. Mas não pode sair dando tiros para todos os lados, como nós, analistas, gostaríamos que acontecesse. Na linha maquiaveliana, está dando pistas do que poderá e deverá ser feito: cortando a carne do partido, que é e sempre deveria ser o "dono" das campanhas dos candidatos. Acho um erro atribuir peso excessivo à personalidade de Serra ou a seus erros pessoais (ou mesmo grupais). Everything is connected.
Se o PSDB quiser discutir de verdade, pouco valor terá a tentativa de preservar José Serra. Será preciso de fato dar a "Serra o que é de Serra".  Mas será preciso olhar as coisas no conjunto. Política é vontade e circunstâncias. Haddad ganhou porque soube se beneficiar dos erros do PSDB e porque entrou em sintonia com a população. Virtú e fortuna. Foi uma vitória “circunstancial” no sentido de que soube aproveitar circunstancias favoráveis. Inquestionável e meritória.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Depois do segundo turno


Independentemente dos candidatos que sairão vitoriosos das urnas do segundo turno das eleições municipais, a democracia brasileira dele emergirá em boa forma física.
Eleições são sempre um teste para a qualidade da democracia. Ajudam a que se visualizem as falhas e virtudes do sistema político. Fornecem um observatório para que se estudem os humores e expectativas sociais, o sucesso ou insucesso das políticas públicas, os traços da cultura política que orienta a luta interpartidária, os projetos de sociedade que estão sendo oferecidos pelos políticos e por seus partidos.
As disputas desse ano ocorreram em clima de “normalidade” e é de se esperar que os vitoriosos sejam diplomados, tomem posse e recebam, ao menos nos primeiros meses, a confiança e o apoio do conjunto da população.  Em 2012 a sociedade deu mais um passo em direção à consolidação de sua democracia, processo esse que passou pelo declínio da ditadura militar, pela Nova República de 1985 e pela elaboração da nova Carta Constitucional em 1988 e foi-se afirmando eleição após eleição, governo a governo. Três décadas depois, o país se transformou e está muito melhor em termos políticos.
Pode-se associar a esse processo a valorização dos órgãos superiores do Estado. O prestígio adquirido pelo Supremo Tribunal Federal surge aqui como maior exemplo, graças em parte ao julgamento do mensalão. Nesse episódio, trabalhando em meio a um tiroteio de aplausos e apupos, o Tribunal escudou-se na interpretação da Constituição e do Código Civil para avançar no combate à corrupção e a alguns dos maus hábitos que fragilizam a República e o Estado democrático. Sua mensagem ainda não chegou à corrente sanguínea da sociedade, pois depende de novos passos, de reformas institucionais estratégicas e do julgamento de outros casos semelhantes. Mas foi dada.
Muitos criticaram a coincidência do julgamento com as eleições, o rigor das sentenças e a doutrina escolhida pelos juízes para fundamentá-las. Viram no julgamento um fator de arbítrio e “exceção” utilizado para prejudicar o Partido dos Trabalhadores. No entanto, como escreveu o governador Tarso Genro (PT), do Rio Grande do Sul, “seu resultado não está manchado de ilegitimidade: os procedimentos garantiram a ampla defesa dos réus e, embora se possa discordar da apreciação das provas e da doutrina penal abraçada pelo relator, a publicidade do julgamento e a ausência de coerção insuportável sobre os Juízes dão suficiente suporte de legitimidade à decisão da Suprema Corte”. Reclama-se que o julgamento foi mais político que jurídico, mas não se leva em conta que “todo Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores. Nas decisões das suas Cortes, às vezes predomina o Direito, às vezes predomina a Política. O patamar da sua decisão legítima é alcançado, então, não somente através das suas instâncias jurídicas de decisão, mas – nos seus casos mais relevantes – na esfera da política, por dentro e por fora dos Tribunais”. (Carta Maior, 22/10/2012).
Exprimindo a desigual maturação da democratização, os embates do segundo turno foram particularmente pobres em conteúdo. As campanhas concentraram-se em estratégias “mercadológicas” de ataque e defesa. Particularmente na cidade de São Paulo, esse rebaixamento atingiu proporções dramáticas.  Na cidade em que se pode encontrar tudo, não se conseguiu achar a política com “P” maiúsculo.
A disputa entre PT e PSDB teria inevitavelmente que ocorrer em doses elevadas, ainda que pouco houvesse de substantivo a diferenciar os combatentes. Mas foi vivida como se se estivesse a decidir a derradeira batalha de uma guerra que se deseja sem-fim porque se imagina que é ela que organiza a política nacional.
Donde a manifestação de um efeito colateral: o segundo turno paulistano pode ter sido o último suspiro de uma oposição que pretendeu ser (e em alguns momentos da história chegou a sê-lo) a opção mais qualificada seja para a superação do velho Brasil de caciques oligárquicos e barões patrimoniais, seja para o oferecimento de uma alternativa à ascensão do PT.
Sem discurso, sem equilíbrio, rumo e discernimento, com excesso de fel e ressentimento, a campanha de Serra desmereceu sua biografia política e deve ser diretamente responsabilizada pela dificuldade que teve de agregar votos. Muitos de seus eleitores no primeiro turno devem ter condicionado a confirmação do voto a uma mudança positiva na qualidade de seu desempenho, o que não aconteceu.
O ocaso do PSDB como partido de proposta e projeto pode conviver com sua sobrevivência como legenda eleitoral e mesmo com a afirmação de candidatos competitivos a ele vinculados, como é o caso de Aécio Neves. Mas significa o aniquilamento de um patrimônio e impõe um repto ao PSDB: renovar-se radicalmente ou perecer. Terá efeitos no universo político, incentivando deslocamentos de expectativas e lealdades. Em termos imediatos, expressará o encolhimento da oposição ao predomínio do PT, embora não represente a abertura de um céu de brigadeiro no país, dada a preservação das coalizões sem eixo programático e vínculos de identidade. Mesmo na base governista os partidos continuarão a brigar entre si, ora por motivos nobres, mas quase sempre pelo controle de mais recursos de poder.
Para nossas cidades, o período que se abrirá com o fechamento das urnas não deverá introduzir mudanças categóricas. Poderá haver melhor desempenho governamental em alguns municípios, mas nada sugere que se revolucionará a gestão urbana, processo que, de resto, se espalha por períodos longos e requer a combinação de muitos fatores, que estão ausentes no contexto atual. Em termos da dinâmica política do país, porém, há indícios suficientes de que um novo ciclo se iniciará. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/10/2012, p. A2)



domingo, 14 de outubro de 2012

Roteiro para sobreviver ao julgamento do mensalão


Bosch, A nau dos insensatos

Não tenho vontade de entrar nesse bate-boca que rola por aí em torno do julgamento do mensalão. O tema está sendo mal discutido e equivocadamente instrumentalizado. Em vez de levar ao debate público democrático, está empurrando os participantes para o inferno da grosseria e da discussão adjetiva. Sempre que resvalo no assunto, provoco reações passionais de alguns amigos, com quem não quero brigar mas com quem não consigo discutir serenamente.

Dá tédio e tristeza ver petistas e tucanos digladiando para ver quem é o mais puro e o mais bandido. Ambos sacam argumentos ridículos para se atacarem reciprocamente, manipulando a bel-prazer um episódio da vida nacional que deveria causar constrangimento e reflexão, não comemorações ou chororô.

Impossível saber quem se comporta pior ou de modo mais medíocre. Se os que posam de vestais ou se os que alegam estar presenciando um "golpe" contra "o mais progressista de todos os governos nacionais". Se os que choram de emoção perante a figura impoluta do ministro Joaquim, ou se os que se lanham em praça pública dizendo que Dirceu foi condenado sem provas porque é um "guerreiro do povo brasileiro".

Para não me furtar de dar minha opinião e me posicionar, elaborei o roteiro abaixo, que socializo na esperança de que tenha alguma utilidade e contribua para requalificar o debate político atual, que me parece rebaixado demais.

1. O mensalão existiu, foi exaustivamente comprovado tanto por fatos como sobretudo pela lógica dos fatos. O "núcleo político" que acabou de ser condenado dele participou ativamente, pois era isso que se esperava que fizessem, como coordenadores políticos do governo Lula. A chave mestra desse núcleo foi uma estratégia política inteligente, dedicada a tirar o PT do isolamento e a lhe dar condições de governabilidade. Acertaram na estratégia, mas pisaram na bola nos procedimentos. Foram gramscianos na intenção, mas toscos e antirrepublicanos na conduta.

Foi um mau passo, uma ida com sede excessiva ao pote. Fizeram o que acharam que precisava ser feito e o que determinaram que fizessem. Não podem ser criticados ou condenados por terem agido assim, pois eram homens de partido, militantes revolucionários, leninistas, cumpridores de diretrizes. Mas deviam ter escolhido melhor os parceiros, usado procedimentos mais inteligentes e adequados às leis do país. Poderiam, por exemplo, ter se limitado a fazer trocas de cargos e apoios eleitorais. Seria corrupção também, mas bem mais palatável na democracia representativa. Deixaram que o dinheiro -- esse deus da maldição e da cobiça -- entrasse em cena, burramente, e perderam o controle da coisa.

Cansei de ouvir histórias de militantes revolucionários que caíram em esparrelas desse tipo. Nem por isso seus partidos sangraram em praça pública.

2. É um truísmo dizer que democracia exige negociação. Essa é uma das bases operacionais da esquerda democrática. Negociar e persuadir, compor alianças que permitam avançar ou deem apoio a iniciativas reformadoras, tudo isso tem muito mais valor e eficácia do que pressões e imposições a qualquer custo. Também é verdade que negociar não exclui pressionar e certamente não implica ceder tudo àqueles com quem se negocia. É preciso ter-se um norte e uma boa cultura política para se negociar.

3. Em 2005, o PT estava começando a adquirir cultura de negociação. Era noviço nessa prática. Ganhara protagonismo e musculatura seguindo outra via, a da "democracia dos movimentos", na qual não se podia "transigir jamais" nem "ceder jamais aos liberais e conservadores". Ainda estava contaminado por alguns vícios alojados em seu DNA, em sua cultura política, faltavam-lhe sagacidade e paciência. Não tinha Gramsci nas veias. Deixou-se cair bobamente numa arapuca.

O nucleo politico que dirigia o partido não soube distinguir as fronteiras entre negociação e negociata, que podem ser tênues e pouco transparentes mas existem e precisam ser respeitadas. Negociações políticas não podem envolver dinheiro, repasses de milhões e empréstimos fraudulentos, seja por que motivo for e com quem for. É falso dizer que as vezes isso é necessário, que não devemos ser moralistas e precisamos ser "realistas" para vencer as mazelas do "presidencialismo de coalizão". Somente se põe dinheiro na mesa (somente se faz uma negociata no âmbito de uma negociação) sob duas condições: ou quando se é fraco e venal demais, ou quando se tem arrogância em excesso e se pensa que a impunidade estará garantida. O PT era forte em 2005, mas seu núcleo político foi arrogante.

4. O PT não é igual ao mensalão. É absurdo, antidemocrático e falso reduzir o partido a isso. Nem como argumento de luta eleitoral isso deveria ser feito. O PT carregará pela história a grande contribuição que seus governos deram à melhoria da distribuição de renda, à elevação de milhões de brasileiros à condição de cidadãos. Negar-lhe isso é desconsiderar a história. E mentir.

Tratar o PT em conjunto como uma "organização criminosa" é pior ainda. Muitos tucanos fazem isso, agindo como se eles próprios não tivessem outros tantos problemas nas costas. O PSDB teve seu momento de glória durante os anos FHC e não soube aproveitá-lo para deixar uma marca social no pais. Também fez pequena política e má política, "instrumentalizou" o governo de Sao Paulo e não deu outro padrão à gestão urbana na metrópole paulistana, quando teve a oportunidade de fazer isso. Os tucanos têm telhado de vidro e poucos méritos para "descontrair" o PT.

5. O modo petista de atacar o PSDB e Serra é igualmente primitivo, falso e antidemocrático. Dizem que os tucanos são "contra os pobres" e seguem preceitos "higienistas", que estão associados a verdadeiros "criminosos" nas privatizações, que praticam políticas sistematicamente violentas em São Paulo, que mentem e iludem a população, mobilizando para isso argumentos retrógrados e obscurantistas. Menosprezam o papel que os governos tucanos tiveram na estabilização monetária e na racionalização administrativa. Tratam o PSDB em bloco, empurrando-o gratuitamente para a direita. E fazem tudo isso passando batido pelo populista personalista de Lula, por seu sistemático deboche das instituições, incluindo o próprio partido. Estigmatizam o PSDB como reacionário e direitista ao mesmo tempo em que se aliam a Maluf, a Sarney, a Renan Calheiros. Façam o que falo, mas não o que faço: os petistas têm defeitos demais para "desconstruir" o PSDB.

6. O trágico desse tipo de ataques recíprocos é que, com base nele, deixa-se de lado a discussão que realmente importa: a discussão sobre as políticas que foram praticadas por ambos os partidos, sobre os projetos de sociedade que carregam consigo, sobre os interesses sociais que efetivamente representam, sobre seu legado para o país. O maniqueismo grosseiro privilegia as arvores, não enxerga a floresta. Não consegue raciocinar em termos de ciclos, mas somente de resultados tópicos, localizados. Impede que se compreenda que governos são governos, acertam e erram, fazem coisas boas e más. Governos podem e devem ser comparados, mas isso só faz sentido se os critérios forem razoáveis. A análise política das situações políticas não pode frutificar à base de disputas eleitorais, de torcidas passionais ou ideológicas.

7. Dizer, como diz a maioria dos petistas, que Dirceu e Genoino foram acusados sem provas é algo que maltrata a inteligência alheia. A linha seguida pelos juízes foi clara: nem tudo precisa de "prova material" para ser considerado crime, abordagem consagrada nas práticas forenses. Em crimes de lesa-pátria ou que são cometidos nas entranhas do Estado, os indícios, as confissões e os depoimentos falam bem alto.

Dado o enraizamento da corrupção (e do caixa 2, que também é corrupção, ainda que o vejam como "imposição do sistema eleitoral") na vida institucional e na história política do pais, a criação de uma jurisprudência a respeito poderá ser decisiva para que se desestimulem novas tentativas de mensalão, ou de compra de apoio político, seja com que moeda for.

8. O mensalão não foi o primeiro na história nacional. Ele seguiu um padrão praticamente instituído entre nós. É bobagem ficarem falando que se tratou do "maior escândalo" da vida republicana. É bobagem idêntica ficar brigando pra saber qual mensalão foi pior, o de Brasília ou o de Minas. Todos os atos semelhantes devem ter o mesmo tratamento, e o Supremo indicou claramente que é assim que fará. O fato do "DNA do mensalão" não ser petista, porém, não exime o PT de culpa no cartório, nem muito menos inocenta seus coordenadores. A relativização, aqui, é o pior argumento.

9. A mesma militância que chora a integridade de Dirceu e Genoino despreza Delubio Soares, sacrificado sem dó, sem pena, sem deferência. Foi tratado como cachorro morto. Prestou-se ele ao sacrifício, como o bom soldado que morre para salvar o comandante, o exercito ou a pátria. Deveria receber mais elogios que apupos. Mas por acaso não ficou evidente que o desprezo e a falta de solidariedade para com ele escondem uma tentativa de preservar os ocupantes de posições mais elevadas? Nesse caso, tentou-se dar os anéis para preservar os dedos.

10. O chororô petista é ridículo, mas faz parte do jogo. Derramarão lágrimas de crocodilo ao menos enquanto durar a campanha eleitoral, especialmente em SP. Acham que assim tirarão o PT das cordas. Mas o PT não foi nocauteado! Nem grogue ficou. Alguns de seus integrantes perderam as pernas, o partido não. Ir além disso é agitação gratuita. Indica que a direção do partido está em crise de identidade e auto-estima, o que surpreende quando se confronta isso com a força que o petismo exibe no país. Hoje, exceção feita a São Paulo, o Brasil é um vasto território controlado pela coalizão política pilotada pelo PT.

11. O PSDB mostra extraordinária limitação política ao oferecer palco para a auto-imolação pública que o PT e muitos torcedores petistas estão a ensaiar. O núcleo político que comanda a campanha tucana em SP parece cego para isso. Vai insistir no tema, bater a torto e a direito. Pouco se importará em fazer o sangue correr pelas frestas da República, porque acredita que o eleitorado quer precisamente sangue. Provavelmente perderá a eleição por causa disso (ainda é cedo para falar, eu sei). O povo brasileiro é sensível à desgraça dos outros, não resiste a um bom choro, a uma carta de ex-mulher, mãe ou filha. Além disso, é um povo que não liga muito para bate-bocas entre políticos. Aprendeu a vê-los como superfetação, exagero e jogo de cena. Foi treinado para isso por elites políticas pouco comprometidas com o uso público da razão e o diálogo democrático. As mesmas elites que hoje, na pele de petistas e tucanos, protagonizam uma baixaria sem comparação.

12. PT e PSDB assemelham-se a irmãos siameses que caminham abraçados para a morte. Historicamente, são carne da mesma carne. Nasceram em solo paulista, paridos pela mesma elite política e ao embalo da democratização e do desenvolvimento capitalista do pais. Deram expressão política às classes médias urbanas, aos operários revigorados pela industrialização selvagem, ao sindicalismo que queria se libertar da camisa de força do autoritarismo. Ambos quiseram ser uma alternativa à esquerda comunista tradicional, que combateram como "stalinista". Agregaram múltiplos pedaços da esquerda, de trotskistas a católicos radicais, de socialistas a liberais éticos exacerbados. Foram duas vertentes que se alimentaram do mesmo momento histórico. Poderiam ter se reunido e dado ao país a social-democracia que nunca conseguimos ter, e que aqui talvez viesse a agir revolucionariamente. Não tiveram capacidade para fazer isso, foram mesquinhos e egoístas, optaram por maximizar suas diferenças, que foram ainda mais potencializadas pelas disputas por poder em que se meteram.

Agora, ao final do ciclo, extenuados pelos embates insanos que protagonizaram, entregam-se sem pudor às forças do atraso e da regressão política. Converteram-se no pior pesadelo de suas glórias e tradições. Suas línguas envelheceram, ficaram despidas de nobreza, viço e vigor, estão inflamadas pelo prazer sádico do insulto. Não falam mais nada de aproveitável para a sociedade. PT e PSDB estão obcecados por poder e mais poder, o que somente cessará com a morte (valha-me Hobbes...). Ficaram viciados em olhar para o Estado, perderam contato com a sociedade civil. Com isso, pularam fora do campo da esquerda democrática, que para eles, na melhor da hipóteses, tornou-se um território nominal, a ser ocupado somente em termos protocolares e auto-referidos.

13. O chororô petista fica ainda mais ridículo e patético quando combinado com teoria da conspiração. Dizer que os conservadores, as elites, a direita, a mídia golpista agem para "destruir o PT" em nome da luta de classes e de um golpe contra "o mais progressista de todos os governos" chega a ser risível, caso não fosse sustentado por gente graúda, jornalistas, cidadãos maduros e bem informados, professores, lideranças comunitárias e cientistas sociais. Ou é cegueira brutal diante da vida, ou é pura e simples manipulação. Isso porque nunca houve antes na história desse pais um arranjo governamental mais amado pelos interesses economicamente dominantes. Por qual motivo esses interesses conspirariam contra aqueles que lhes garantem sossego, lucros, casa e comida? Mas, dirão alguns, e quanto às "elites", às "classes médias conservadoras" e, claro, à mídia, que simplesmente têm "ódio do PT"? A argumentação circular desafia a lógica e os fatos.

14. É uma tristeza ver gente que se diz de esquerda, moderna e democrática usar esse tipo de estratagema. Ele abusa da idéia de que se estão contra mim é porque querem o meu fim. Não aceita que se faça oposição ou se divirja de um governo porque, afinal, esse governo "mudou a face do país" e por isso deve ser devidamente canonizado, ou seja, não pode ser criticado. Se o criticam é porque querem o seu mal e o seu fim. Haveria sempre um golpe em marcha em toda critica, especialmente quando ela é vocalizada pela imprensa. Jornalistas, sobretudo os da grande mídia, não erram e não tem uma cultura profissional típica: simplesmente estão "a serviço dos interesses dominantes" e por isso sempre estão a tramar um "golpe" contra o povo. O único jeito de combatê-los é mediante a "regulação da mídia", postulação sempre feita mas jamais suficientemente esclarecida.

Estratagema simplista, maniqueísmo em excesso, tratamento grosseiro da dialética da luta de classes. Adjetivações inócuas.

15. Os tucanos e muitos antipetistas dão gás para essas sandices ao falarem do mensalão em termos moralistas, não políticos. Comportam-se como santos e justiceiros, sempre vigilantes contra a maldade dos outros. Jamais olham para o próprio umbigo, jamais analisam o quadro político, cultural e institucional em seu conjunto. Se fossem tudo o que dizem e acham ser, deveriam agir de outro modo, conclamar a população a virar a página, assumir sua própria culpa como partido (o tal mensalão mineiro), tomar providências para blindar as instituições contra quaisquer tentativas de instrumentalização.

Só não se saem pior porque os petistas, por sua vez, agem com incompetência ainda maior: berram a plenos pulmões que a condenação do "núcleo político" foi "hipócrita" porque não se baseou em provas e porque visou atingir o partido, não certas pessoas. É burrice demais: em vez de entregarem os anéis, entregam dedos, mãos, braços, pernas, cabeça e coração, expondo o conjunto do partido à execração pública.

16. Certo esteve Lula em 2005 quando se separou dos "companheiros aloprados" e disse: "Eu me sinto traído por práticas inaceitáveis sobre as quais eu não tinha qualquer conhecimento. Não tenho nenhuma vergonha de dizer que nós temos de pedir desculpas. O PT tem de pedir desculpas. O governo, onde errou, precisa pedir desculpas." Foi cínico, individualista e cruel, mas foi realista e maquiaveliano. Ganhou as eleições de 2006 com essa atitude. Tivesse o PT aproveitado aquele momento para fazer a devida autocrítica, se reformular e se ajustar, estariam todos muito melhor hoje.

Hoje, Lula está na linha de frente do gestual que pede revanche e revide, que é, para mim, o caminho mais curto para a destruição do rico patrimônio petista. Depois tem gente que acha que não existe um "lulismo" superposto ao petismo.

17. Os ministros do Supremo foram majoritariamente designados por Lula e Dilma. Talvez a raiva petista contra as decisões seja um misto de decepção e surpresa. Juízes "traidores do povo brasileiro", marionetes nas mãos da opinião pública manipulada pela mídia golpista: as palavras cortam como lâmina afiada, mas não fazem jus ao que se falava do STF antes do julgamento começar, quando se acreditava que tudo terminaria em pizza.

Levantar suspeitas quanto à isenção de uma Corte cujos membros foram na maioria indicados pelos próprios presidentes petistas, dizendo que ela se comporta como se fosse teleguiada pela mídia e "condena sem provas", é uma atitude pouco inteligente, porque não tem base lógica nem racionalidade política. É desconhecer a natureza das instituições e a natureza dos homens investidos do poder de julgar, que seguramente não costumam arriscar sua honra e seu prestigio para se curvar a uma pressão política.

18. Toda a operação desenvolvida pelo STF teve grande valor pedagógico. A cidadania deveria ser incentivada -- por todos, mas sobretudo pela esquerda democrática, que é a que mais tem interesse na pedagogia democrática -- a aprender com o julgamento, e não a vê-lo como uma "farsa".

É um equívoco (ou argumento dedicado somente agitação) dizer que o Judiciário usurpou o lugar da política. Ele não está "criminalizando" nem a política, nem os partidos, nem os movimentos sociais, como se ouve falar por aí. Está somente julgando atos denunciados como ilícitos penais pelo Ministério Público que, salvo melhor juízo, é uma instituição republicana, saudada e respeitada por todos os democratas. Seguem preceitos hermenêuticos consagrados, baseiam-se em alguma jurisprudência, tem pouquíssimo espaço para advogar em causa própria. O STF não é um salvador da pátria, mas é incoerente e antidemocrático vê-lo como joguete nas mãos da "mídia neoliberal" ou da "direita conservadora".

19. José Dirceu tem muitos motivos para estar decepcionado, para se sentir injustiçado e perseguido. Jamais imaginou que a história poderia terminar assim. Mas não mostra muita sensibilidade política ao jurar que irá à luta para revidar o golpe que sofreu graças ao "estado de exceção" instalado pelo STF. Menos mal que ele tenha enfatizado o combate eleitoral como primeiro round do revide. Mas deveria ter mais compostura cívica, retirar-se para a vida privada, deixar a poeira baixar e fazer uma reflexão circunstanciada sobre tudo o que ocorreu. O pior que pode fazer agora é sair por aí agitando a galera.

20. O PT atira no próprio pé e perde estatura como partido ao se recusar a aceitar que errou. Sairia engrandecido do episódio se assumisse a culpa pelo que ocorreu de errado, pedisse desculpas e tocasse a vida com a velha vibração de antes. Posar de coitadinho é horrível para um partido que se pretende revolucionário. Rouba energia da militância, gera desconfiança no cidadão, mostra tibieza e fragilidade perante adversários e aliados. Deslegitimar as instituições do Estado num momento em que o partido ocupa o centro do processo político nacional e detém muitos recursos de poder é atitude tosca demais. Empurra o PT de volta a um gueto de que ele próprio se esforçou tenazmente para sair.

21. Gostem ou não gostem deles, o fato é que PT e PSDB são o que de melhor temos por aqui. Conseguirão se reerguer, lamber suas feridas, se autocriticar e levar a sério a crise em que se encontram? Se o fizerem, renascerão das cinzas e fortalecerão a democracia brasileira. Têm massa critica para fazer isso. Terão coragem para fazê-lo? É o que teremos de descobrir no próximo ciclo, que se abrirá assim que se fecharem as urnas do segundo turno.