sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano Novo à moda de Gramsci


Peter Bialobrzeski - Transition, 2005
Resistam ao título. Deem um desconto para o último parágrafo. Levem em conta que quando o texto foi escrito, em 1916, seu autor não tinha muitos motivos para comemorar, nem para ser feliz. Depois disso, apreciem sem preconceitos a beleza do artigo. Que mostra um Gramsci em sua melhor forma. Literário, introspectivo, reflexivo, atento às rotinas que tornam a vida artificialmente programada.  Um Gramsci que se queria livre de cangas, protocolos e obrigações, e que queria o mesmo para todos os homens e mulheres. Que via nisso a essência do socialismo.
Ainda que goste de comemorar e ache bonito abraçar os amigos quando o novo ano desponta, não sou dos que se excitam com Anos Novos ou réveillons. Por isso me lembrei do texto de Gramsci, para com ele terminar 2011.
Que cada um comemore ou não, durma ou faça festa, se divirta como achar melhor e como puder, faça retiros espirituais, promessas e planos se assim quiser. E que todos aproveitem para pensar sobre o futuro e contribuir para que ele possa ser desenhado de maneira mais justa, democrática e coletiva.
Afinal, como nos diz a bela “Receita de Ano Novo” do grande Drummond, para ganharmos um “belíssimo Ano Novo cor de arco-íris, ou da cor da sua paz”, um Ano Novo “não apenas pintado de novo, remendado às carreiras/ mas novo nas sementinhas do vir-a-ser/novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota/mas com ele se come, se passeia/se ama, se compreende, se trabalha”, para ganharmos um ano assim não precisamos “beber champanha ou qualquer outra birita”, “expedir ou receber mensagens”, nem “fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta”.
Quase como se estivesse a parafrasear Gramsci, o verso do poeta nos recorda que “É dentro de você que o Ano Novo/cochila e espera desde sempre”.
Bom 2012 a todos.
Odeio o Ano Novo
Antonio Gramsci
Avanti! , 1º de Janeiro de 1916.
Toda manhã, ao acordar mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim é o primeiro dia do ano.
Por isso odeio estes anos novos a prazo fixo, que transformam a vida e o espírito humano em uma empresa comercial, com sua prestação de contas, seu balanço e suas previsões para a nova gestão. Eles fazem com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Termina-se por acreditar a sério que entre um ano e outro exista uma solução de continuidade e comece uma nova história; fazem-se promessas e projetos, as pessoas se arrependem dos erros cometidos, etc. É um equívoco geral que afeta a todas as datas.
Dizem que a cronologia é a ossatura da história. Pode-se admitir que sim. Mas também é preciso admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais, que toda pessoa conserva gravadas no cérebro, datas que tiveram efeito devastador na história. Também elas são primeiros dias de ano. O Ano Novo da história romana, ou da Idade Média, ou da era moderna. Elas se tornaram tão invasivas e tão fossilizantes que nos surpreendemos a pensar algumas vezes que a vida na Itália começou em 752, e que 1490 ou 1492 são como montanhas que a humanidade ultrapassou de um só golpe para entrar em um novo mundo e em uma nova vida. Com isso, a data converte-se em um fardo, um parapeito que impede que se veja que a história continua a se desenvolver de acordo com uma mesma linha fundamental, sem interrupções bruscas, como quando o filme se rompe no cinematógrafo e se abre um intervalo de luz ofuscante.
Por isso odeio a passagem do ano. Quero que cada manhã seja um ano novo para mim. A cada dia quero ajustar as contas comigo mesmo e renovar-me. Nenhum dia previamente estabelecido para o descanso. As pausas eu escolho sozinho, quando me sinto embriagado de vida intensa e desejo mergulhar na animalidade para extrair um novo vigor. Nenhum travestismo espiritual. Cada hora da minha vida eu gostaria que fosse nova, ainda que vinculada às horas já transcorridas. Nenhum dia de júbilo coletivo obrigatório, a ser compartilhado com estranhos que não me interessam. Só porque festejaram os avós dos nossos avós, etc., teremos também nós de sentir a necessidade de festejar. Tudo isso dá náuseas.
Espero o socialismo também por esta razão. Porque mandará para o lixo todas estas datas que já não têm nenhuma ressonância em nosso espírito. E se o socialismo vier a criar novas datas, ao menos serão as nossas e não aquelas que temos de aceitar sem benefício de inventário dos nossos ignorantes antepassados.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Em busca do simbolismo profundo


O Natal é predominantemente uma festa cristã. O dia 25 de dezembro, porém, nem sempre foi uma data religiosa, pois até o século III esteve associado ao nascimento anual do “deus sol” na abertura do inverno. A Igreja Católica, interessada na conversão dos povos pagãos, apropriou-se da data para nela acomodar o nascimento de Jesus. Mesmo assim, o Natal continuou a ser maior do que a Cristandade e permaneceu sendo comemorado por muitos não-cristãos em diversas partes do mundo. Tornou-se o centro das festividades que celebram o fim do ano. Aos poucos, com o avanço do capitalismo e a preponderância crescente do mercado na vida das sociedades, converteu-se no grande momento econômico de cada ano, período em que empresas, comerciantes e consumidores são dominados por um afã produtivista e consumista sem paralelo. 

A dimensão econômica do Natal passou a concorrer com a força simbólica da data, concentrada na confraternização e na solidariedade. A pressão comercial tornou-se tão intensa que transfigurou algumas belas tradições populares – a troca de presentes, a refeição especial, as árvores enfeitadas, o bom velhinho –, reduzindo-as a caricaturas esvaziadas do simbolismo mais substantivo da data.


A confraternização e a solidariedade perderam força, mas não desapareceram. Manteve-se viva a expectativa de que na última semana de cada ano o mundo deve ser contagiado por um clima diferente, de que armas e soldados devem voltar para casa ou ao menos confraternizar com seus inimigos nos campos de batalha, como dizem ter ocorrido no Natal de 1914, na I Guerra Mundial, quando soldados britânicos, alemães e franceses decretaram um armistício informal para poderem celebrar a data, com direito a trocas de presentes e disputas de partidas de futebol.


É verdade que nos anos subsequentes do conflito os bombardeios foram intensificados na véspera de Natal para que novas tréguas não se repetissem. Nem todo 25 de dezembro é marcado pela paz e pela harmonia entre os povos. No geral, porém, o mundo parece se pacificar quando chega o fim do ano.
Sendo assim, não custa imaginar o que aconteceria se o clima natalino passasse a preencher os 365 dias do ano. Haveria mais fraternidade e solidariedade, evidentemente, e poder-se-ia iniciar a construção de um mundo mais cooperativo e justo, menos desigual e violento, mais sério e competente para evitar que somas gigantescas continuem a ser gastas com armas e negócios enquanto centenas de milhões de pessoas morrem de fome, doenças e superexploração.

Um mundo que não atenta para estes paradoxos é indigno de ser associado ao simbolismo natalino profundo. Falo do “mundo”, mas deveria falar de pessoas e instituições, de governantes, líderes políticos, empresários, banqueiros, intelectuais, igrejas, partidos e organizações várias, mercados e sociedades civis. Onde estão eles e por que não conseguem dar um jeito nas coisas, pavimentando estradas por onde a humanidade possa se reencontrar consigo mesma? 


Seria ingênuo demais dizer que a este mundo de pessoas e instituições falta o espírito fraterno da solidariedade, que ele se move exclusivamente por interesses egoístas, escravizado pela face demoníaca da riqueza e da acumulação de poder. Tal modo de pensar não leva em conta a dureza da vida, a direção cega dos processos econômicos, as estruturas sociais que cerceiam as pessoas em nome da ordem e da segurança. Acima de tudo, deixa de lado o caráter complexo do ser humano, esta figura simultaneamente racional e irracional, capaz de amar e odiar com igual intensidade, que acredita em deuses e bruxas mas cultiva a ciência, que é calculista e passional, ansioso e bonachão, em suma, sapiens e demens ao mesmo tempo, como gosta de falar o sociólogo Edgard Morin.


A sociedade humana – o mundo dos homens e das instituições – não se governa com facilidade. Está sempre submetida a dinâmicas e contradições difíceis de serem controladas. E quanto mais evoluiu, quanto mais caminhou em direção à sua fase de plena globalização, mais foi ficando desafiadora. Por um tempo, entre as décadas de 1950 e 1980, a regulação dos mercados e as políticas de bem-estar ajudaram a organizar uma socialidade mais justa e menos desigual, mas isso não se espraiou pelos diferentes países. O planeta ficou assim mais desigual, ainda que seus diferentes povos fossem se aproximando e interagindo. Mais tarde, a desregulação tomou conta de tudo, políticas neoliberais entraram na moda, os mercados se sobrepuseram aos Estados e o império das finanças exibiu suas garras, dando um xeque-mate em governos e políticos. Muitos cederam e permitiram que mercados, finanças e Estados compusessem um sistema que se dissociou das comunidades e passou a tiranizá-las. Em 2008, este sistema mergulhou em crise e espalhou seus gases maléficos por diversas regiões, a começar dos Estados Unidos e da Comunidade Europeia. 


E é assim que o mundo irá passar os últimos dias do ano. A crise que o devasta é econômica e financeira, mas carrega consigo duas características emblemáticas: não perdoa ninguém e não pode se valer das virtudes da política. Por isso não se resolve. O sistema responsável pela crise opera de costas para a política, esteriliza-a, escancarando a impotência de partidos e líderes políticos. Com isso, despoja as sociedades de seus principais recursos de produção de solidariedade e justiça social. Indignados e manifestantes saem às ruas por toda parte e fazem ouvir a voz de seus protestos, mas não se mostram com força suficiente para plasmar outra situação. Seja como for, estão em movimento.


Por isso, se é para nos lembramos do Natal e de seu simbolismo profundo, que pensemos por um momento, nesta última semana de 2011, nos caminhos que a política tem a oferecer para que a solidariedade possa ser celebrada de fato.
Feliz ano novo a todos.
[Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 24/12/2011, p. A2).

domingo, 11 de dezembro de 2011

Dilemas presidenciais


Após sequencia constrangedora de quedas de ministros acusados de atuação indevida, cresceu muito a expectativa com a reforma ministerial anunciada para acontecer no início do próximo ano.
Um Ministério é uma equipe de governo. Sua eficiência depende de coordenação e unidade de ação, coisas que podem ser conseguidas ou por força de um projeto de governo que solidarize ética, política e intelectualmente seus integrantes, ou em decorrência da manifestação de alguma disciplina partidária. Na falta destas condições, a equipe pode até vencer os jogos que disputar, mas fará isso sem convencer e tropeçando nas próprias pernas.
Uma boa equipe de governo precisa levar em conta o perfil de seus integrantes. Atributos técnicos são indispensáveis. É patético ver um ministro titubear quando instado a comentar as decisões que tomou ou não ser reconhecido pela comunidade científica que serve de referência às políticas que adota e dá sustentação a elas. Mas atributos técnicos precisam vir juntos com visão política, sensibilidade e apoios políticos. Sem isso, podem atrapalhar ou incentivar operações tecnoburocráticas, hostis à dimensão social das políticas públicas, ajudando assim a enrijecer tanto o aparelho de Estado quanto a ação governamental.
Equipes competentes são bem dimensionadas. Não devem ter sobras ou superposições funcionais, fatores que produzem desperdício de recursos, conflitos improdutivos e desorientação. Um Ministério grande demais onera o Estado e sobrecarrega seu coordenador (no caso, o presidente), obrigando-o a dilatar a agenda ou a se cercar de assessores com que dividir as reuniões. É mais difícil de ser coordenado. Um corpo ministerial pequeno demais, por sua vez, tende a prejudicar a agilidade governamental e a fazer com que as decisões fiquem distorcidas tecnicamente, já que pautadas por critérios estranhos às diferentes áreas.
Não é por outro motivo que a definição de um Ministério, ou sua reforma, assemelha-se a uma partida de xadrez, a um quebra-cabeça.
No Brasil, há um complicador adicional, que está na base do sofrimento que cerca a operação e seguramente explica o mau desempenho ministerial em 2011. Trata-se do assim chamado “presidencialismo de coalizão”, nome pomposo para uma prática nada dignificante, com a qual o Poder Executivo concede espaços e recursos de poder aos partidos políticos que se dispuserem a apoiá-lo no Congresso. Não há nenhuma exigência de compromisso programático ou de convergência de interesses substanciais nas manobras que produzem e administram as coalizões. Elas se fazem e vivem ao sabor de conveniências menores, desprovidas de critérios técnicos e indiferentes a eventuais projetos de governo. E são quase sempre não-condicionadas: o partido indica o ministro e passa a ter o direito de “preencher” a estrutura administrativa e o comando da área em questão, ou seja, a congestioná-la de companheiros, amigos e protegidos. O ministério passa a ser coisa deles, partido e ministro, ainda que esteja formalmente submetido à coordenação presidencial.
Compreende-se assim o alvoroço que acompanha o anúncio de que a presidente cogita de alterar sua equipe ministerial. Inflamam-se os que podem perder os cargos e os que sonham em garantir o controle futuro de alguma área. Ficam inseguros os que estão em ministérios mal avaliados ou que não conseguiram vingar, como é o caso, por exemplo, do Ministério da Pesca ou da Secretaria Especial de Portos. Movimentam-se os que percebem que suas estruturas estão se chocando com outras, mas que não aceitam vê-las absorvidas em um todo maior, nem mesmo se isso representar maior racionalidade, mais integração e melhores resultados.
Nada é fácil. É razoável que se defenda, por exemplo, a fusão das áreas que respondem pelas políticas para as mulheres, para os direitos humanos e para a promoção da igualdade racial. Mas também é razoável que se avalie quanto a fusão dificultará ao governo a afirmação categórica de uma ou outra daquelas políticas. 
A questão tem um claro componente técnico e político e reveste-se de grande relevância para o sucesso do governo. Seu equacionamento deveria excluir conveniências partidárias, chantagens e ameaças da base aliada, o egoísmo predatório de parte da classe política. Que deixem a presidente escolher livremente sua equipe. É para isto, aliás, que ela foi eleita, este é seu mandato. A política, porém, está tão ruim, tão vazia de grandeza, desprendimento e compromisso coletivo, que não é de se esperar que, justo agora, políticos e partidos recuem um passo e deixem o “presidencialismo de coalizão” se manifestar com dignidade, como uma aliança em prol do sucesso governamental. Restará, assim, à Presidente, a opção de escolher entre maquiar sua equipe, trocando seis por meia dúzia, ou enfrentar os partidos, com o risco de perder base de apoio para aprovar suas decisões. É um dilema, com certeza. Mas governar é, acima de tudo, viver dilematicamente. [Publicado  no caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 11/12/2011, p. 3].

sábado, 3 de dezembro de 2011

O Corinthians na Pittacos

Busto de Pittacos, cópia romana do original grego, Louvre
Eu não conhecia a Pittacos, Revista de Cultura e Humanidades. Fui apresentado a ela por meu amigo José Eisenberg, que me "obrigou" a colaborar escrevendo um texto que explicasse com todas letras porque o Corinthians será o campeão brasileiro de 2011. Fi-lo com o maior prazer e com grande facilidade, claro, pois se há algo que não exige muita reflexão é falar bem do Timão. Quer dizer, falar bem ou falar mal. Neste início de dezembro, o mundo parece dividido entre torcedores e inimigos do Corinthians, cada grupo com sua dose de razões e paixões, simpatias e maus-olhados.

A Pittacos é bem interessante. Uma iniciativa editorial independente, como ela se propõe a ser, sempre ajuda em tempos bicudos como são os nossos. 

Prá quem não sabe (eu não sabia) ou não se lembra, a revista explica que Pítaco foi um dos Sete Sábios da Grécia Antiga. Filho de Hirrádio, foi o general que conduziu o exército da cidade de Mitilene à vitória na batalha contra os atenienses. Como prêmio, os mitilenos dedicaram a Pítaco as mais altas glórias, e lhe concederam o poder supremo. Não se sabe se era dado a opinar sobre tudo.

Vejam lá:  www.revistapittacos.org.
Quem quiser entrar em contato ou submeter um artigo para publicação deve escrever para  revista.pittacos@gmail.com.




segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A soma de todos os nossos malfeitos


Em torno da indignacao. Ilustração Cadu Tavares
Não seria preciso arder uma nova fogueira em Brasília – a do ministro do Trabalho, Carlos Lupi – para que a corrupção voltasse às manchetes. Não haveria como retornar ao primeiro plano algo que dele não sai há anos.
A primeira reação de quem se incomoda com a corrupção é apontar um culpado. Culpados evidentemente existem. Ninguém que esteja numa função de responsabilidade deixa passar como rotina certos procedimentos explosivos, que deslocam a tomada de decisões para a beira do precipício. Governar ou administrar é uma operação delicada, e quem vacila no cumprimento das obrigações e abre espaços para lobistas inescrupulosos, parentes vorazes, protegidos e amigos, ou deseja testar os limites da legalidade, não pode merecer perdão. Por bem menos muitos cidadãos são presos ou têm a vida reduzida a pó. Não há ingênuos na alta administração, muito menos anjos. Todos sabem distribuir favores, castigos e recompensas com a mesma desenvoltura. Ninguém rasga dinheiro, assina cheque em branco e pode alegar ter sido enganado. Porém, se sempre há culpados, nem sempre é fácil descobri-los ou atribuir as devidas responsabilidades na cadeia de comando da corrupção. Punições exemplares e cortes de cabeças coroadas são importantes, mas não desmontam esquemas.
A corrupção pode derrubar governos ou atrapalhar sua atuação. É uma arma de todas as oposições. Isto acaba por fazer com que denúncias e apurações fiquem envoltas numa névoa de suspeita. Serão os fatos aqueles mesmo ou tudo não passa de armação para desgastar o governo? Como as coisas hoje vêm a público de modo espetacular e ganham rápida difusão graças aos circuitos midiáticos, sempre haverá alguém para dizer que a “grande mídia golpista” está por trás dos escândalos. Tal tipo de acusação faz parte do jogo e ajuda a que muita gente reflua da luta anticorrupção por receio de ser confundido com os adversários de seu partido ou representante.
Corruptos e corruptores são malvistos. A petulância, a desfaçatez e a arrogância deles agridem a ética do cidadão comum, embora possam ser assimiladas pela ética dos políticos. Irritam e intimidam as pessoas, que procuram seguir com a vida tanto quanto possível longe de atritos com a legalidade. Quando a corrupção surge na esfera governamental e na política, o efeito é ainda pior, pois as pessoas tendem a perder a confiança que algum dia depositaram em seus representantes, transferindo isso para todo o sistema representativo.  Não é por acaso que a presidente Dilma cresça em prestígio quando afasta ministros suspeitos de atos ilícitos ou indignos. Perderá pontos se acobertá-los, permanecer indiferente ou paralisada diante deles. A ética do cidadão comum manifesta-se invariavelmente misturada com lampejos moralistas, podendo chegar mesmo a ser inteiramente comida por eles. Pode-se atacar a corrupção de um ponto de vista ético, político, econômico ou moral, cada um com seu mérito. É insensato, por exemplo, fazer como o ex-deputado José Dirceu, que dias atrás etiquetou as atuais denúncias de corrupção como “campanha moralista”. O que teria desejado dizer com isso? Que não é correto pensar a corrupção pelo registro do bom e do mau, de certo e do errado, ou que o correto seria interpretar certos desvios de conduta como sendo inevitáveis em quem tem responsabilidades governamentais?
Se quisermos descobrir como e porque a corrupção ressurge sem cessar, teremos de cortar mais fundo, ir além da caça aos culpados. A corrupção anda de braços dados com a desmoralização da política, dos políticos e de seus partidos. Nunca como hoje a classe política foi tão ruim, nunca os partidos foram tão frouxos e desorientados, nunca a política foi tão improdutiva. Na melhor das hipóteses, as pessoas esperam resultados dos governos em sentido estrito, do Poder Executivo, que costuma emergir cercado de pompa, inflado de expectativas e disfarçado de “vítima” de subordinados incompetentes e interesses poderosos. Um círculo, assim, se fecha: a má-qualidade da política fornece oxigênio para a corrupção e dificulta o combate a ela.
Mas não se trata só de má qualidade dos representantes. Políticos despreparados e sem visão social abrangente, tanto quanto corruptos e corruptores pendurados na administração pública, são impulsionados por defeitos sistêmicos. Nosso “presidencialismo de coalizão”, por exemplo, é parte importante do problema. Sem coalizões, os governos não governam; mas com elas, encharcadas que estão de interesses fisiológicos, ficam expostos a muitos malfeitos e dissonâncias, têm de carregar peso desnecessário e perdem coerência e unidade de ação. Embalada e protegida por este sistema, a corrupção se reproduz, governo após governo.
Por fim, há um fator que deriva da época. Sendo verdade que passamos a viver de modo mais rápido, individualizado e fora de controle, inseridos em redes e estruturas cortadas por riscos e crises permanentes, então ficou mais difícil controlar o que quer que seja. A corrupção adquiriu “vida própria”, atingindo áreas e pessoas antes tidas como inatingíveis. Também cresceu a percepção social dela, o que a torna ainda mais intolerável.
Isso não significa que somos impotentes perante este problema que se alimenta de hábitos seculares, bebe em muitas fontes e afeta tanto o setor público quanto o privado. Não poderemos, porém, eliminá-lo pela raiz se o reduzirmos à responsabilização pessoal ou acharmos que a solução virá da mera (e difícil) mobilização da sociedade civil. Avanços consistentes dependerão de múltiplas ações combinadas e só alçarão voo sustentável se estiverem articulados com uma perspectiva reformadora e democrática do Estado e da política, que entre outras coisas ajude a República brasileira a se tornar efetivamente republicana. [Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 26/11/2011, p. A2].

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Leon Cakoff e a Escola de Sociologia

Escola de Sociologia e Política de São Paulo, 1972. Foto de Claudio Kahns
Quando o jornalista e crítico de cinema Leon Cakoff morreu, em outubro passado, pensei em escrever sobre ele aqui neste blog. Não tanto sobre ele ou sobre a Mostra Internacional de Cinema que ele idealizou e protagonizou durante tanto tempo. Mas sobre “nós”, o grupo de pessoas que com ele estudaram na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, entre 1969 e 1972. Seria também, inevitavelmente, um texto sobre como eu via o Leon, o que me lembrava dele e de como interpretara, nos anos 70, seu papel na nossa comunidade de estudantes de ciências sociais.
Faria sentido. Afinal, memórias são para serem recordadas e, quando possível, relatadas. Ao fazermos isso, nos reconhecemos a nós mesmos, reiteramos ou recuperamos identidades, interpretamos ou reinterpretamos a história, mesmo que em escala pequena, na dimensão da aventura pessoal, grupal.
A Escola de Sociologia e Política – ela não, mas as pessoas que conviveram nela em um momento particular – foi para mim bem mais do que a instituição que me deu um diploma de sociólogo. Ela me formou para a vida. Fez o que a universidade deveria fazer sempre. Forneceu-me a chance do amadurecimento. Entrei lá de um jeito, saí completamente de outro. Os que fizeram o mesmo percurso ficaram gravados na memória e jamais saberei dizer a cada um dele a importância que tiveram em minha biografia. Até mesmo porque foram poucos os que se mantiveram em contato, aprofundando amizades e companheirismos. A maioria foi separada pela vida.
Entre os que ficaram em contato, a conversa sobre a ESP é recorrente. Todos sonham em resgatar um dia aquela experiência, fazê-la falar. Estudamos lá em tempos difíceis, de ditadura, repressão, ameaças. A escola pequena e isolada nos protegia, e conseguimos estudar coisas e autores que estavam ausentes em outras faculdades. Fizemos política estudantil em grande estilo: como parte da luta contra uma ditadura que destruía o país, calava e reprimia, mas que não matava sonhos. Fomos democratas, subversivos, revolucionários, do jeito que deu. Acho que cumprimos algum papel. E melhoramos todos como pessoas.
Quando Cakoff morreu, alguns dos amigos daquela época conversaram entre si. Solidarizamo-nos com a memória do Leon a partir das nossas memórias. Entre telefonemas e e-mails, lembramos episódios e eventos que não saem da cabeça. Como a Santa Festa que organizamos em 1972, com direito a uma marcha pela cidade de São Paulo para divulgá-la. Não sei bem como, mas o passeio (uma esbórnia generalizada) foi filmado e eu fui o camera-man! Como a revista Di-Fusão, na qual publiquei minhas primeiras resenhas. Ou como as manifestações que fizemos contra o voto nas eleições de 1972 (creio). Numa delas, fui encarregado de entregar o manifesto que havíamos redigido para o então deputado Franco Montoro, do MDB, que iria à ESP como paraninfo de uma turma de formandos. Cumpri à risca a tarefa, tremendo de medo e orgulhoso do ato heroico.
Meu amigo Lúcio Flávio Pinto, colega daqueles anos e jornalista dos melhores, publicou um belo texto sobre Leon Cakoff no Jornal Pessoal que edita em Belém, Pará. Disse muitas coisas que eu diria se tivesse escrito o texto que planejara. Disse muito mais, valendo-se do seu talento como escritor e de seu faro de repórter.
Reproduzo-o abaixo com uma alteração na foto. A que ilustra este post também é do hoje cineasta Cláudio Kahns, e remonta ao tempo em que estudávamos na Escola. Estão nelas muitos dos meus colegas de turma. Leon não aparece, certamente porque na hora estava enfiado em algum cinema vendo um filme...
O texto de Lúcio, que aqui repercuto, nos ajuda a manter viva a memória de um tempo que ficou para sempre inscrito na história do Brasil. Um tempo duro, que conseguimos suportar e enfrentar com os recursos que tínhamos: estudando, namorando, fazendo política e festa. Recursos que, ontem como hoje, são revolucionários.

Os tempos sombrios e a alegria de viver
Lúcio Flávio Pinto
Publicado em Jornal Pessoal, Belém, nº 501, novembro de 2011.

Não conheci o Leon Cakoff famoso, que criou a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, reduto da fauna e flora cultural da cidade. Esse Leon morreu no dia 16 do mês passado. Tinha um ano a mais do que eu. Não era muito, mas pesou bastante nos tempos em que fomos alunos da Escola de Sociologia Política de São Paulo, na transição dos anos 1960 para os 70, sob o estigma do Ato Institucional número 5, a matriz de chumbo daqueles tempos difíceis.
Depois que deixamos a escola, só o vi uma vez. Cruzávamos pelo saguão do aeroporto de Congonhas. Meu primeiro impulso foi ir até ele e abraçá-lo, mas o instinto me freou. Como Leon reagiria? Poderia me plantar aquele olhar superior e arrogante, virar as costas e seguir seu caminho, depois de me conceder uns segundos de sua atenção. Ou podia me abraçar com efusão, dar tapas nas minhas costas e me permitir acompanhá-lo ao café mais próximo. Depois, cada um por si.
Leon tinha uma notável percepção das oportunidades e a explorava ao máximo. Adaptava-se como camaleão às circunstâncias para delas tirar proveito. Seu olhar estava fixado no alto, no topo, nas culminâncias sociais. Não havia dúvida: faria carreira. Qual? Naquela época não sabíamos – nem mesmo desconfiávamos. Mas não ignorávamos que, mesmo estando conosco, Leon Cakoff não era um de nós: se desprenderia do grupo tão logo alcançasse o lugar que imaginava seu desde sempre, no alto do picadeiro.
Só era ligeiramente mais velho do que a maioria de nós, mas tinha mais experiência, conhecimento da vida. Não tanto quanto sugeria com seu ar de superioridade, sua ironia e seu sarcasmo, conforme iríamos descobrir aos poucos, Mas devia influir o fato de ter vindo da Síria, onde nasceu como Leon Chadarevian. Não era o líder do grupo, mas, presumindo a superioridade que alardeava, o aceitávamos como guia ou consultor. Era distinto de nós, que formávamos uma irmandade.
A Escola de Sociologia e Política escapara ao expurgo e perseguição dos inquisidores do regime militar. Primeira instituição de nível superior na matéria, criada em 1933, ficara como instituição da USP, mas fora do campus. Na praça General Jardim, estava cercada por bares, boates, restaurantes e as reminiscências das faculdades isoladas. Os repressores a esqueceram.
Graças a isso, pôde dispor de professores para ensinar o que, aos olhos dos donos do poder, era a quintessência da subversão. Ali, ao lado da biblioteca infantil apropriadamente denominada Monteiro Lobato, tínhamos acesso a alguns itens do índex do regime, sob as vistas complacentes do muito mineiro Antônio Delorenzo Neto e do paulistano Vicente Marotta Rangel.
Tomamos conta do Centro Acadêmico, criamos um cursinho preparatório, com aulas nos altos do belo casarão onde a escola funcionava, publicamos uma revista (Difusão) e fazíamos nossa subversão nos limites do tolerado. Numa dessas manifestações, levamos panfletos que redigimos contra o voto de cabresto (pela anulação do voto como forma de protesto) para o Cine Metrópole, na linda galeria do mesmo nome, ao lado da Biblioteca Municipal Mário de Andrade.
Depois de vermos sessões seguidas do documentário sobre o festival de música de Woodstock, nos Estados Unidos, deixamos o panfleto nas poltronas e, ainda tremendo, fomos comemorar nossa ousadia num daqueles muitos botecos que nos serviam de agasalho e refrigério.
Em época ruim, péssima, de abuso e medo, éramos felizes porque fazíamos aquilo em que acreditávamos e estávamos convencidos de que assim mudaríamos o mundo para melhor. Tínhamos ideais, sonhos, utopias. Leon, sei-o hoje, tinha planos muito pessoais, que cumpriu com esmero. Era um dos mais badalados personagens da maior cidade do país e do continente.
Sua morte recolocou em contato os antigos amigos cabeludos, hoje sessentões a caminho da mais alta maturidade. Espraiados pelo espaço e pelas especialidades, mantemos um elo indissolúvel com a nossa história e as nossas esperanças. Ainda não perdemos de todo a esperança, fonte de jovialidade, que iluminava nosso rosto e nos dava certa tranquilidade para encarar a realidade hostil.
Como nessa foto, que o hoje cineasta Cláudio Kahns me mandou, batida por ele, para minha total surpresa e gratidão. Toda turma foi me levar à despedida na antiga rodoviária paulistana, uma das minas de ouro do grupo da Folha de S. Paulo, de Frias & Caldeira, no centro deteriorado da cidade. Eu partia para uma aventura: viagem rodoviária até Belém, na longínqua e estranha Amazônia da minha origem (não havia outro amazônida na escola), que provocava espanto e incredulidade entre os meus caros amigos paulistanos.
Brincávamos e sorríamos felizes. O mundo era ruim. Mas nós íamos mudá-lo – já, já.