domingo, 29 de junho de 2014

Crise universitária, greves e silêncios




Embolada com a Copa e as férias de julho, salpicada com o tempero da disputa eleitoral de 2014, a greve que reverbera nas universidades estaduais paulistas tem tudo para dar errado. Mas reflete um quadro de mal-estar, deve ser levada a sério e ser bem compreendida.
Há uma cortina de silêncio turvando o cenário universitário paulista. Não se ouvem vozes políticas e poucas vozes acadêmicas se posicionam. Os sindicatos das categorias falam o de sempre, e mesmo assim sotto voce. A impressão é que a greve não produzirá impacto na rotina universitária, ainda que haja paralisações em várias unidades e a belicosidade esteja configurada. Ela ajuda a quebrar mais um pouco as pernas das instituições, pois atua de costas para o futuro.
A graduação é onde o estado de greve prolifera. Está em processo de desvalorização há anos, condicionada pela confusão geracional prevalecente entre os jovens, pelo desinteresse dos professores, pela falta de renovação dos currículos e das estratégicas pedagógicas, pelo crescimento desordenado e sem planejamento. Desagrada e preocupa a todos. Não foi por acaso que a UNESP, pioneiramente, elegeu 2014 como Ano da Graduação Inovadora, decisão que merece ser aplaudida e aprofundada. Está aí, em boa medida, o calcanhar de Aquiles da universidade atual.
A greve virou rotina na graduação. Não incomoda, na melhor das hipóteses inflama. Seus efeitos são somente deletérios: desorganiza ainda mais os cursos, desanima os estudantes, atrapalha a formação e o estudo, prolonga o caos e a desagregação nas unidades de ensino, embaralha calendários e cronogramas. Em nome da luta sindical, greves se tornaram parte da paisagem. Por isso, os mais “revoltados” optam por táticas de ocupação de salas de aula e diretorias, ações que invariavelmente se fazem acompanhar de alguma depredação, às vezes de algum confronto com a polícia; o resultado é mais desertificação e desesperança.
Em artigo conjunto publicado dia 18/6 (Autonomia, impactos e compromissos), os reitores das três universidades estaduais defenderam a autonomia de gestão financeira com vinculação orçamentária, seu papel estratégico na progressiva qualificação das universidades paulistas e o retorno que os investimentos realizados têm dado à sociedade. Reforçaram a ideia de universidade pública e ajudaram a esfriar o entusiasmo daqueles usam a crise atual para propor o fim do ensino gratuito.
Os três reitores disseram coisas importantes, mas não disseram o mais importante. Há um ponto solto no ar: como é que se chegou à situação atual? O diagnóstico indica que o naufrágio financeiro da USP está a arrastar consigo a UNESP e a Unicamp. Deve ser assim? Cada instituição também não é autônoma perante as demais? Como explicar o fracasso? Não basta que se acusem gestões anteriores, pois erros e falhas também derivam de uma modalidade de gestão.
Membros ativos do Conselho de Reitores das Universidades Estaduais-CRUESP, os dirigentes deveriam esclarecer as funções desse organismo. O que tem feito ele para que haja em São Paulo uma efetiva política de ensino superior? A sensação prevalecente é que o CRUESP funciona como plataforma para a viabilização da autonomia orçamentária, mas não como base política, gerencial e doutrinária para ações conjuntas da USP, da UNESP e da Unicamp. É uma via de passagem, não de coordenação. Não discute, por exemplo, o sistema de ensino superior que faria mais sentido no estado de São Paulo. As três instituições devem seguir a mesma trilha ou cada uma deve buscar sua própria especificidade, sua vocação e identidade? Não poderiam compartilhar e dividir entre si a excelência internacional, a formação científica e o ensino mais profissionalizante? Como fazer para que o mantra da “internacionalização” – que hoje somente serve para acirrar a competição entre as universidades – seja traduzido como fator que impulsione a circulação de conhecimentos, professores e pesquisadores?
O CRUESP deveria ser o epicentro de uma discussão substantiva. Limitado a cuidar da autonomia e a entrar em cena nos meses de greve e dissídios trabalhistas, torna-se subalterno. Seu reposicionamento no momento atual ajudaria bastante.
Os reitores também não disseram qual o tamanho da crise e o que pode ser feito para que se a supere. Trata-se de um vento passageiro, a ser debelado com procedimentos cosméticos, ou estamos frente a um tsunami que exigirá decisões complexas e somente será vencido se houver coesão interna, paciência e destemor? Até agora, adotaram-se medidas amargas; é preciso dar um passo à frente.
O silêncio dos reitores preocupa, mas não é o principal problema. Ele é amplificado pelo silêncio dos sindicatos e dos núcleos de poder acadêmico (departamentos, congregações, conselhos universitários, diretorias). Os sindicalistas acreditam que não há crise, que os indicadores têm sido maquiados, que o governo “neoliberal” de São Paulo não repassa verbas e que o certo é usar a reserva financeira para aumentar salários. Professores e colegiados, submetidos passivamente à pauta sindical, não aceitam que se suspendam concursos e contratações, vitais para que se mantenha a qualidade do ensino e da pesquisa. Ninguém se dispõe a ceder.  Fala-se superficialmente que políticas de privatização e sucateamento estariam a ser praticadas, que os salários são baixos e as condições de trabalham deixam a desejar, mas nada se ouve de propositivo. Os estudantes vão a reboque, nem sequer aparecem.
Se os reitores não falam, se a comunidade acadêmica não se posiciona e se os sindicatos se limitam a palavras de ordem e a reivindicações pontuais, a situação tende a estagnar e a ir piorando pouco a pouco. A falta de interlocução e de diálogo interno deixa a universidade à deriva. A greve acabará, mas o mal-estar permanecerá, a corroer aquilo que todos juram defender e valorizar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/6/2014, p. A2].

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Para além da “Copa das Copas”




Com o início das oitavas de final da Copa do Mundo, amanhã, há balanços, expectativas e previsões para todos os gostos. Carlos Alberto Parreira, por exemplo, acho que "agora a Copa começou”, sugestivo modo de dizer que daqui para frente haverá “hierarquia”, somente os bons se enfrentarão e as partidas serão decisivas. O Brasil pegará o Chile, diante do qual a "hierarquia" é histórica mas não apareceu na primeira fase, pois os chilenos foram melhores que os brasileiros. Outros preferem acentuar o "predomínio" das seleções americanas em detrimento das europeias, além do fracasso de grandes ex-campeãs como Itália, Espanha e Inglaterra. Há os caçadores de zebras, em busca dos times que surpreenderam. Há também quem se fixe na mordida de Luiz Suárez para entrar no mérito disciplinar do evento e quem se concentre em salientar o bom nível técnico e a dramaticidade da maioria dos jogos.
Se a seleção brasileira não encanta no campo e nem inspira confiança nos que torcem por ela, o mesmo não se pode dizer do evento como um todo. Algumas seleções encheram os olhos: Chile, Colômbia, Costa Rica, França, Argentina, Alemanha e Holanda mostraram que estão no Brasil em condições de vencer, ou ao menos impressionar. De modo geral, é unânime a constatação de que tudo está saindo muito além de qualquer cálculo. Turistas felizes, irmanados entre si e com os brasileiros, elogios bombásticos ao caráter acolhedor do país, estádios cheios, milhões de telespectadores e de comentários nas redes sociais, rios de dinheiro correndo, patrocinadores rindo de boca a boca -- é como se se dissesse que o mundo parou para assistir à Copa.
A Copa é, portanto, um sucesso. Como tenderia a ser mesmo, em que pese a falação em torno do "Não vai ter Copa" -- slogan que foi bradado por aí mas careceu de maior tradutibilidade, quer dizer, não foi processado simbolicamente nem assimilado pelas pessoas, terminando por morrer na praia. No "país do futebol" e diante de um evento de tal magnitude e tão encorpado empresarialmente, toda tentativa de boicote seria um fracasso, além de grosseiro erro político.
O bordão criado pelo governo federal, pela FIFA, pela grande mídia e pelos patrocinadores -- a "Copa das Copas" -- é evidentemente superlativo. Bom para agitar, acima de tudo. Mas não reflete bem a realidade.
Antes de tudo, porque qualquer megaevento, se comparado com outros de igual proporção realizados anos atrás, será categoricamente maior e terá mais repercussão. O mundo está mais conectado, as pessoas vivem em redes, circulam mais, viajam o tempo todo, o mercado impulsiona tudo, transforma até partidas de dama em espetáculo -- essa é a natureza da vida atual. É um erro dizer que a Copa de 2014 está sendo melhor do que a de 2010 ou a de 2006, simplesmente porque a vida é outra, não há termo de comparação, nem quando se privilegia o preço dos estádios.
Deste ponto de vista, o mundo se tornou efetivamente plano. Nunca o futebol foi tão capitalista e tão multinacional, nunca tantas pessoas foram por ele seduzidas. É um negócio como poucos. Em termos de jogo, seu agonismo, a disposição dos jogadores para a luta e a vitória, cresceu, em parte porque futebol é assim, em parte porque vem sendo turbinado sistematicamente tanto pela força do dinheiro quanto pelas novas técnicas e tecnologias voltadas ao preparo físico dos atletas. Uma disputa mundial de futebol, hoje em dia, será sempre um espetáculo saboroso e envolvente, arrastando até mesmo quem por ele não se interessa.
É pouco importante, portanto, discutir se em 2014 estamos tendo a “Copa das Copas”. O importante é compreender como é que um evento que muitos vaticinavam como fadado ao fracasso deu certo, em que pese toda a controvérsia. A força do espetáculo futebolístico se impôs. O marketing, a publicidade e a sofreguidão midiática deram uma mão. Até os políticos contribuíram: todos, de todos os partidos e correntes ideológicas, abraçaram-se na patriótica corrente “prá frente, Brasil”, vestiram verde-amarelo e saíram por aí. Mesmo que sem querer, foram atrás de Lula, que chegou a declarar que “o Brasil vai ganhar a Copa porque precisa disto”.
Na contracorrente do que a seleção faz em campo, o entusiasmo tomou conta do país. A Copa virou uma espécie de cataplasma universal, a cura para todos os males, desejo coletivo e ferramenta de união nacional.  O que sugere, entre outras coisas, que a Copa não terá como produzir efeitos eleitorais, como desejariam os que se batem entre si de olho nas próximas eleições. Melhor assim.
Ainda se falará muito do tal “legado da Copa”, razão maior das controvérsias que cercam o evento. Mas até agora, no encerramento da primeira fase, não se pode reclamar do espetáculo oferecido ou das condições para a circulação, o bem-estar e o trabalho de seus protagonistas principais, jogadores e torcedores. Houve inovações táticas, uso de tecnologia, ótimos jogadores além dos badalados, partidas emocionantes, gols de placa, grandes assistências, erros fatais de árbitros, suspeitas de favorecimento, manobras geniais de técnicos, choros e reclamações, locutores e comentaristas desnecessários, em suma, tudo o que é inerente a este esporte.
O futebol só tem a agradecer.

terça-feira, 24 de junho de 2014

De um junho a outro



  

Para Luiz Werneck Vianna, cujas
análises sempre iluminam

De junho de 2013 a junho de 2014, cristalizou-se no Brasil a convicção de que manifestações por direitos, políticas e salários são uma das condições da vida democrática. Passou-se um ano, chegamos à Copa, o processo eleitoral se configurou com maior clareza e os manifestantes não saíram das ruas.
Já não exibem a mesma vitalidade de antes, o mesmo magnetismo surpreendente e cheio de promessas que levou, de um jato, milhões de pessoas às ruas em junho de 2013. Também seus protagonistas mudaram, ou se ampliaram. Não são mais, tipicamente, jovens das camadas médias, desejosos de ver atendidas suas postulações por melhores políticas e por governos mais atentos ao que ocorre nas grandes cidades, aos transportes, à mobilidade, à segurança e às possibilidades de usufruto pleno da vida urbana. Aqueles manifestantes, que permanecem ainda que em menor número, fixaram uma pauta e permitiram, entre outras coisas, que se tomasse consciência do custo da democracia e do despreparo das forças policiais. Como se sabe, parte do combustível que levou as massas às ruas em junho de 2013 veio do repúdio ao modo como a polícia manejou e reprimiu as manifestações.
Por terem tido caráter explosivo e espasmódico, por sua natureza “horizontal” e refratária à política institucionalizada, as ruas de junho refluíram. Não conseguiram manter o pique. Passaram para um estado mais latente, uma espécie de stand by no qual os fatores que as movimentaram hibernam, sem perder potência e sem serem devidamente processados. Neste refluxo, produziram dois efeitos.
Por um lado, deixaram evidente o despreparo do mundo político e dos governos para dialogar com a pauta posta em 2013. Pouco foi feito para inseri-la nas políticas praticadas. Sequer o discurso governamental foi expressivamente reciclado. Os partidos permanecem surdos e mudos. Uma ou outra iniciativa reflete algum esforço para incorporar os novos termos do jogo político e social, caso, por exemplo, das reuniões promovidas pelo PT com blogueiros e ativistas das redes sociais.
Pode-se dizer o mesmo da decisão do governo federal de incrementar sua política de “participação social” com a criação de um novo conselho destinado a fornecer mais voz às entidades da sociedade civil. Participação é sempre bom, mas sua força somente pode vir da luta. É uma conquista, não uma concessão. A sociedade civil integra o Estado e deve buscar invadi-lo sempre, mas não é subalterna a governos e não deveria seguir seus comandos, suas agendas ou seus interesses, por mais progressistas que possam ser. Quando assim faz, é cooptada e deixa de ser sociedade civil, convertendo-se em “terceiro setor”: algo estéril, destinado muito mais a prestar serviços do que a encaminhar contestações e novas agendas ou a exercer e ampliar controles sociais.
Seja como for, tudo isso é muito pouco: são iniciativas cortadas pelo interesse eleitoral e pela busca de hegemonia. Fazem parte do jogo político, mas é preciso que se reconheça bem o terreno em que estão postas.
Por outro lado, o refluxo trouxe consigo uma espécie de substituição: os jovens das camadas médias, com suas ações “horizontais” e suas pautas múltiplas, cederam o espaço a setores mais organizados, com suas pautas simplificadas e suas ações “verticais”, ou seja, coordenadas por entidades à moda antiga, com chefes, bureaux políticos, comandos e ferramentas de ativação. Voltaram à cena os sindicatos, as greves, as lutas por salários e por demandas materiais específicas (moradias, por exemplo).
Como escreveu Luiz Werneck Vianna, com a costumeira argúcia, “desde junho de 2013 as ruas não têm dado tréguas em suas manifestações, primeiramente sob as bandeiras dos direitos, como os de acesso à saúde, à educação e à mobilidade urbana, e, nesta segunda onda dos dias presentes, com o claro registro da dimensão dos interesses. Em poucos meses, mudaram os temas e os personagens. As camadas médias, antes com massiva participação, cederam lugar a categorias de trabalhadores demandantes de melhorias salariais, por vezes à margem da orientação dos seus sindicatos, e a movimentos sociais de extração social difusa, como os do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), boa parte deles sob a influência de partidos da esquerda radicalizada”. [, Estadão, 22/06/2014, p. A2].
A troca dos direitos pelos interesses não foi, claro, radical nem completa. As duas dimensões continuam a interagir. Mas a inflexão foi importante e representou uma mudança de qualidade. Se velhos e novos personagens vierem a caminhar de modo mais articulado, a contestação será potencializada. Não é esse, porém, o cenário provável, ao menos no curto prazo. Por enquanto, o único elo que entre eles se estabeleceu teve a ver com o idêntico reconhecimento de que o fator que os impulsiona é um gigantesco mal-estar social – ora expresso na má qualidade de vida, ora no medo da inflação – e a recusa da política. Nos termos de Werneck Vianna, ambos os atores “guardam em comum o mesmo viés economicista e a mesma distância quanto à política”.
A explosão de junho de 2013 não caiu do céu. Surpreendeu pela força, mas estava em preparação desde bem antes. Há mais de uma década o país vinha se contorcendo, como se estivesse a sentir as dores de um crescimento. O lento crescimento econômico não impediu que se processasse um importante processo de inclusão social, turbinado por políticas governamentais que jogaram para cima alguns milhões de brasileiros que estavam estacionados na linha da pobreza e geraram uma forte mobilidade social. A sociedade se recompôs. Mas fez isso de maneira típica: o deslocamento para cima foi impulsionado pelo consumo, não tanto por direitos. A cidadania se dilatou pela via do consumo, fazendo com que entrassem no circuito milhões de indivíduos soltos demandando melhores serviços públicos e maior poder de consumo.
A mola disso tudo foi, portanto, economicista: a mola do interesse e da defesa das posições conseguidas.
O processo, além do mais, não foi acompanhado de nenhum projeto de sociedade. Os mais ricos – as “elites” das velhas classes médias – reagiram como se estivessem a ser ameaçados por “emergentes” interessados em ocupar lugares e espaços antes tidos como invioláveis (shoppings, aeroportos, bairros). A reação foi regra geral de desconforto e mal-estar, mas algumas vezes se fez acompanhar de agressividade e histeria, desvelando traços de uma mentalidade senhorial e estamental ainda presente na sociedade.
Sem projeto de país, as medidas de inclusão não tiveram como preparar a sociedade: não incluíram os que já estavam incluídos, dispensando-se de educá-los. Boa parte da disputa política que corta o país nos últimos anos – expressa nas tensões entre PT e PSDB – tem a ver com isso. A sociedade não mais se reconhece a si própria, não sabe bem a direção a tomar e o que esperar, e passa a se defender com os recursos de que dispõe. Invariavelmente, projeta sua agressividade para o campo político, contaminando-o. Como os partidos não são civilizadores, como não existem propostas claras para ninguém e como as instituições de intermediação social funcionam muito precariamente, tudo fica solto no ar, meio desconjuntado, fora de controle e sem eixo.
O clima eleitoral potencializa isso tudo. O baixo nível prevalece em todos os níveis, como se não houvesse espaço para a sensatez, a serenidade e a ponderação. O maniqueísmo grosseiro e rasteiro dá o tom: existiram sempre santos e demônios, massas e elites, pobres e ricos, farsantes e autênticos, numa falsificação grosseira da vida brasileira como ela é e numa deturpação do conflito democrático. De intransigência em intransigência, de ódio em ódio, de polarização em polarização, a política vai sendo rebaixada, coberta por uma nuvem de adjetivos, impropérios e simplificações. Trata-se o país como se ele estivesse em guerra civil. Perdem-se oportunidades preciosas para consolidar a democracia e construir um futuro mais consistente.
Não pode espantar, assim, que entre junho de 2013 e junho de 2014, não se tenha avançado. Também não surpreende que atitudes violentas e selvagens continuem a proliferar nas manifestações, a provar que a falta de coordenação, de centros diretivos e de estruturas organizacionais mínimas termina por expor as manifestações a muitas intempéries.
A violência que atrapalha e desgasta as manifestações também é de um tipo novo. Sua persistência mostra que não há política capaz de incorporar e direcionar (portanto, educar e civilizar) os diferentes setores sociais revoltados.
Não se trata de black blocs, de quem se pode discordar mas que carregam consigo um “ódio” direcionado ao sistema. Os que, ultimamente, têm quebrado, batido e incendiado são personagens que se põem abertamente fora da política, fora da massa e da luta pela conquista do que quer que seja. São simulacros de cavaleiros do apocalipse, interessados em fazer não com que o mundo se reorganize, mas sim que se desfaça numa grande explosão final. Não têm qualquer ideologia, não são anticapitalistas nem radicais da democracia. Não são anarquistas. Nada representam, portanto. Somente conseguem aparecer, causando caos e balbúrdia entre manifestantes com causas, porque estes últimos não têm estruturas de segurança e proteção, porque a polícia não sabe como agir e porque há, em parte da sociedade, uma dose alta de conivência, movida pelo fascínio do espetáculo da violência, pela passividade e pela confusão ideológica.
Os arruaceiros nem sequer são provocadores. Sua função é servir como porta de entrada para todos os que desejam se infiltrar, provocar e desmoralizar as manifestações pacíficas e combativas das ruas. Não são inimigos da ordem, mas da democracia e da mudança social.
De um junho a outro não houve avanços, mas as coisas ficaram mais claras. Não a ponto de levarem à convicção de que alguma unidade de pensamento e ação deve vigorar entre as forças políticas democráticas e reformadoras – que ainda permanecem dedicadas à destruição recíproca em nome da conquista do poder. As coisas ficaram mais claras para os cidadãos, que passaram a compreender que a luta das ruas pode lhes prestar um importante serviço: na medida em que encontrar ritmo e molejo políticos, renovará a política como um todo e funcionará como efetivo fator de progresso social. 

sábado, 14 de junho de 2014

As vaias, as ofensas e as vozes dos estádios




A presidente Dilma agiu bem ao reagir às vaias e aos xingamentos que recebeu na abertura da Copa. Poderia ter deixado prá lá, mas achou melhor responder. Foi imperativa como sempre, mas mostrou firmeza. Disse que não são palavrões toscos que farão com que se intimide ou desista. Em lembrou que os brasileiros são um povo “generoso e educado”.
Já Lula, fiel a seu estilo provocador mas sempre calculado, chutou o pau da barraca: para ele, “a parte bonita da sociedade” mostrou que não tem educação e está conseguindo “o que nunca conseguimos: despertar ódio de classes”.
Para ambos, a vingança virá nas urnas, com a consagração do longo período petista no governo.
Dilma não foi o primeiro nem será o último governante a ser vaiado em praça pública. Só para ficar no âmbito dos estádios, aconteceu o mesmo com Aécio Neves no Mineirão, anos atrás. Quem hoje deplora as agressões verbais a Dilma deve ter aplaudido quando elas se dirigiram ao ex-governador mineiro. Vaias fazem parte da democracia. Xingamentos e palavrões pesados, não. São ofensas, puras e simples, pouco simbolizam em termos democráticos. Mas dizem alguma coisa e precisam ser decodificados. No mínimo, devem ser contextualizados.
As vozes brasileiras dos estádios não são generosas nem educadas. Não deveríamos sobrecarregá-las de expectativas. Uma coisa é o caráter do povo, tido como “cordial” (o que não é totalmente verdade, se se tomar a palavra pelo seu sentido mais próximo da ideia de lhaneza e da gentileza), outra coisa, bem diferente, é o povo convertido em torcedor. Aí não há visão romântica que sobreviva aos fatos. As mães dos juízes que o digam, assim como os próprios jogadores, muitas vezes difamados, agredidos e ofendidos pelos torcedores. A banana jogada para Daniel Alves mostra, aliás, que o problema não é só brasileiro. Torcidas organizadas, hooligans e brucutus existem em toda parte.
Há quem pense que não se deveria esperar isso da “parte bonita da sociedade”. É um preconceito às avessas. Por que não? Acaso ela seria melhor ou pior do que as partes mais “feias” da sociedade? Seria verdade que o povo brasileiro, na sua multiplicidade de tipos, seria no todo marcado pela generosidade, este é de fato um traço eloquente de nosso identidade nacional? Sei não, desconfio... Aqueles que vaiaram são os mesmos que se opõem às políticas sociais e àquilo que se considera os acertos dos governos petistas? Não se sabe. Talvez sim. Mas ali, dentro de um estádio de futebol? Impossível estabelecer com clareza. Portanto, valeria a pena ir mais devagar na associação das vaias ao padrão cívico das diferentes classes da sociedade ou mesmo ao teor daquilo que opõe os agressores à presidente.
Os que xingaram a presidente devem ser criticados, porque se valeram de uma forma de expressão que não integra o universo da política. O que teriam querido dizer? Não ficou claro, e também por isso as ofensas caíram no vazio. Poder-se-ia pensar que foram um espasmo de mau-humor diante de tanto oba-oba em torno da Copa, de descontentamento com a inflação ou de decepção com o montão de dinheiro gasto no Mundial. Pode ter sido manifestação de uma antipatia pessoal. Pode até ser que os caras fossem ódio puro e se sentissem mesmo como a “elite branca” que tanto incomoda ao PT. Dá prá pensar, ainda, que as ofensas nasceram de uma combinação de tudo isso.
Jamais saberemos com precisão.
No entanto, dá para afirmar que as ofensas foram improdutivas. Tiveram efeito bumerang: voltaram-se contra quem as praticaram. Além disso, vitimizaram a presidente, gerando uma corrente de solidariedade a ela.
Pode ser que tenham tentado copiar as vozes rotineiras dos estádios, usando palavrões comuns nas disputas futebolísticas mais acerbas. Como a Copa foi excessiva e indevidamente politizada, futebol e política se misturaram na cabeça das pessoas. Hoje, além do mais, a intolerância e a agressão verbal fazem parte de todos os ambientes e são compartilhados por todas as classes e segmentos sociais. A baixaria é geral. Os palavrões estão presentes na vida cotidiana: às vezes como palavrões mesmo, às vezes como grosseria verbal tida como “adequada”, tipo a daqueles que para te contestarem procuram te estigmatizar, que dizem, por exemplo, que tuas posições são "estúpidas" ou que não aceitam o teu direito de argumentar.
Os xingamentos do dia 12 de junho vieram evidentemente de oposicionistas, de pessoas que talvez não entendam direito as regras da democracia, que talvez sejam egoístas e queiram ver sangue, ou que brinquem com coisa séria. Mas não representam as vozes da oposição política. A tentativa de associá-las ao PSDB ou ao PSB é malandragem pura, pior que o pênalti cavado pelo Fred.
Reagir com discernimento e critério aos xingamentos, responder a eles de modo elevado, com firmeza e sem eleitoralismo, é a melhor forma de mostrar a ineficácia daquela manifestação. Fazer o contrário é colocar mais lenha na fogueira, explorar uma divisão de classes que Lula diz repudiar e pavimentar a estrada para uma disputa eleitoral de baixo nível. Que nada agrega de bom e tensiona artificialmente a sociedade.
O Brasil não é hoje um país dividido entre uma “elite” branca e rica contrária ao Estado e uma “massa” de miseráveis explorados dependente dos governos. Não há dois blocos desse tipo, até porque nas ações políticas e governamentais concretas está tudo bem misturado. Os blocos que se opõem na atual política brasileira são diferentes: têm componentes de classe, com certeza, mas eles não são os únicos nem são os predominantes. E não serão eles a determinar o resultado das urnas ou os debates que se farão durante o processo eleitoral.