domingo, 30 de junho de 2013

Sem clareza, plebiscito pode não ser a saída




Muita gente fala que os atuais congressistas são conservadores demais para aprovar uma reforma política que leve em conta os interesses e as "causas populares". Por isso, seria o caso de usar o plebiscito para pressioná-los.
Há boa dose de verdade nesse pensamento. A composição do Congresso indica que o conservadorismo está bem assentado ali, especialmente no plano do modelo político. É um conservadorismo, nesse caso, de tipo corporativista e defensivo: não querem reformas políticas porque não querem correr riscos, refazer cálculos eleitorais, escapar da zona de conforto em que têm vivido e em que atuam.
É um conservadorismo que atravessa todos os partidos e que, por isso, não pode ser pensado em termos de direita vs. esquerda. Até mesmo porque, salvo prova em contrário, ninguém sabe dizer de modo categórico, que reformas políticas estariam afinadas com os interesses e causas populares. Tirando a ideia de que a democracia representativa deve ser ampliada com institutos de democracia participativa, todos os demais detalhes técnicos, procedimentais, não integram um projeto popular, se é que existe algum projeto popular no país.
Suspeito mesmo que não existe, nas condições atuais do mundo, um modelo político que possa ser visto como categoricamente aberto aos interesses e causas populares.
Darei uma opinião. Papo de intelectual, dirão logo alguns. Não milito em partidos há décadas. E me comporto eleitoralmente em função de análises situacionais. É o que me leva, por exemplo, a dizer que se for obrigado a votar num plebiscito com questões que não sei avaliar, irei me abster, ou votar em branco. Farei campanha para que não se vá às urnas.
Não deveríamos – nós, democratas de todos os tipos e cores – esperar para acabar com os absurdos do sistema político. Só precisamos ter um consenso sobre como fazer isso. A ideia não é fazer um pacto? Se é, não posso achar que o pacto será em torno da minha ideia, pois se agir assim não estarei propondo um pacto, mas tentando convencer os eventuais pactuantes de que minha ideia é a melhor. Pactos se fazem em torno de proposições genéricas: alcançar a paz, distribuir a renda, reformar a política. Os detalhes devem ser definidos pelos pactuantes.
Precisamos aproveitar o momento para discutir o modelo e tentar reformá-lo em profundidade. A dinâmica binária de um plebiscito não ajuda nisso. Atrapalha. Para elaborar um discurso que esclareça, agregue e articule, precisamos de dialética e não de esquematismos plebiscitários.
Por isso, para ser sério, o plebiscito deveria ter somente três perguntas: (1) você concorda que o Congresso faça uma reforma política no Estado brasileiro? (2) você concorda que o Congresso abra um amplo fórum de discussões com a sociedade para subsidiar a reforma política? (3) você concorda que as mudanças a serem introduzidas passem a valer já para as eleições de 2014, com a devida alteração dos prazos regimentais fixados pela Constituição?
Com a 1, todos concordariam, para não pagar o mico de irem contra as ruas. Na 2, votariam "não" todos aqueles que acham que o Congresso está controlado por conservadores que não querem reformar para valer. Votariam "não" por temerem que o Congresso direcione o fórum em sentido reacionário. E na 3, ficariam em dúvida aqueles que querem a reeleição de Dilma e votariam "não" os que querem que as coisas só mudem em 2018. Tanto na pergunta 2, quanto na 3, algum detalhamento poderia ser útil, na linha, por exemplo, de esclarecer como seriam organizados os fóruns de discussão no Congresso ou ajustados os prazos regimentais.
Desse modo, o plebiscito não faria perguntas mais diretas, referentes a detalhes procedimentais do novo sistema, tipo voto distrital, lista fechada, reeleição, calendário eleitoral, etc.
Poder-se-ia ter uma exceção, uma quarta pergunta, relativa ao financiamento público exclusivo. Por dois motivos: porque a população deve se manifestar claramente sobre um ponto que pode ter impacto efetivo no financiamento das políticas públicas e porque a forma de financiamento da política está associada a algumas causas da corrupção.
Fora isso, não se deveria fazer perguntas técnicas. Pelo menos não de imediato, a toque de caixa. Que sentido teria perguntar, por exemplo: você é contra ou a favor do voto distrital misto? O que a democracia ganharia com isso? A perguntas como essa,  ninguém pode responder “sim” ou “não”. Cientistas sociais, ativistas, políticos, jornalistas, cidadãos tucanos e petistas, cada um tem um palpite, um chute, ninguém ainda parou para analisar as coisas. Induzir o povo a votar naquilo que alguém acha que pode funcionar não é fazer plebiscito. Estamos meio às escuras nesse terreno.
Mais importante que um plebiscito é ter uma ideia para discutir com a sociedade e para a sociedade discutir. Forma e conteúdo precisam caminhar juntos.
A alternativa não é não consultar a população, mas sim consultá-la de forma razoável. Se o PT tem uma proposta de reforma política, por que é que não a apresentou até agora? Suspeito que alguma corrente interna a tenha, ou a ala majoritária do Diretório Nacional, mas não o partido. Sendo forte como é, por que o PT não disputa as eleições com a bandeira da reforma política tremulando bem alto, e briga com dedicação por ela? Se a população está assim tão convencida da necessidade de uma reforma, votará fácil naquele partido que a apresentar corretamente.
Só faz sentido fazer reforma política, hoje no Brasil, se for para radicalizar democraticamente. Não é com voto distrital, lista fechada, proibição de reeleição e financiamento público que se avançará. Isso seria cosmético.
A questão é recriar a representação, dar-lhe uma musculatura que foi corroída pelo tempo, pelas novas formas sociais e pela indigência política dos partidos. As ruas estão querendo outras coisas, não mais do mesmo.  E não há, nem teórica e nem politicamente, um plano de voo para atendê-las.  Tanto o Estado quanto a sociedade civil precisam de tempo para formatar algo novo, que radicalize democraticamente a democracia.
O deputado Henrique Fontana (PT) apresentou tempos atrás um projeto de reforma política bem articulado, como relator de uma comissão que examinou o assunto no Congresso. Seria essa reforma consensual no partido, seria ela que se quer submeter a plebiscito? Não sei se o PT tem opinião sobre isso. A impressão é que ele, como os demais partidos, patina no tema, Age casuisticamente, oportunisticamente, de olho no próprio umbigo. Devia recuperar a proposta do deputado e apresenta-la publicamente como sendo sua. Ou não.
O pior de tudo é que os articuladores de Brasília parecem achar que farão um plebiscito para aprovar um projeto petista que talvez não exista. Se a ideia é fazer um pacto pela reforma, eventuais conteúdos dessa reforma precisam ser previamente combinados com a base aliada e negociados com as oposições, para que elas possam imprimir suas digitais na reforma, sem o não irão aderir a ela. O governo tem maioria no Congresso, mas não a controla programaticamente, só fisiologicamente. Se errar na dose, corre o risco de perder tudo.
Minha impressão é que a proposta de plebiscito nasceu torta. As ruas não estão a pedir reforma política, mas reforma existencial. Terão de ser educadas para que entendam que existência e política são irmãos siameses. E isso leva tempo. Se se acelerar demais, o feitiço virará contra o feiticeiro.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A polissêmica voz das ruas





Pode haver dificuldade para que se compreenda o que anda a ocorrer nas cidades brasileiras desde o início de junho. Mas não faltam teorias, pesquisas e conceitos. O que falta é análise política, análise concreta da situação concreta: humildade, trabalho paciente, espírito indagador e disposição metodológica para articular a estrutura e a superestrutura, a sociedade e o Estado, os interesses, as classes, os valores, a correlação de forças, de modo a que se alcance uma visão de conjunto das molas que fazem com que as pessoas tomem partido e ajam, buscando captar ao mesmo tempo suas implicações e possíveis repercussões.
Isso acontece porque os teóricos sociais não são imediatamente analistas políticos e nem a academia é o locus mais adequado para que se façam análises políticas. Essas proliferam com mais facilidade na vida política organizada, onde a correlação de forças ganha materialidade e explicita sua lógica. Fora dela, preponderam boas intenções, poesia, abnegação e ética da convicção, uma racionalidade específica. Se faltam quadros intelectuais, espaços de reflexão e adensamento cultural para a democracia organizada, se os partidos deixaram de ser usinas de ideias e valores, então a análise política sofre para respirar, confundindo-se com a vocalização midiática de solidariedades, com o cálculo eleitoral ou com a crônica jornalística.
Daí a sensação de que os protestos não estão a ser compreendidos, a surpresa diante da rapidez com que eles se espalharam pelo país, causando arrepios e estupor nos políticos, júbilo e entusiasmo em muitas faixas da população. Daí o defensivismo conservador de tanta gente, movida ou pelo medo, ou por uma visão elitista da história.
A polissêmica e vibrante voz das ruas, que agora atingiu alto e bom som, tem a ver com a emergência de um novo modo de vida e o esgotamento de um modo de fazer política. Associa-se a uma percepção social de que a sociedade está excluída da arena pública, quer nela ser reconhecida e dela participar. Há muita luta por identidade e reconhecimento no momento atual, além de muito desejo de participação. E tem a ver, sobretudo, com uma correlação de forças que se sedimentou no país ao longo das últimas décadas, formatou um modelo de crescimento e de ascensão social, prometeu mundos e fundos, obteve algumas conquistas mas criou muitas ilusões e muita insegurança, jogando a sociedade numa armadilha, da qual ela agora mostra querer se libertar.
As vozes dos protestos são amplas, ligam-se por fios que vão da postulação de direitos à contestação da maneira como o país, os estados e os municípios vêm sendo governados. Escapam ruidosamente da polarização PT x PSDB, mostrando que ela não faz mais sentido. Veem nesses partidos os responsáveis principais pela consolidação de uma prática política que afastou a sociedade do Estado e se mostrou inoperante para renovar e requalificar a política, a democracia e a vida institucional.
São jovens na maioria da (“velha”) classe média porque são eles que têm mais informação, maior disponibilidade e mais energia contestadora. Até certo ponto, também são eles que têm mais a perder (ou menos a ganhar) com a reprodução do estado de coisas atual, que lhes cortou as perspectivas. Mas não são somente eles. Há jovens e não tão jovens que representam outros segmentos, há os que vão às ruas por solidariedade ou para demonstrar repulsa à violência, assim como há os que fazem isso por motivações eleitorais e os que vão para zoar, quebrar ou fazer festa. Todos de algum modo dizem: queremos um futuro, que vocês, políticos, empresários, partidos, estão nos impedindo de ter. Não estão totalmente errados.
As vozes são polissêmicas porque nelas cabe tudo. Não há tema ou problema que lhes passe despercebido. São assim porque os problemas sociais são enormes e porque o movimento que as embala não aceita hierarquias, comandos ou planejamento – não tem lideranças e nem dirigentes, ainda que esteja organizado e siga algum tipo de plano.
Nessa polissemia que se auto-organiza estão a beleza e a força dos protestos, aquilo que lhes dá impulso e oxigênio. É um avanço político extraordinário que as vozes das ruas estejam sendo ouvidas. Elas poderão ser a plataforma de lançamento de um novo ciclo democrático no país. O ruído, o atrito, o conflito, a contestação desempenham, assim, papel eminentemente de alerta, de advertência, que somente os pobres de espírito e inteligência poderão desprezar.
O recuo dos prefeitos e governadores no caso das tarifas prova ao mesmo tempo a força do movimento e o despreparo do sistema político. Pode ser um exagero dizer isso, mas tudo leva a crer que não se poderá mais governar como antes. O silêncio dos políticos é constrangedor. A arrogância das cúpulas e das elites – de direita, centro e esquerda – terá de arrefecer. Entramos em outra dimensão. O próprio movimento terá de se reposicionar, após as primeiras conquistas. Na medida em que vierem à tona os desdobramentos da contestação, formas mais organizadas haverão de surgir, sob pena dos protestos serem engolidos por outras dinâmicas. Uma agitação não constrói decisões: pede e exige, mas precisa de articuladores (políticos, partidos, gestores) para que se formate uma agenda. Para que reivindicações cheguem ao Estado, não bastam as redes sociais. Não se trata de lideranças, mas de instâncias que coordenem, processem e lancem pontes para o Estado.
Se o feiticeiro ativou forças com sua magia, não se deve deixar que ele perca o controle sobre elas. O pior que pode acontecer é o movimento desenhado nas ruas ser capturado pelo sistema, pelas “forças da reação” ou pela estupidez dos desmiolados.
As ruas não têm dono nem voz uníssona e uma hora ou outra baterão no teto. E quando isso acontecer, poderão se deixar arrastar pelo primeiro demagogo que souber seduzi-las. Populistas de plantão estão de olho nelas. Como sempre. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/06/2013, p. A2].

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Um plebiscito pensado para não dar certo





Ao propor a união dos partidos e instituições em torno de cinco pactos nacionais, a presidente Dilma agiu como estadista e, pela primeira vez em seu governo e no de seu antecessor, desceu do pedestal, convocou os políticos e conclamou-os a ir onde o povo está. Fez isso, também, com a intenção inteligente de socializar os custos da operação política com que se busca reagir aos protestos das ruas.
O problema é que o está dentro do pacote, o detalhamento dos pactos. Faltou-lhe assessoria técnica. Faltou-lhe tempo, também, já que a necessidade de agir com rapidez fez com que o pacote fosse amarrado ás pressas e perdesse coerência.
O que era uma Constituinte exclusiva virou repentinamente “plebiscito popular” sobre a reforma política. É uma fórmula simpática, amigável para parte dos manifestantes e que bota pressão sobre parlamentares e partidos. Ela poderia render muito para o governo e para o país.
Digo poderia porque suspeito que não vá render.
Precisamos inquestionavelmente e com urgência de uma reforma política e de uma reforma política que seja claramente sancionada pela população, de forma a que entre na corrente sanguínea dela, seja compreendida e assimilada por ela. Sem isso, continuaremos a patinar. Há, porém, uma questão, que está a tirar o sono dos estrategistas, dos estudiosos, dos juristas, dos tucanos, dos dilmistas e dos antitucanos: temos tempo e condições de fazer algo sério sobre isso até agosto, como pretende Brasília?
Plebiscitos são processos de deliberação simplificados, quase grosseiros, dado não admitir nuance. É binário: isso ou aquilo. Imaginemos os 130 milhões de eleitores tendo de decidir se preferem “voto distrital” ou “voto distrital misto”, financiamento público ou privado de campanhas, “voto em lista” ou “voto personalizado” e outras questões mais. Chegarão a alguma conclusão minimamente confiável? Prevê-se que haverá uma campanha de 2 semanas para que as opções sejam defendidas ou atacadas, para que se possa refletir sobre elas e entende-las. Não é de modo algum um tempo suficiente.
Falo por mim. Sou professor de Política há 40 anos e tenho passado boa parte da vida discutindo política. Tenho debilidades crônicas no terreno dos detalhes do sistema político, mas presto atenção aos debates, me esforço para compreendê-los, ouço e leio com interesse meus colegas especializados. E confesso: não sei o que é melhor para o país quanto a sistema político. Tenho palpites, mas não é de palpites que se trata. Não há consenso sobre as regras sistêmicas que deveriam prevalecer após uma reforma política. Se pusermos numa sala 10 cientistas políticos ou 10 deputados, ou 10 militantes democráticos, ou 10 petistas , teremos 10 versões diferentes. Nas ruas, o grosso da população não tem a mínima ideia do que se trata. As pessoas podem fuzilar a tese do financiamento público só porque acham que ela tirará dinheiro da saúde e da educação. Ou acabar com a ideia de “lista fechada” só porque não querem mais partidos pela frente.
Como é então que poderão decidir? Com que racionalidade? O debate público democrático que deve preceder a essa ida às urnas simplesmente não existirá. Que esclarecimento público haverá então?
Não quero ser pessimista nem ficar agourando ou fazendo marola contra o governo Dilma. Desejo que ele acerte e topo ajudá-lo e apoiá-lo para que faça isso. Mas acho que com essa proposta – que tem impacto e compensa a lentidão com que se mexe na outros 4 pactos (saúde, transportes, educação e economia) –não daremos nenhum passo à frente. Correremos até mesmo o risco de irmos para trás ou de ficarmos a fingir que estamos caminhando quando sequer saímos do lugar.
Visto das ruas ou visto do Estado, o panorama é preocupante. O processo fugiu do controle e não há em Brasília e em nenhum outro Palácio estadual ou municipal qualquer plano de ação confiável para tentar manter o avião em boa altitude de cruzeiro.
A presidente tentou se vincular às vozes das ruas e pôs um bode na pauta. Pode ser difícil tirá-lo daí.