quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Um gramsciano a serviço da união dos povos


Demorei uns dias para escrever esse texto. Sem demagogia. Fiquei um tempo em estado de choque, sem ânimo para definir o que dizer.

Quarta-feira, 20 de janeiro, soube da morte de Giorgio Baratta. Poucos brasileiros sabem quem foi ele. Era conhecido e admirado por marxistas gramscianos, com quem mantinha relações estreitas, aqui no Brasil e em diversas partes do mundo. A todos encantava com sua ironia fina, seu conhecimento enciclopédico, sua admiração incondicional por Gramsci – uma admiração que não o cegava nem o fechava em tolos dogmatismos. O seu sempre foi um Gramsci aberto, plural, em busca de atualização, condição indispensável para que continuasse a ser útil para o esforço de compreensão do mundo. “O mundo grande, terrível e complicado”, como costumava falar Giorgio, exige muita tenacidade, muito empenho e muita flexibilidade. Gramsci era, para ele, o principal marxista equipado para este movimento de compreensão.

Giorgio morreu aos 72 anos, de câncer, contra o qual lutou obstinadamente nos últimos meses. Estive com ele em janeiro de 2009, em Roma, data da foto reproduzida acima. Depois, conversamos por e-mail algumas vezes. Nunca me passou pela cabeça que poderia estar doente, depois daquela tarde fria em que passeamos pelas ruelas do Trastevere. Na ocasião, Giorgio me pediu para lhe enviar um exemplar do meu livro sobre Joaquim Nabuco, As desventuras do liberalismo, porque achava que se o lesse iria conhecer melhor o Brasil. Meses depois, numa troca de e-mails, ele me lembrou do pedido. Respondi que enviaria o livro com enorme prazer, assim que saísse a segunda edição, revisada e atualizada, prometida pela Paz e Terra para fevereiro de 2010. Se eu soubesse...

Ele amava o Brasil. Com sinceridade. Vivia em busca de pontes que ligassem italianos e brasileiros, Nápoles e Bahia, Itália, África e Brasil. Seu livro Le rose e i quaderni (2000) foi traduzido e publicado no Brasil (As roas e os cadernos (RJ, DP&A, 2007). É uma excelente amostra do programa teórico, político e cultural a que se dedicou Baratta.

Em agosto de 2008, publiquei neste blog um texto sobre ele, tentando resumir sua vasta atividade cultural e sua rica personalidade intelectual.

Giorgio ensina filosofia na Universidade de Urbino, Itália. Marxista erudito, de imaginação larga e fôlego inesgotável, dedicou-se a uma batalha incansável para agitar idéias, unir povos e experiências e produzir cultura de esquerda. Sua relação com o pensamento de Gramsci foi intensa e original. Ele não era um estudioso em busca do verdadeiro Gramsci, mas sim um teórico que desejava usar Gramsci para interpretar as urgências do presente.

Esteve entre os fundadores da International Gramsci Society e era presidente da IGS Itália. Fundou e dirigiu a network Immaginare l’Europa e a associação cultural Terra Gramsci, na Sardenha. Foi um organizador cultural ativo e também um artista, que se envolveu com a música, o teatro e o cinema. Concebeu, produziu e/ou dirigiu dois filmes: Gramsci l’ho visto cosí, direção de Gianni Amico, e New York e il mistero di Napoli. Viaggio nel mondo di Gramsci raccontato da Dario Fo.

Além de As Rosas e os Cadernos, seus últimos livros foram Antonio Gramsci in contrappunto (2007) e Leonardo tra noi (2007), ambos publicados por Carocci editore. Colaborou com vários verbetes no Dizionario gramsciano 1926-1937, que acaba de ser publicado na Itália.

No site da IGS Itália, podem ser vistas as dezenas de manifestações de pesar que foram feitas por ocasião de sua morte.

Giorgio Baratta deixará saudade.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Para entender a derrota da esquerda no Chile


Ainda que fossem muitos os indícios de que o candidato direitista Sebastián Piñera – misto de senador, empresário e ricaço de hábitos extravagantes – poderia vencer o segundo turno das eleições chilenas realizado no último dia 17 de janeiro, a derrota de Eduardo Frei, da coalização de centro-esquerda Concertación, surpreendeu e causou grande comoção nos ambientes democráticos do mundo todo.

O que se passou com aquela coalizão, há 20 anos no poder e que contava com o engajamento da atual presidente Michele Bachelet, detentora de enorme popularidade entre os chilenos? Cansaço do eleitor, depois de tantos anos de continuísmo? Ou falhas políticas na condução do processo eleitoral? Teria sido consequencia da divisão entre os parceiros da Concertación? Ou a direita chilena, envolta pela sombra negra do pinochetismo, teria voltado a respirar com folga e a encurralar a esquerda, como nos velhos tempos da ditadura militar, uma das mais violentas da América Latina entre 1970 e 1990?

Entre os vários artigos e depoimentos que enfrentaram o desafio de entender o resultado eleitoral e de pensar seus desdobramentos, destacou-se a entrevista concedida pelo cientista político chileno Manuel Antonio Garreton à jornalista Laura Greenhalg, de O Estado de S. Paulo, edição do caderno Aliás de 24/01/2010. Profundo conhecedor da história política de seu país e atento analista das eleições, Garreton passa em revista os antecedentes da disputa presidencial e oferece um rico quadro da interrupção do projeto de poder da Concertación. Para ele, “não foi Piñera quem ganhou, mas a Concertación que perdeu”. Fala de cátedra: além de Professor Titular da Universidade do Chile, ele é também autor de vários livros, entre os quais Pós-Pinochetismo na Sociedade Democrática.

Vale a pena ler a entrevista.

sábado, 23 de janeiro de 2010

A cidade inclemente


Em entrevista concedida ao Estado de S. Paulo no último dia de 2009, o prefeito Gilberto Kassab (DEM), de São Paulo, declarou que a cidade estava melhor do que a encontrada no início de seu mandato, um ano atrás.

“A cidade avançou em diversas áreas, principalmente em saúde e educação, pilares da gestão”, além de ter ganhado em transparência no plano administrativo. Seu primeiro ano como prefeito estaria terminando “sem nenhum problema na cidade”. O prefeito manifestava-se plenamente convencido de que ele, “eleito para fazer o que é correto e importante”, estava “zelando pelos interesses da cidade”.

Menos de trinta dias depois, o Movimento Nossa São Paulo divulgou pesquisa realizada pelo Ibope no mesmo mês de dezembro, ouvindo 1.512 pessoas com mais de 16 anos. Os resultados não foram somente contrastantes com a avaliação do prefeito: foram impressionantes. A avaliação positiva do governo Kassab caiu de 46% para 28%, impulsionada pela insatisfação manifestada pela população, que atribuiu nota média de 4,8 para a qualidade de vida na cidade, numa escala de 1 a 10. Nada menos do que 57% dos paulistanos mudariam da cidade se pudessem.

São números eloqüentes, que falam por si e desafiam a todos, não somente ao prefeito. Desanimam, quando lembrados no aniversário de 456 anos de São Paulo. E intrigam, quando confrontados com o dinamismo, a pujança, a ampla oferta cultural e o pluralismo da cidade. Mas são inteiramente compreensíveis, quando se considera a vida cotidiana real da maioria dos moradores.

No último dia 21, por exemplo, as chuvas da madrugada causaram congestionamento recorde e deixaram São Paulo praticamente ilhada. O prefeito atribuiu o estrago ao “crescimento desordenado e à impermeabilização excessiva da cidade”, isentando a administração municipal de falhas ou responsabilidades. Garantiu que “a população pode ficar tranquila, pois os investimentos continuarão acontecendo”.

No transporte público e no trânsito, o desgaste, a poluição e o desperdício são a regra, para todos. Calcula-se que a cidade jogue fora cerca de R$ 33 bilhões pelo que se deixa de produzir em decorrência das horas intermináveis que muitos gastam para ir de um lugar a outro. Há muito tempo a cidade deixou de ter contato com o silêncio como experiência cívica, vital para a formação de uma cidadania crítica e reflexiva. O caos e o desassossego parecem explodir em todos os cantos.

A visão dos gestores não encontra respaldo na percepção dos habitantes, porque os primeiros tendem a se ver como racionalizadores bem-intencionados e os segundos experimentam na pele tudo o que a cidade produz de pior. O que o prefeito considera sucesso e realização, a população vive como problema e decepção, quase com raiva.

A sensação é que São Paulo está a um passo de perder a lealdade de seus moradores, que estão decepcionados com ela e sofrem para viver nela.

Se for assim, teremos problemas pela frente. Será difícil, por exemplo, contar com apoios sociais para as operações que precisarão ser feitas para que a cidade volte a ser um ambiente apreciado por seus habitantes. Porque é evidente que a cidade não será modificada pela ação unilateral ou pela vontade política da prefeitura, por mais que ela possa ser indispensável. Uma cidade muda quando uma população chama para si a tarefa de mudá-la. Mudanças urbanas profundas resultam tanto de obras e planos de governo quanto especialmente de modificações de hábitos e comportamentos. São ações que implicam algum tipo de “sacrifício” e que não podem ser vitoriosas sem certo grau de adesão, ainda que tardia.

Porém, se uma população acha que seus políticos são desonestos e as instituições públicas não são confiáveis, de que modo poderá aderir à cidade e aos planos que eventualmente vierem a lhe ser apresentados? Na pesquisa mencionada, a maioria da população (61%) não confia na prefeitura e 74% suspeitam dos vereadores paulistanos, que receberam nota 2,3 em termos de honestidade. Foi a avaliação mais baixa entre todas as instituições públicas analisadas. Mais de 60% acreditam que não há democracia na educação e 71% acham que o serviço para agendar consultas, exames e resultados nos sistemas de saúde está bem abaixo do razoável. A honestidade dos governantes foi avaliada por 92% dos entrevistados como ruim ou péssima.

Tal manifestação sobre a qualidade de vida na cidade está indicando a possibilidade de que se forme uma onda de descolamento entre o morador e o espaço urbano. Se tudo está ruim e é percebido pelas pessoas como péssimo, a probabilidade maior é que as coisas continuem a piorar. Se os ônibus são o que são – latas velhas, barulhentas e sem conforto, para levar gente como gado –, por que os usuários cuidarão deles? Por acaso não ficarão tentados a arruiná-los ainda mais?

Mas é preciso reconhecer, também, que a mesma população que se mostra decepcionada com a cidade dá um crédito de confiança a ela. Fala em ir embora, mas permanece, até porque não tem para onde ir. E continua, dia após dia, a buscar seus sonhos nas ruas esburacadas e inseguras da metrópole, sinal de que essas são ruas ainda carregadas de promessas.

São Paulo tem certamente virtudes reconhecidas por seus moradores. Mas é vista e sentida como inclemente, um ambiente que exige muito e concede pouco. Fazer com que a cidade virtuosa prevaleça sobre a cidade que não perdoa é o desafio dos próximos anos. Para ser vencido, ele exige uma bússola democraticamente definida e recepcionada. O Plano Diretor Estratégico do município foi aprovado em 2002 e faz parte do caminho, mas é desconhecido da população e não conta com ela em sua aplicação. Poderá até produzir bons resultados, mas estará sempre um passo aquém do necessário.

Uma megalópole como São Paulo, afinal, não é um corpo domesticável ou que se possa modelar sem um forte e permanente envolvimento da população. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/01/2010, p. A2].

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Uma transexual na Casa Branca


Desde o último dia 4 de janeiro, Amanda Simpson, de 48 anos, é conselheira técnica sênior do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, um alto cargo na Casa Branca, nomeada pelo presidente Barack Obama. O Departamento tem como tarefa proteger a segurança nacional mediante a gestão do comércio internacional, a aplicação dos tratados e a promoção da segurança econômica, cibernética e interna.

Até 2002, Amanda era Mitch Simpson, e trabalhava numa empresa de segurança. Naquele ano, submeteu-se a seis cirurgias para mudar de sexo. Em 2006, passou a integrar a diretoria do Centro Nacional pela Igualdade dos Trânsgeneros.

"Estou verdadeiramente honrada com a nomeação e ansiosa e entusiasmada com esta oportunidade", ela declarou no website do Centro. "E ao mesmo tempo, como um dos primeiros transexuais indicados pelo presidente, espero que em breve o governo federal tenha centena deles, e que minha nomeação abra futuras oportunidades para muitas pessoas”.

Fui procurado pela Folha OnLine para analisar o fato. "Obama está fazendo uma escolha muito mais orientada pelos direitos humanos do que pelo impacto político que isso possa ter na comunidade como um todo", disse então. Trata-se de uma escolha meritória em si mesma, mas cercada de algum risco político. Prova de coragem e coerência.

A decisão de Obama tende a repercutir e a exercer alguma influência em outros países. No caso do Brasil, a questão está aberta. A sociedade atual emite sinais claros nessa direção. Resta saber se políticos e governantes conseguirão decifrá-los.

Ouça as declarações no podcast da Folha OnLine.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A tragédia das águas

André Henrique, que foi meu aluno na Unesp em Araraquara, faz um blog muito legal e dinâmico. Chama-se Via Política. Sua galera de amigos está sempre por lá, comentando e criticando as postagens.

Ontem, o André abriu um debate sobre as chuvas de verão. Ou melhor, sobre a tragédia das chuvas, em Angra dos Reis, em outras áreas da região e em muitas cidades do sul e sudeste. É um problema que se repete ano após ano, a um ponto que parece não ter mais solução. Desequilíbrio ambiental, aquecimento global e agressões à natureza se somam à ocupação irregular do solo, à voragem da especulação imobiliária, ao descaso governamental e às dificuldades reais que os gestores têm de lidar com a situação. O verão perde boa parte de seu encanto. Mortes, cidades submersas, patrimônios históricos e vidas destruídas, caos por todo lado.

As vítimas se acumulam, entristecem a todos, causam pasmo e horror. Quase sempre no silêncio de seu lamento pungente, impõem uma agenda para o país. Até quando teremos de conviver com isso?

Vale a pena visitar o blog do André.