domingo, 29 de março de 2009

Entrevista: A direita se une na Itália


Força Itália, partido do presidente italiano Silvio Berlusconi, e a Aliança Nacional dirigida por Gianfranco Fini, decidiram formalmente, dias atrás, dar curso a uma nova organização, o Partido do Povo da Liberdade (PDL). Os dois braços do novo partido já estão juntos, como aliados, no governo Berlusconi.

Em termos eleitorais, o PDL herdará algo em torno de 43% do eleitorado, índice não desprezível num país como a Itália, que nas últimas décadas assistiu a um crescimento vigoroso da direita (abertamente fascista, ou não) e a uma igualmente vigorosa fragmentação da esquerda. O PCI, herdeiro de muitas tradições democráticas e reformistas, não conseguiu dar origem a uma organização política forte e estável. O Partido Democrático (PD), sua criação atual, ainda enfrenta dificuldades para decolar. A Rifondazione Comunista, que com ele rompeu em nome de uma esquerda revolucionária em 1991, nunca chegou a ter peso expressivo, e para complicar se fracionou no início de 2009.

O novo partido de direita nasce com a intenção de se desfazer das sombras do fascismo que sobre ele ainda pesam. Afinal, a Aliança Nacional originou-se do ventre mesmo do Movimento Social Italiano (MSI), fundado em 1946 com a pretensão de manter viva a chama do movimento derrotado com a deposição e a morte de Mussolini, ao final da segunda grande guerra. Foi formalmente constituída em 1993 e com o nome de MSI-AN disputou as eleições de 1994 já sob a direção de Fini e em aliança com Força Itália.

Desde então, Fini procurou construir para a AN uma imagem progressivamente distanciada do fascismo, de modo a inseri-la no cenário político italiano como expressão de uma direita conservadora mas democrática, ou seja, que aceita as regras do jogo e rejeita o extremismo reacionário e violento de antes. Com o novo partido agora criado, dá mais um passo nesta direção.

Não se trata de uma novidade qualquer, mas de um fato que merece análise e reflexão. Terá ele impacto sobre as diferentes expressões da direita nos diferentes países do mundo? Qual peso real terá na democracia italiana? Como estão reagindo a ele as organizações de esquerda? O que esperar dos desdobramentos?

Posto diante destas questões em uma entrevista concedida ao jornal comunista Liberazione no último dia 25 de março de 2009, o professor Guido Liguori – da Universidade da Calábria e vice-presidente da International Gramsci Society-IGS – buscou partir de uma síntese que iluminasse o conjunto e captasse o significado mesmo do fato:

“Antes de tudo, é preciso dizer que tinha razão quem levou a sério a mudança que nos últimos anos foi empreendida pela direita italiana. Se é verdade que Berlusconi ‘comprou’ a direita italiana do mesmo modo que procura comprar a democracia italiana, é de fato surpreendente como a direita se deixou absorver pelo novo partido sem se ferir ou se dividir. Trata-se de mais um grande exemplo de transformismo italiano. Evidentemente, tudo isso foi possível a partir da adesão da direita ao neoliberalismo, ocorrida no último decênio. Mas também é verdade que existem elementos muito inquietantes no ‘berlusconismo’ que explicam como as coisas chegaram a este ponto”.

Na entrevista, Liguori deteve-se com atenção na polêmica que vem acompanhando a tentativa de conversão da direita italiana: ainda faz sentido manter vivo o antifascismo ou o melhor é virar a página e seguir em frente?

Liguori é um estudioso de Gramsci. Dele, pode-se ler em português Roteiros para Gramsci (Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2007). Sua entrevista a Liberazione nos ajuda entender a nova e tumultuada fase da política italiana. Ela está traduzida abaixo.


É lícito pensar numa superação do antifascismo depois do desaparecimento da AN?

Não, e por várias razões. Em primeiro lugar porque o fascismo é uma tendência recorrente na política moderna e assume várias feições. Não é por acaso que se deve falar de fascismos, mais que de fascismo. Alguns de seus traços mais inquietantes estão hoje em plena luz do dia na sociedade italiana: a intolerância com o estrangeiro, o racismo latente, o personalismo autoritário traduzido em ‘liderismo’ populista, aspecto da política que, sob formas diversas, infelizmente também contagiou a esquerda. Deve-se mencionar ainda a construção frenética do consenso, que hoje se beneficia do protagonismo dos mass media. E mais: o irracionalismo vitalista, a divisão em bandos, em tribos (nos estádios de futebol, pelas ruas), o desejo de fazer justiça com as próprias mãos, mediante o uso de porretes e cassetetes, a torto e a direito (às vezes inclusive de modo legal, como ocorre com certas rondas policiais noturnas, que fazem recordar as ‘esquadras’ fascistas). Vão na mesma direção o ataque insensato contra a universidade e a escola, o desprezo pelos professores, pelos intelectuais, pela cultura não imediatamente ligada à produção. Contra tudo isso, ser e proclamar-se antifascista ainda é uma barreira inteiramente válida.

O antifascismo também tem sentido porque é um elemento que integra e sustenta a Constituição italiana, que vive continuamente sob ataque. O que você pensa disso?

Estou de acordo. Um outro ótimo motivo para proclamar-se antifascista é precisamente a defesa da Constituição democrática, que tem seu principal alicerce no nexo entre vocação antifascista e vontade de instituir uma República baseada no trabalho. Se tirarmos um destes elementos, desmontamos tudo. E se a Constituição de 1948 é menosprezada, o risco de darmos um enorme passo para trás é mais real do que nunca.

O filósofo Niccola Tranfaglia, numa entrevista que publicamos dias atrás, salientou o paradoxo de um Fini que adere ao antifascismo e de muitos ex-seguidores do PCI – hoje Partido Democrático – que, ao contrário, falam do antifascismo com embaraço. Que está ocorrendo?

Fini, como foi bem observado, disputa sua partida no longo prazo. Berlusconi gostaria de ser eterno, mas até mesmo os seus sabem que ele não estará disponível para sempre. Quanto ao PD, à parte os inúmeros erros e certas atitudes execráveis cometidas por alguns de seus líderes, penso que deva ser pressionado e posto diante de suas próprias contradições: não pode deixar de se proclamar antifascista, boa parte da sua base não aceitaria isso.

Os chefões da AN, ao contrário, parecem mais dóceis...

Há muitas diferenças entre eles. Fini tem em mente a grande direita francesa e deu passos significativos em direção ao ‘gaullismo’. Outros pareciam mais conservadores mas se submeteram completamente aos apelos do poder. É preciso ver como reagirá a base militante da AN. Pode ocorrer que depois de algum tempo uma parte reflua para a direita mais tradicional e militante. Mas há outro perigo, ainda mais grave: que a cultura fascista ou fascistóide acabe por permear em sentido autoritário o novo partido de Berlusconi, marginalizando os componentes que se dizem liberais. Aqui, precisamos ser muito capazes de ‘fazer política’, de atentar para todos os sinais de desagregação do bloco berlusconiano, proceder com o método da ‘análise diferenciada’, sem misturar caoticamente coisas que são distintas e diferentes. Ainda precisamos recordar que Gramsci quis se encontrar com Gabriele D’Annunzio [literato e político direitista italiano] para impedir a aliança de seus seguidores com os fascistas?

A vulgata anti-século XX que não poupou sequer a esquerda parece hoje se articular com o desejo de que não se ouça mais falar de antifascismo. O que você pensa disso?

É um risco real. Quando, à esquerda e mesmo entre esquerdas diversas, não se faz outra coisa que falar de ‘novidade’ ou de ‘inovação’, o risco é o de que se perca de vista a grande lição da história e as nossas raízes históricas. Não devemos evidentemente ser dogmáticos e livrescos, precisamos fazer sempre a ‘análise concreta da situação concreta’, como se dizia. Mas ter obsessão pela novidade pode significar que se está renunciando às próprias coordenadas interpretativas da realidade e se submetendo à hegemonia do adversário. O século XX ainda está sob muitos aspectos conosco, mesmo que os dias atuais sejam plenos de fatos novos e parcialmente novos que precisam ser compreendidos sem antolhos.

quinta-feira, 26 de março de 2009

A universidade, entre promessa e realidade



Fausto Castilho, Rui Mesquita, Julio de Mesquita Filho e Jean-Paul Sartre

O que esperar da universidade no século XXI? Que contribuição poderá dar a este século que se anuncia sob a égide da ciência, da racionalidade técnica e de categóricas exigências educacionais?

Nascida como idéia nos primórdios da era moderna, vinda das entranhas da Idade Média, a universidade só ganhou corpo e conceito claro – como instituição de pesquisa e estudo, não só de ensino – no decorrer do século XIX, fase demarcada pelo celebérrimo Memorando de Guilherme de Humbold, que é de 1808-1809. Desde então, esteve sempre no centro das atenções e das controvérsias.

Disseminou-se pelo mundo, mas não de modo imediato e nem segundo um único modelo. No Brasil, por exemplo, chegou com atraso, como reflexo da condição colonial e dos vínculos culturais fortíssimos que o país mantinha com a Península Ibérica, região onde a prevalência da Igreja e da escolástica dificultou a recepção da cultura científica. A universidade moderna encontraria, por aqui, um “complexo de determinações de longo prazo” que decretariam sua “multissecular inexistência” – processo que só conheceria reversão nos anos 30 do século passado, com a criação da Universidade de São Paulo.

Este o principal eixo argumentativo de O Conceito de Universidade no Projeto da Unicamp (Unicamp, 2008, 207 págs.), belo livro de Fausto Castilho, emérito da Unicamp, ex-professor de filosofia na USP e na Unesp, ativo participante da formulação do plano geral da Unicamp e da organização de sua área de humanidades, entre 1967 e 1972. Estruturado como um diálogo conduzido pelo também filósofo Alexandre Guimarães de Soares, o livro é mais que uma análise das origens desta que forma, com a USP e a Unesp, o miolo do sistema universitário brasileiro. Trata-se sobretudo de uma erudita e instigante reflexão sobre os dilemas da universidade no Brasil, os obstáculos que se antepuseram à sua evolução, os líderes que lutaram por sua criação, entre os quais Fernando de Azevedo, Arthur Neiva, Júlio de Mesquita Filho e Darcy Ribeiro. Precisamente por isso, ajuda-nos a descortinar o estado atual e as possibilidades futuras da instituição.

Há nele um segundo eixo argumentativo: os projetos com que a idéia ganhou materialidade entre nós – a começar do da USP, mas também o da UnB e o da Unicamp – sempre contiveram rigor, desprendimento cívico e compromissos consistentes, mas acabaram por ser travados quando levados à prática. A dura realidade dos fatos conspiraria contra a idéia, e um permanente descompasso apareceria entre “o momento da concepção e o momento da implementação”. O argumento encontra apoio no famoso discurso que Júlio de Mesquita Filho proferiu na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em março de 1958, quando constatou a existência de “desvios metodológicos que alteraram fundamentalmente os objetivos que os fundadores tinham em vista”.

Põe-se assim um problema: teriam sido os projetos “excessivos” para as condições nacionais? Ou teria havido falta de clareza e de vontade política?

Para os pais fundadores e para Fausto Castilho, algumas cláusulas pétreas compõem o conceito de universidade moderna. Primeiro, ela deve ser “integral, isto é, situar-se no topo do sistema educacional, tendo como base todo o conjunto das escolas de nível inferior”. Também precisa ser uma “instituição de estudo que, antes do mais, faça pesquisa sobre a totalidade dos conhecimentos humanos e não se limite à qualificação profissional”. Além disso, deve constituir “um organismo centrado”, cujas partes componentes precisam estar dispostas “em torno da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, lugar de cultivo de todas as disciplinas básicas”. Seus docentes, por isso, devem ser também pesquisadores, cientistas, criadores de conhecimento, mais que professores ou difusores de saber.

Tal concepção foi recebida, ao longo do tempo, com entusiasmo mas também com ceticismo, como se faltasse confiança no país ou houvesse adesão a um enfoque imediatista, técnico e profissionalizante, que muitos achavam mais condizente com as necessidades do desenvolvimento. Ênfase em demasia será dada aos arremedos de universidade construídos durante o século XIX: as escolas superiores isoladas, profissionais, concentradas no ensino, que cobrarão um preço para ingressar na nova estrutura acadêmica. Antes de tudo, estas escolas não aceitarão nem a precedência, nem a função científica integradora da Faculdade de Filosofia. Serão assim mesmo incorporadas, numa espécie de concessão que terminaria por modelar a “concepção brasileira de ensino superior”, que permaneceria atrelada a uma visão não-universitária, ao menos em um primeiro momento.

Com o passar do tempo, as coisas se complicaram. E em vez de corrigidas, as falhas e concessões se aprofundaram, vis-à-vis as novas circunstâncias sociais do país. O ensinismo, o profissionismo e o isolacionismo – marcas de uma concepção de educação superior que prescinde da universidade – seriam turbinados pela “avassaladora privatização das escolas” e pela pressão social por ensino superior. O próprio aparelho educacional terminaria por ser “politicamente depredado”. É onde nos encontramos hoje.

Fausto Castilho sabe que muito se construiu ao longo do tempo. Sua postura recusa o ceticismo. Ele observa a história, esmiúça conceitos e busca deixar um registro pessoal de sua experiência na fundação da Unicamp. Oferece-nos um parâmetro para que se aborde a questão com os olhos para frente.

A idéia de “universidade ampla”, apoiada na reorganização dos três graus educacionais como um processo único, foi a maior promessa dos projetos de construção universitária no Brasil. Não é por acaso que o livro termina com sua celebração. Em que pesem os obstáculos, ela continua a ter “uma atualidade gritante”.

Mas idéias não se convertem em fatos materiais sem dor e sofrimento, assim como sem sujeitos que briguem por elas. Valem também pelo que prometem. Não seria acaso oportuno, pergunta-nos Fausto Castilho, retomar o exame do modelo educacional na perspectiva da “universidade ampla”? É uma pergunta contundente, e ao propô-la seu livro ganha uma luminosidade adicional. (Publicado em O Estado de S. Paulo/Cultura em 08/03/2009).

domingo, 22 de março de 2009

Maurício Tragtenberg



Fui aluno de Mauricio Tragtenberg (1929-1998) na Escola de Sociologia e Política de São Paulo, início dos anos 1970. Ele ensinava ciência política, com um foco fortemente concentrado em Max Weber, com o qual costumava torpedear o mundo da política e das organizações. Weber e Trostsky freqüentavam em lugar de destaque seu panteão de grandes autores. Tragtenberg se interessava bastante pela questão da burocracia, que ele via, seguindo Weber mas pondo-se um passo à frente dele, como a grande jaula de ferro que aprisionava os indivíduos, bloqueava os projetos de emancipação e facilitava o cerceamento da ação política das classes sociais. Escreveu a respeito um livro fundamental, Burocracia e Ideologia, publicado em 1974 pela Editora Ática. Tive a oportunidade de resenhá-lo assim que saiu para o jornal Opinião, no primeiro artigo que escrevi para aquele histórico semanário.

Mais tarde, entre 1987 e 1989, convivi com ele na Editora Vozes, quando integramos a comissão editorial da coleção “Clássicos do Pensamento Político”, organizada e dirigida de fato por Octávio Ianni. As reuniões da comissão eram maravilhosas, repletas de digressões teóricas, humor e controvérsias.

Tragtenberg foi um fascinante exemplo de intelectual independente, weberiano de esquerda, trotskista a seu modo, socialista libertário, que unia uma enorme erudição a uma mordacidade implacável e a uma atitude de permanente desleixo e desprendimento pessoal. Terminava as aulas coberto de giz e de cinzas dos cigarros que não largava um minuto sequer. Anárquico em termos do controle da duração das aulas, era igualmente anárquico no quadro negro, que preenchia com garranchos e anotações incompreensíveis, enquanto falava, passando aos saltos e sem muita concatenação de Weber a Maquiavel, de Marx a Tocqueville, de Trotsky a Rosa Luxemburgo, de Popper às “civilizações hidráulicas” de Wittfogel. Era de uma enorme generosidade para com os estudantes. E odiava ser chamado de anarquista.

Mauricio Tragtenberg foi uma espécie de autodidata, embora tivesse concluído os estudos formais. Entrou tardiamente na universidade, cursou Ciências Sociais pela metade, depois História. Deu aulas no ensino fundamental, na PUC e na FGV de São Paulo, na Escola de Sociologia.

Colecionou admiradores ao longo da vida. Um deles é o professor Antonio Ozaí da Silva, da Universidade Estadual de Maringá e editor da revista eletrônica Espaço Acadêmico.

No final de 2008, Ozaí publicou o livro Maurício Tragtenberg: Militância e Pedagogia Libertária (Ijuí: Editora Unijuí, 2008, 344p.), no qual busca rememorar para as gerações atuais e futuras o pensamento e a prática de seu mestre. Ao discutir os vários momentos da trajetória pessoal, política e pedagógica de Maurício Tragtenberg, o livro lhe presta uma homenagem mais do que merecida e explora a hipótese de que sua militância intelectual e sua obra (que está a ser reeditada pela Editora Unesp) permanecem como uma referência para o pensamento crítico e a pedagogia. Vale a leitura.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Lula e Obama na Casa Branca



Como seria mesmo de se esperar em função da popularidade, do prestígio e da relevância política dos protagonistas, o encontro entre os presidentes Luís Inácio Lula da Silva e Barack Obama, realizado em Washington no último dia 14 de março, rendeu bastante discussão e muitas conjecturas.

A agenda do encontro foi composta por aquilo que já se sabia: protecionismo, regulação, medidas para conter a crise econômica, reunião do G-20 em abril, cooperação Brasil/Estados Unidos, biocombustíveis. Lula enfatizou particularmente a questão da maior disponibilidade de crédito nos mercados internacionais. Obama afirmou que os EUA colocarão a reforma financeira "no centro" de suas prioridades e que o estímulo fiscal é somente parte da resposta.

Coerente com seu compromisso de aumentar os esforços de seu país em favor das energias limpas, Obama declarou que os EUA "têm muito a aprender com o Brasil" no campo da energia renovável e afirmou que pretende usar o vínculo com esse país para "fortalecer" a relação com a América Latina. Lula retrucou no mesmo tom, afirmando que a eleição de Obama dá uma "oportunidade histórica" para que os Estados Unidos melhorem suas relações com a América Latina.

Os dois também abordaram o protecionismo, tema que preocupa o Brasil sobretudo depois da inclusão no pacote de estímulo nos Estados Unidos da cláusula "Buy American" (que privilegia a compra de produtos americanos pelos americanos). Obama disse reconhecer a importância do comércio como motor econômico e afirmou que o "objetivo deveria ser pelo menos não regredir" na abertura comercial. Ambos, no entanto, foram cautelosos quanto à liberalização comercial (Rodada Doha), que vêm como pouco provável enquanto persistirem os efeitos mais perversos da crise econômica internacional.

O encontro entre os dois presidentes foi descontraído e marcado por brincadeiras. Durou bem mais do que o previsto. Não resolveu praticamente nada, mas teve um grande e não-desprezível efeito simbólico, bom para Lula e para Obama.

Dei uma entrevista para a Rádio Eldorado logo depois do encerramento da reunião. Ela pode ser ouvida aqui.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Giuseppe Vacca em São Paulo


Na próxima semana, o intelectual e pesquisador italiano Giuseppe Vacca estará em São Paulo para lançar seu livro Por um novo reformismo, publicado no Brasil pela Editora Contraponto em parceria com a Fundação Astrojildo Pereira. A tradução é de Luiz Sérgio Henriques, garantia de qualidade.

No dia 19 de março, quinta-feira, Vacca fará uma conferência na Câmara Municipal de São Paulo, às 19h. A Câmara fica no Palácio Anchieta, Viaduto Jacareí, nº 100, Centro.

No dia 20, 19h, Vacca falará sobre os intelectuais e a educação em Gramsci na Faculdade de Educação da Unicamp. Dia 21, na sede do PT em São Paulo (Rua Silveira Martins, 132, próximo ao metrô Sé), às 16h, o debate será sobre a atualidade política de Gramsci, em evento promovido pela Secretaria de Relações Internacionais do PT e pela Fundação Perseu Abramo.

É uma excelente oportunidade para se conhecer o posicionamento de um importante intelectual europeu diante da situação mundial e das perspectivas da esquerda no cenário contemporâneo. Como presidente da Fondazione Istituto Gramsci, ex-deputado pelo PCI e autor de dezenas de livros e artigos dedicados ao marxismo gramsciano e à política, Vacca expressa bem as tradições e o modo de ser da esquerda italiana, uma das mais ativas, sofisticadas e importantes do mundo.

Certamente tem muito o que nos dizer.

domingo, 1 de março de 2009

O castelo, os príncipes e o rei nu


Stetsenko Kseniya, The Naked King. Óleo.

Dizem que no Brasil tudo começa depois do carnaval. A convicção é em muitos aspectos verdadeira, mas não se aplica ao ano político, que costuma dar o ar da graça bem antes disso, se é que calendários políticos conheçam férias e interrupções.

2009 começou com a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado e, quase ao mesmo tempo, com a descoberta do castelo construído pelo deputado Edmar Moreira. Nada deveria chamar muito a atenção, não estivesse o deputado ocupando a segunda vice-presidência da Câmara (cargo que incluía a função de corregedor) e não tivesse “esquecido” de declarar o bem, avaliado em mais ou menos 50 milhões de reais. Com o agravante, como logo se soube, de que o castelo havia sido planejado para servir de cassino, num país em o jogo é ilegal. A cereja do bolo coube ao STF, que revelou a existência de um inquérito para apurar a apropriação indébita, pelo deputado, de contribuições ao INSS. Os desdobramentos do caso são conhecidos, não há necessidade de voltar a eles.

Também seria normal a recondução do deputado Michel Temer e do senador José Sarney à direção do Congresso Nacional, não fossem os parlamentares vinculados ao mesmo partido e não fosse esse partido um operador político inteiramente dedicado a seus próprios interesses, sem idéias consistentes ou laços substantivos com qualquer força viva da nação. Partido que inscreveu seu nome na história por ter conduzido, com realismo e inteligência, a luta pela redemocratização do país, hoje o PMDB é uma sombra de seu passado, ainda que continue ativíssimo. Faltam-lhe clareza programática e projeto nacional, sobram-lhe vínculos regionais e apetite por cargos. Passou a expressar o “atraso” político brasileiro, mas, curiosamente, ajuda a que se afirme “a tradição do público na sociedade”, como observou o cientista político Luiz Werneck Vianna (Estado, 15/2/2009). Faz isso, porém, por via eminentemente fisiológica, acabando por transferir ao sistema uma pesada carga de fatores degenerativos. Para ser contido, precisa ser incorporado ao jogo político, mas ao sê-lo rebaixa a qualidade do jogo. Tê-lo na condução do Congresso funciona assim de modo paradoxal: amarra o partido à democracia e à institucionalidade política, ao mesmo tempo que o reforça como estrutura predatória.

Também anterior ao carnaval foi a entrevista do senador Jarbas Vasconcelos, que não poupou palavras para detonar seu partido, que estaria hoje definido por uma estrutura “coronelística” dedicada a explorar o governo e corroída pela negociata política. O tom foi de desgosto e decepção, mas o discurso foi calculado. Diga-me com quem andas e direi quem és, pareceu ser o recado ao Planalto, à direção do PMDB e a todos os que flertam com o partido. Política pura, com muita dissimulação, drama e jogos de cena. O estrondo só não foi maior porque o PMDB engoliu em seco, fez-se de morto e esfriou o fato.

O período foi pródigo na reiteração de duas tendências da política brasileira recente. Lula deu prosseguimento ampliado ao estilo que lhe têm concedido altos índices de aprovação popular, que atingiram agora impressionantes 84%. O Encontro Nacional de Novos Prefeitos por ele patrocinado foi uma festa política, mas não um desfile carnavalesco. Serviu de palco para a campanha presidencial de 2010, que, a esta altura, já se tornou fato consumado. Mas também conteve um elemento de vida institucional e governo: nas palavras do cientista político Fábio Wanderley Reis (Estado, Aliás, 15/2/1009), “a aproximação do governo federal com o municipal cria uma estrutura de Estado mais equilibrada” e reproduz a forma brasileira de fazer política.

A oposição não perdoou o que considerou uma antecipação da campanha presidencial. Foi, no entanto, bisonha e ineficiente na operação, reiterando a desgraça maior de sua fase atual. Exigir que um governante deixe de fazer política e de buscar extrair vantagens eleitorais de seus atos é tão sem sentido quanto achar que uma oposição de verdade deva atuar em tempo integral para demolir a situação. A denúncia foi somente uma demonstração adicional de medo e preocupação com os movimentos de Lula, quem sabe um reflexo da necessidade que têm os oposicionistas de ganhar tempo para arrumar a própria casa. Além do mais, veio embrulhada em paradoxos e contradições, como bem lembrou o professor Fábio W. Reis: ganhou luz pela boca do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no mesmo momento em que convocava o PSDB para entrar firme na disputa.

Juntando-se os fios, o período pré-carnavalesco serviu de espelho para que mirássemos a real situação da política nacional. Refletiram-se nele diversos traços da nossa dificuldade de ingressar em um ciclo virtuoso de vida democrática, reformismo e reorganização social. A persistência do flerte que o Congresso mantém com a desmoralização pública de sua imagem e de suas funções reflete um processo impulsionado pelo esforço compulsivo de políticos e partidos para maximizar interesses de curto prazo. A popularização banalizada da Presidência ganha embalo na figura carismática de Lula. O não-aparecimento de lideranças de novo tipo expressa a falta de uma oposição democrática suficientemente lúcida, unida e corajosa para abrir mão de ganhos imediatos e se apresentar como opção para a sociedade.

O ano começou dando transparência a uma situação cortada por dilemas, paradoxos e interrogações, em que não há nenhum príncipe (o estadista) ao estilo de Maquiavel e desapareceram os príncipes modernos de que falava Antonio Gramsci, os partidos políticos, dedicados a organizar idéias e interesses em torno de um projeto de sociedade.

Nunca o rei esteve tão nu. (Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/2/2009, p. A2).