domingo, 7 de setembro de 2014

Esquerda unida...



Ilustração de Americo Gobbo

Com a costumeira elegância, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pediu voto para Aécio Neves hoje (07/09), em seu artigo no Estadão. Para FHC, a hora é da oposição. O país estaria em uma “encruzilhada da mudança”. Dilma já não mais oferece saída, “embarcou num desvio que está custando caro a ela e ao País”. E Marina Silva, a seu ver, é uma neo-oposicionista, não tem condições de “organizar forças políticas ao redor de ideias e interesses que possam compor-se e formar uma maioria para governar”. O único candidato que poderia fazer isso é o do PSDB, “uma oposição que vem junta há muitos anos”.  A opção, para ele, estaria na resposta a uma pergunta: “escolheremos o caminho mais seguro ou, no embalo da velha tradição personalista, embarcaremos na direção de mares nunca dantes navegados?”.
Foi bem parecido o editorial de fundo do jornal, com o acréscimo de um tom bem mais ríspido, alarmista e agressivo. Segundo o texto, Marina não tem “nenhuma perspectiva concreta de apoio parlamentar” e nenhum equipe técnica, o que faria com que ela se tornasse “presa fácil” do PT e terminasse por se entregar ao PT, pavimentando a volta de Lula em 2018.
São pontos de vista que valem uma reflexão.
FHC não deu a devida atenção ao fato de que o PSDB não é propriamente um partido com vocação oposicionista, não está treinado para isso e não tem obtido bons resultados nessa operação. Tem bons quadros técnicos e um bom discurso, mas poucos votos e pouco enraizamento social. Se tem pretensões de voltar a ser governo no curto prazo, talvez seja mais coerente pensar nas alianças que precisa fazer desde logo, na linha do acúmulo de forças. Brigar com Marina, ajudar a desconstruí-la e apresentá-la como aventureira pode não ser uma orientação eficaz, pois poderá criar feridas difíceis de serem cicatrizadas depois. Se há, como se diz, um “campo oposicionista” ampliado no país – uma vontade popular de mudanças –, então o melhor seria buscar unificar esse campo e não estilhaçá-lo ainda mais. É verdade que existem o primeiro e o segundo turno, mas o que se faz em um pode prejudicar o que se pretende fazer em outro.
No caso do editorial, deve-se observar que apoio parlamentar não é um dado, mas algo que se conquista. É prematuro dizer que este ou aquele candidato não tem “nenhuma perspectiva” de conquistá-lo. Há bons motivos para se preocupar com a fraqueza organizacional da coligação de Marina e com as dificuldades que enfrentará no Congresso, seja em decorrência do estilo político de atuação, seja em função de propostas mais radicais que eventualmente vier a apresentar. Mas isso poderá ser contornado, caso haja flexibilidade, inteligência política e capacidade de articulação social. Como se fala hoje em dia, trata-se de uma construção.
A discussão importante, neste caso, tem a ver com a questão do método democrático de governo.
Será mesmo indispensável que um governo tenha sempre uma maioria leal e disposta a votar fechado, ou seria mais interessante que se formassem várias maiorias, uma para cada questão da agenda? A primeira via sugere maior facilidade e é decisionista, mas cobra preço alto em troca de apoios e favores. A segunda vida é mais complexa e exige esforço redobrado de articulação, mas tende a ser coerente. Nosso presidencialismo de coalizão incentiva o primeiro método, e não é que tenhamos tido sempre boa governança e governabilidade. Poder-se-ia pensar nas vantagens que o segundo método traria.
Em termos de análise prospectiva, o editorial lança uma hipótese interessante, mas não a explora, bloqueando-a com um veto ideológico. Ele sugere que Marina, caso vença, será obrigada a se aliar a Lula e terminará governando com o PT, coisa que, para o jornal, seria o pior dos mundos. Pressupõe-se, nesse caso, que Marina nada mais seria do que um PT2.
Em sentido oposto a essa visão, parece-me bem interessante pensar num governo Marina que funcionasse como vetor de reorganização das forças de esquerda no país, agregando à sua coligação os votos, a força política e o empenho reformador do PT, do PSDB, dos movimentos sociais e das organizações populares.
O ganho que se obteria com tal perspectiva – hoje meramente fantasiosa, mas que pode ser cogitada como exercício de reflexão – tenderia a ser extraordinário.
Antes de tudo, ela compensaria o baixo poder relativo dos diferentes partidos e movimentos de esquerda, fornecendo a eles melhores condições de testar suas propostas. Depois, porque cimentaria uma base política para reformas audaciosas e daria a essa base o devido apoio social. Em terceiro lugar, porque ajudaria as próprias esquerdas a depurarem suas cristalizações regressistas remanescentes, a se renovarem e a considerarem com maior afinco o desafio da cooperação entre elas. Por fim, porque as impulsionaria para entrar em contato mais ativo e inteligente com a nova sociedade que vem emergindo nos últimos anos.
A perspectiva de uma unidade democrática das forças renovadoras e progressistas sempre esteve na agenda política do país. Exige desprendimento e espírito coletivo. É dificílima de ser traduzida em termos práticos. Mas talvez possa ser recuperada com os olhos no futuro.

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