domingo, 24 de novembro de 2013

A hegemonia imperfeita




O PT está há 11 anos no governo federal, é o principal e mais bem organizado partido do país, mas não fixou uma orientação de sentido que agregue os brasileiros, ou a maioria deles. Tem votos, mas não consensos. Sensibilizou a opinião pública para o tema da desigualdade social, mas fez isso por meio do assistencialismo e não de uma imagem de vida coletiva.

Passou-se o mesmo nos 8 anos de FHC. Sua política de combate à inflação trouxe a cultura da responsabilidade fiscal para a gestão pública, mas não uma ideia de sociedade. Introduziu a linguagem da reforma do Estado e com ela pautou os governos que o sucederam, mas não conseguiu valorizar o Estado perante os cidadãos. 

E o que dizer das décadas seguidas de PSDB em São Paulo? Vitórias eleitorais sucessivas conseguiram atiçar algum sentimento antipetista, mas não anunciaram uma comunidade política. O legado tucano resume-se a obras e providências administrativas, como aliás ocorre em todos os lugares. Não contempla valores. 

Há o “poder da mídia”. Estrutura-se em imagens, informações, narrativas. A ilusão de que faz o que quer com a cabeça das pessoas tem levado a que se fale em “mídia golpista”, expressão tão provocativa quanto equivocada num contexto em que os grandes órgãos de comunicação têm suas “orientações” desmentidas no instante mesmo em que são emitidas. As redes sociais comprometem sua eficácia. Mas tais mídias alternativas são o espaço de todos e de ninguém. Não podem ser articuladas por uma ordem de comando ou por um sujeito unificador revestido de poder de agenda e capacidade de direção intelectual e moral.

Há muito poder econômico no mundo. A concentração de riqueza é assustadora. O capital não cabe em si e regurgita com frequência. A crise global é na verdade uma situação de conflitos incessantes que não conseguem ser coordenados e superados. É uma crise de direção política no sistema e no interior de cada Estado. A hegemonia do capital financeiro é real, mas não traz consigo uma fantasia organizada: é uma supremacia que não seduz nem convence, em que pese o investimento pesado em propaganda. A própria hegemonia dos EUA se faz hoje com muitos vácuos e oscilações. 

O quadro é de crise de hegemonia. Já não há mais, a rigor, uma “hegemonia neoliberal”. Nem qualquer outra. Cada sujeito, cada polo ou bloco tem limites (econômicos, corporativos, ideológicos) que o impede de se tornar hegemônico, quer dizer, de dirigir em nome de um “projeto existencial”.

No Brasil, as oposições não avançam porque não têm empatia ou discurso que as qualifiquem como artífices de mudanças. A presidente Dilma, por sua vez, é beneficiada pela posse dos instrumentos de governo e mantém posições mesmo sem dispor de propostas que empolguem.

Falar em hegemonia é falar em poder das ideias, componente decisivo de qualquer operação que intencione magnetizar pessoas ou mudar o mundo. Pode-se governar com recursos político-administrativos e com dinheiro, mas não se muda a disposição cívica nem se deslocam estruturas sem ideias articuladas. A luta ideológica é mais decisiva que a eleitoral.

Fala-se de “hegemonia” sem muito rigor. De um lado, há os que a confundem com supremacia política. De outro, os que dizem que ela é a porta de entrada de uma visão totalitária do mundo. Não se valoriza o fundamental: hegemônico não é quem manda ou ganha eleições, mas quem consegue apresentar uma proposição crítico-racional para a sociedade. A busca de hegemonia é um exercício cultural interativo e dialógico. Não se resolve de uma vez por todas, com uma camisa-de-força, mas mediante discussão permanente. É uma construção sem prazo para terminar.

Privilegiada pelo marxista italiano Antonio Gramsci, a hegemonia é o dado que falta nos dias correntes. Há poder e poderes, mas não direção intelectual e moral, ou melhor, há muitas direções e nenhuma delas consegue prevalecer incontrastável. Há domínio e coerção, mas poucos consensos. O desentendimento dificulta a modelagem coletiva da experiência social. 

Hegemonias existem, mas são imperfeitas. Carecem de base material e condições para que se unifique a vida social em torno de projetos coletivos. 

Gramsci queria, com o conceito, mostrar que não era preciso chegar ao poder político para ter influência no Estado e na sociedade. Que os subalternos e seus representantes políticos poderiam disputar posições importantes e fixar seus valores no arcabouço cultural das sociedades. Em suma, que dava para dirigir sem dominar, ocupar espaços a partir dos quais direcionar a ação dos poderes estatais. 

Não há como dizer que esse projeto não deu certo. As classes subalternas, ao longo do século XX, conquistaram muita coisa e imprimiram a marca de seus interesses, valores e projetos na comunidade política moderna. Mas essa hegemonia não foi suficiente para mudar com radicalidade a estrutura do poder. Houve maior compartilhamento de posições, mas o poder permaneceu concentrado e voltado para defender os interesses economicamente dominantes.

Quando Gramsci idealizou seu conceito, a hegemonia nascia da fábrica e podia ser pensada como estando enraizada no universo da produção. Hoje, esse universo não referencia a sociedade. A fábrica está se robotizando, alterou suas plantas, espalha suas unidades longe do controle dos Estados. A classe operária perdeu densidade e não pode mais ser vista como o sujeito político por excelência, levando consigo os partidos de massa e as utopias que desenhavam o futuro.

Vivemos cercados de poderes, mas eles coordenam pouco a vida social. Nem sequer regulam pressões e interesses. Fazem-nos mal, mas não são donos de nossas mentes nem de nossos movimentos. São negativos mais pelo que deixam de fazer do que pelo que fazem. São pouco amados e muito difamados, agredidos e contestados, mas não conseguem ser responsabilizados. Desabam sobre as pessoas mas não as orientam. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/11/2013, p. A2]

domingo, 17 de novembro de 2013

Oliveiros, Ubaldo e a morte da ideia de Estado




O artigo de Oliveiros S. Ferreira publicado no Estadão de ontem é saborosíssimo e faz pensar. Passeia pela história nacional com desenvoltura e erudição, como é habitual no autor. Leiam que vale a pena.  Até seu título é um convite à reflexão: “Onde está o Brasil nesses vários 'Brasis'?”. Pode ser acessado na íntegra aqui.

Mesmo quem não concorda com o texto aprenderá com ele. Da minha parte, aceito sem dificuldade o argumento e a tese central, ainda que talvez a desenvolvesse com outra tonalidade. A conclusão é categórica: não se pensa mais em Brasil porque a ideia de Estado morreu. Se bem entendida, fornece uma porta para que se analise o país que temos hoje, com suas dificuldades e problemas que se estendem no tempo praticamente sem solução.

Oliveiros faz uso inteligente e provocativo de um trecho de João Ubaldo Ribeiro: "Não tem essa besteira de Brasil-Brasil-Brasil, isto é coisa para os iludidos de minha marca, que agora estão abrindo os olhos. Agora tem o Brasil das mulheres e o Brasil dos homens (...) 0 Brasil dos negros, o Brasil dos brancos (...) 0 Brasil dos evangélicos e o Brasil dos católicos (...) e nem sei quantas categorias, tudo é dividido direitinho e entremeado de animosidades, todo mundo agora dispõe de várias categorias para odiar”.

É uma poderosa descrição do que temos na vida real. Projeto de nação? Nesse contexto? Impossível. Projeto de poder, sim, na verdade muitos projetos de poder. Mas nenhum deles com capacidade para plasmar o que quer que seja.

A isso que pareceria à primeira vista uma boutade para fazer rir, Oliveiros agrega sua verve, seu estilo e sua teoria política. “João Ubaldo está nos dizendo que aquilo que chamávamos de sociedade brasileira deu lugar a tantas corporações quantos sejam os que, minimamente organizados, têm alguma influência sobre os que são tidos como formadores de opinião. Influência que se transforma em poder, para reclamar tratamento distinto do que recebem os milhões que compõem o corpo eleitoral - os cidadãos”.  

Por que isso ocorreu? Oliveiros recorre a uma de suas chaves explicativas mais conhecidas. Porque não se se cuidou de “superar as servidões da infraestrutura e se permitiu que houvesse vários Brasis: o do Norte, o do Nordeste, o do Centro-Oeste, o do Sudeste e o do Sul”.  Mas houve mais. “Boa parte dos que orgulhosamente pertencem ao escol culto tem sua cota de responsabilidades na destruição da ideia do Brasil, vale dizer do Estado brasileiro”.

E segue em frente: “Não apenas a infraestrutura e a destruição da História nos conduziram ao grito de dor que João Ubaldo emitiu. É preciso ver que a serpente pôde vir ao mundo - ao nosso mundo político e social - quando deixamos de ser cidadãos e passamos a ser membros de uma categoria: metalúrgicos, bancários, comerciários, jornalistas, nem sei mais quê. Consagrou-se a corporação como a reunião de indivíduos com interesses distintos dos demais e sem coisa alguma que os unisse uns aos outros, a não ser o mero interesse imediato. (...)  Ao nos identificarmos como membros de uma categoria, deixamos de ser cidadãos e passamos a ser apenas indivíduos ligados por laços de interesse curto, ainda que vil. Não nos projetamos, nem no tempo nem no espaço”.

E, por fim, o passo mais complicado: “a sociedade e o Estado corporativos -- porque o Estado é hoje também uma corporação -- mataram a Política, e não mais conseguimos ver-nos como cidadãos de um Estado nacional”. Só pode haver Política (com “p” maiúsculo mesmo) naquele “reino das condutas que não são reguladas administrativamente pelo poder de Estado”. Somente assim as ações poderiam ser livres e a imaginação teria como prevalecer e indicar o modo de resolver conflitos coletivos. 

A conclusão é taxativa: “As crises de junho mostraram a falência do Estado e que, não tendo os governos impedido a presença do crime organizado no território, a ideia do Brasil perece. Porque a ideia de Estado -- que não é o mesmo que a ideia de corporação, a de algo relativo a uma ‘categoria’ – morreu”.

Eu acrescentaria, somente para enfatizar: o que perece é a ideia de Estado democrático. Porque um Estado que não seja democrático pode carregar consigo outras tantas maldades e impedir que se alcance uma ideia de sociedade que possa ser compartilhada e vivida por todos.

Estou certo de que Oliveiros concordaria com esse acréscimo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Livros e comunidades políticas

          Sevan Melikyan, After Picasso's Three Musicians
Para quem vive de pesquisas, aulas e debates de ideias, um livro novo sempre é motivo de comemoração, de congraçamento e reflexão. Nenhum livro de política é fruto de trabalho isolado: ele nasce e cresce em diálogo com amigos, colegas de trabalho, aliados e adversários de ideias ou posicionamentos políticos. De algum modo é uma obra comunitária. Imbrica-se com a conjuntura do país e do mundo, com os humores da política e especialmente das ruas. Não é forjado na calma quieta de um gabinete.
Em As ruas e a democracia, que acaba de ser lançado, posso dizer que estive sempre em boa companhia. Este blog e as rodas no facebook me instigaram muito, pelos comentários recebidos. Muitos amigos me ajudaram – de viva voz ou por seus artigos e intervenções – a interagir com a realidade brasileira, os vaivéns políticos e a movimentação social.
Três deles me honraram de modo particular: Luiz Werneck Vianna, Renato Janine Ribeiro e Luiz Eduardo Soares. Além de me terem dado muito material de reflexão, escreveram lindos textos de apresentação do livro. Renato fez o prefácio, Werneck e Luiz Eduardo as capas. Agiram como amigos fraternos, em nome do pluralismo que tem marcado nossa amizade.
Eu não poderia me sentir mais homenageado.
O texto de Werneck Vianna, meu amigo de décadas e uma das minhas referências intelectuais, segue abaixo.
Este As Ruas e a Democracia nos chega em boa hora, vindo da reflexão do cientista social Marco Aurélio Nogueira sobre o movimento de junho, que rompeu com fúria a aparente calmaria da superfície da política e pôs por terra a ilusão de que estávamos no limiar do fim da história do Brasil. A política do conservar-mudando, insígnia da revolução passiva, em nome de um pragmatismo sem princípios, manteve, até então, a sociedade imobilizada politicamente, desde as elites empresariais aos sindicatos de trabalhadores, dos intelectuais à vida popular, por uma política de contínua cooptação dos seus quadros, lideranças e movimentos sociais, trazendo para o interior da malha estatal a tudo e todos, dando partida a mais um surto de modernização “por cima”.
Foi essa política regressiva – embora, retoricamente, apontasse em direção à mudança – que levou o PT a “mergulhar fundo no sistema”, segundo o autor, a quem ficamos devendo a exploração dos fundamentos da crise que nos ronda, que não necessariamente está fadada a conhecer um final feliz. O diagnóstico ponderado e cuidadoso que o leitor tem em mãos, não tergiversa em sua conclusão: “o PT tornou-se parte da crise”.
Mas sua análise evita o viés idiossincrático: nela está presente o reconhecimento de que “a sociedade brasileira mudou em profundidade” nessas últimas décadas de modernização, tornando-se “mais dinâmica e mais diferenciada, com mais mobilidade social, novas culturas e novas expectativas”. Os êxitos daí derivados, contudo, longe de legitimar a política dominante, teriam conduzido, em suas palavras, tal como se constata a partir dos acontecimentos de junho, a uma ultrapassagem do sistema político pela sociedade.
Nesse novo cenário, podem prosperar “visões especializadas”, éticas de convicção, mas não uma política que descubra a saída desse labirinto de ruas em que nos metemos. Com método, largueza de propósitos e equilíbrio, marcas registradas do autor, aí está o mapa que pode nos servir de guia para nos safarmos dele. 
Luiz Werneck Vianna
Professor/pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

As ruas e a democracia




As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: FAP; Rio de Janeiro: Contraponto. ISBN: 978-85-89216-44-9 • 2013 • 228p. • R$ 30,00.
Prefaciado por Renato Janine Ribeiro, com as abas da capa assinadas por Luiz Werneck Vianna e a contracapa por Luiz Eduardo Soares, As ruas e a democracia reúne ensaios escritos ao sabor dos acontecimentos que marcaram os dois últimos anos e pretende refletir sobre a crise política que se agudizou no Brasil depois dos protestos de junho de 2013.
As ruas de junho surpreenderam, mas as razões de sua efervescência estão entranhadas na estrutura das sociedades contemporâneas, inscritas na realidade do capitalismo globalizado, na história nacional e na conjuntura política, expressando a força desconstrutora e reorganizadora do processo de radicalização da modernidade capitalista.
A principal hipótese do livro é que o Brasil conheceu em junho a face mais visível de uma crise da política que vinha de longe, que trocara sua manifestação explícita por uma latência recorrente que aos poucos foi corroendo a representação política e pondo em xeque a legitimidade dos governos. O sistema político em sentido estrito surge nela como a ponta de um iceberg, o protagonista que sintetiza o que há de perverso no todo. Questionou-se o sistema vivo, aquele que se mostra na conduta dos políticos, dos partidos e dos governantes, na falta de ideias generosas com que dar um sentido de futuro à sociedade, na facilidade com que se permite o enriquecimento de certos atores e a disseminação de ilícitos de todo tipo. Não se recusou o sistema escrito, constitucionalizado, nem a democracia política como tal, mas o que funciona (ou não funciona) de fato.
Em junho de 2013, a hipermodernidade se anunciou com força na política. Trouxe consigo uma nova politicidade, à margem de partidos e organizações e repleta de tendências “niilistas” pré-políticas. Não faz sentido romantizar os protestos, vê-los como sendo o anúncio de uma democracia revitalizada. As vozes da revolta verbalizaram demandas reais, disseram muitas coisas, mas não forneceram soluções. Despertaram consciências e tiraram a política da letargia, mas não anunciaram uma revolução. É impossível saber se continuarão mobilizadas, mas pode-se dizer que é improvável que cheguem muito longe, a ponto de impor mudanças substantivas. Mesmo assim, seu efeito positivo não pode ser desprezado. Depois de junho, a vida política não será mais a mesma, ainda que demore a mudar.
O SUMÁRIO
Além da apresentação, o livro contém 6 capítulos: 

1. Brasil, junho 2013: as vozes das ruas e os limites da política.  

2. Depois de junho. Sobre as respostas governamentais.  

3. Voo panorâmico sobre o governo Dilma. 

4. Crise e reforma política. 

5. Mídia, democracia e hipermodernidade.  

6. A corrupção que não sai de cena.