sábado, 27 de agosto de 2011

Oito meses e alguma turbulência

Há bons motivos para que avaliemos positivamente os primeiros meses do governo Dilma Rousseff, sobretudo se se considerarem as reais possibilidades de atuação com que contou.
Empurrado e legitimado pelas urnas de 2010, ele se iniciou num momento em que o país estava com a moeda estabilizada, reduzindo a miséria e expandindo o mercado interno, graças à ampliação do crédito popular, aos programas de transferência de renda e à recuperação do emprego.  Encontrou, portanto, uma sociedade animada pelos mecanismos consumistas típicos da modernidade atual, ou seja, uma sociedade menos solidária e mais competitiva, que extrai desta sua nova condição o oxigênio necessário para se relacionar de outro modo com o Estado. É uma sociedade que continua pedindo garantias, direitos e proteção, mas que também aprofunda sua inserção nas trilhas da despolitização e passa a ver o mundo em termos mais mercantis, aliviando parcialmente a pressão sobre o Estado.
A face política e administrativa do Estado, por sua vez, se não corrigiu por inteiro seus problemas crônicos (ineficiência, inchaço, custo elevado, despreparo), também não piorou. A representação continuou como sempre, com uma classe política que deixa a desejar. A administração permaneceu contagiada pela dinâmica gerencial que se vem afirmando desde a reforma de 1994. Além do mais, está hoje submetida a um maior grau de fiscalização por parte da opinião pública, fato que a torna mais transparente e mais passível de controle. A corrupção não cresceu, mas a percepção dela aumentou, o que faz com que denúncias se sucedam e o combate a ela passe a fazer parte da agenda pública e da agenda governamental.
Não é por outro motivo que os oito meses iniciais do novo governo foram vividos sob o signo da instabilidade ministerial. A fraqueza da equipe é flagrante. Ministros saíram por motivos relacionados a desvios de conduta ou a inabilidade. O ministério não parece funcionar.
Parte desta instabilidade vincula-se à herança recebida por Dilma, que está longe de ser uma “herança maldita”, como se ouve dizer em alguns ambientes. De qualquer modo, é um fardo. Aquilo que beneficiou a então candidata nas eleições de 2010 – o apoio de Lula, as realizações governamentais, as alianças feitas com o intuito de fornecer “governabilidade”, a base parlamentar – tudo isso, de repente, parece se voltar contra o novo governo, dificultando sua arrumação. Afinal, cada presidente precisa imprimir sua própria marca ao governo que dirigirá, e nesse terreno não pode haver simples transferência de esquemas ou continuidade passiva, por mais que Dilma e Lula sejam carne da mesma carne e integrem o mesmo partido.
Não deveria estranhar, portanto, a existência de certos “ajustes de conta” entre os apoiadores do novo governo ou mesmo entre alas do PT. Nos primeiros oito meses, estes ajustes foram tão intensos e eloquentes que ofuscaram planos e programas de ação do governo. O quadro acabou por ensejar certa confusão. O Brasil sem Miséria, por exemplo, complementa ou compete com o Bolsa-Família, é uma sua requalificação ou representa a abertura de outra frente de batalha, com distinta lógica e distintos protagonistas?
O legado dos oito anos de Lula não deu trégua aos oito meses de Dilma. Não poderia ter sido diferente. O período Lula imprimiu uma inflexão na vida nacional, seja pelo choque simbólico derivado da biografia de Lula e de seus traços carismáticos, seja pelas novas alianças que produziu, especialmente as que levaram a uma espécie de pacto informal entre o trabalho e o grande capital, seja enfim por sua própria agenda pessoal. Não deve ser fácil governar com a sombra de uma liderança popular que se recusa a sair de cena e espera o momento certo para retornar ao Palácio. O esforço para se livrar desta sombra ou ao menos para neutralizá-la deve ter consumido boas horas de sono no Palácio do Planalto.
Muita gente acreditou que poderia pautar o governo com a ideia de “limpeza ética”. A presidente reagiu à altura, e não sem razão. A meta de seu governo, disse, não é fazer “faxina” em ministérios suspeitos de corrupção, mas sim "fazer o país crescer e combater a pobreza". Há quem pense que o combate à corrupção deveria ocupar o centro da ação governamental, como se só pudesse haver bom governo depois que todos os corruptos fossem presos. Alguns se esquecem de olhar para o próprio quintal e outros imaginam que o governo é a fonte geradora de tudo o que há de errado no país. Falta bom senso por aí.
Uma coisa é combater a corrupção, outra é transformá-la na razão de ser da ação governamental. No primeiro caso, faz-se uma luta política cotidiana que não paralisa o governo. No segundo, o combate é moralista e “espetacular”, atrapalhando a ação governamental. Achar corruptos é fácil, governar bem, difícil. Uma coisa não explica a outra. Um governo não é bom só porque combate a corrupção e não é mau só porque mantém prudência na luta contra ela. Como tudo na vida, virtus in medio est.
O equilíbrio demonstrado até agora pelo governo tem sido seu melhor alimento. A situação não lhe é totalmente favorável, há ventos soprando forte pelos lados da economia, a maioria parlamentar não é confiável e falta ao governo maior poder de articulação, seja em seu próprio interior e no âmbito das relações com os demais poderes, seja junto à opinião pública e à sociedade civil. O barco conta com uma timoneira tecnicamente qualificada e disposta a liderar o período governamental que terá pela frente. Sua densidade política, porém, ainda é baixa e ela dispõe de poucas bases próprias. Trata-se de uma situação que talvez nos ajude a entender as razões que mantiveram o governo enredado num matagal de pequenas questões.
O momento é de atenção. Tanto porque as águas em que o governo navega são turbulentas, quanto porque amigos, inimigos e adversários estão à espreita, prontos para subir ao palco. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/08/2011, p. A2].

domingo, 14 de agosto de 2011

Protesto global


O protesto ganhou as ruas de várias grandes cidades nos últimos meses. A primavera árabe da Praça Tahrir não se limitou ao Egito. Parece não ter data para terminar. Ecoa no Chile e em Israel, depois de ter dado o ar da graça na Espanha e em Londres, onde as manifestações permanecem. Há acampados em Tel-Aviv, fato que talvez surpreenda muita gente. Por todo lado, impulsionadas por redes sociais e pela dureza da vida, pessoas mostram-se cada vez mais disponíveis para ir às ruas protestar.
Os protestos são de excluídos, mas não necessariamente de pobres. A classe média empobrecida ou insatisfeita parece prevalecer. São seus filhos (e no caso do Chile também os pais de seus filhos) que dão o tom nas manifestações em muitos lugares. Há evidentemente o protesto dos habitantes das periferias, dos imigrantes, dos desempregados e humilhados, daqueles que são vítimas da truculência policial. Mas o eixo parece estar nas classes médias, ou seja, nesse vasto e impreciso contingente social que perdeu mais que ganhou nas últimas décadas de globalização capitalista. Que viu seus sonhos dourados (a casa própria, o emprego estável, a possibilidade de consumo, o status) serem comidos, inviabilizados ou dificultados, que olha para frente e se depara com um cenário enfumaçado, no qual mal se pode vislumbrar um futuro.
É tão visível o protagonismo das classes médias que muitos se apressam em vê-las como o novo sujeito histórico, aquele em que se depositam as esperanças de transformação.
Mas a nossa é uma época bem mais complicada. De sujeitos menos transparentes, mais fluidos e "descorporificados", que fazem política de formas surpreendentes e dissimuladas, quase à margem dos sistemas políticos. Não há mais, a rigor, burgueses e proletários, ao menos no sentido de que possam mover as rodas da história. Essa classes históricas, estruturais, parecem hoje reminiscências de uma época mais simples. O lugar por elas antes ocupado é agora do grande capital global e das "multidões, o primeiro composto por uma união informal dos mais ricos e as segundas, derivadas de um compósito de grupos e classes sem perfil muito bem definido mas que caminham na mesma direção porque se sentem igualmente prejudicados.
Essa é mais ou menos a essência da ótima entrevista dada à jornalista Carolina Rossetti pela socióloga holandesa Saskia Sassen (professora da Columbia University, em Nova York), ao Caderno Aliás do Estadão deste domingo, 14/08. O link para ela está aqui.
É uma leitura que nos ajuda a pensar e a entender que há mais do que crise financeira no ar. Não se trata de análise para ser aceita por todos como inquestionável, mas de uma prova de que o olhar crítico é o único recurso de que dispomos para acumular reservas com que interpretar o mundo.