terça-feira, 29 de julho de 2014

Muito barulho por quase nada




A repercussão do “caso Santander” está durando mais que o necessário. Faz-se muito barulho por quase nada. Muita vela para pouco defunto. Os jornais seguem dando amplo espaço para declarações de Dilma, Aécio e Eduardo sobre o assunto. Indignação veemente e protesto de um lado, frieza, exploração e indiferença de outro. Como seria de se esperar.
A questão é mais simples do que parece. Um analista de conjuntura do banco concluiu que a disputa presidencial provoca oscilações no mercado. Mais óbvio, impossível. A cada pesquisa de opinião, bolsa e câmbio mudam de tendência. Como haveria um “desejo de mudança” na sociedade – o que tem sido reconhecido exaustivamente pelos candidatos –, toda manifestação de continuidade faz com que os cabelos do mercado fiquem arrepiados. Como “mercado”, neste caso, é o mundo dos especuladores financeiros, o diagnóstico se mostra correto. Tem sido repetido diariamente por muitos outros analistas. Desde sempre, aliás. Para quem não se lembra, foi por algo assim que Lula agarrou a moderadíssima “Carta aos Brasileiros”, em 2002, conseguindo acalmar os especuladores e vencer a eleição. Na época, a cada divulgação de pesquisas que apontavam o favoritismo de Lula o “mercado” de câmbio e de ações tremia e parecia entrar em parafuso.
A gritaria atual se deve ao fato de que o governo e seus apoiadores interpretaram o diagnóstico como prejudicial à candidatura de Dilma, concluindo que houve “interferência institucional” indevida do banco na atividade eleitoral. O governo acerta na interpretação, mas não na conclusão.
Acerta porque a veiculação do diagnóstico provoca tensão e desgasta a candidata aos olhos de uma parcela dos formadores de opinião. Tal parcela é pequena, mas não irrelevante. No mínimo, o diagnóstico afeta o humor da campanha e a força a alguma reformulação.
Mas o governo erra quando fala em “interferência institucional”. Não esclarece bem o que significa isso e faz de conta que não sabe que outras instituições e pessoas também estão interferindo indevidamente na atividade eleitoral. Ou haveria alguém que não esteja hoje tentando meter sua colher neste angu?
Ao final de tudo, sobra bem pouco. Nada que devesse chamar excessivamente a atenção e que poderia, na melhor das hipóteses, gerar uma exigência de que a Justiça Eleitoral melhorasse seus mecanismos de controle, tanto sobre o Santander, quanto sobre outros bancos e instituições, financeiras ou não.
O que leva à conclusão de que a manutenção em evidência do “caso Santander” virou combustível eleitoral. Interessa e é útil. Possibilita a vitimização de Dilma e fornece um adicional argumento de agitação para a oposição, que pode ficar reverberando que a mudança por ela proposta acalmará o mercado.
A exploração é burra nos dois casos.
A conversão da presidente em vítima do mercado não é confortável para Dilma: faz com que ela se mostre frágil e tenha de entrar em atrito com setores do mercado, que a apoiaram até aqui, como é o caso do próprio Santander.
E a reverberação oposicionista condiciona a mudança ao mercado, o que pode ser traduzido como a prova que faltava para que se veja que não haverá mudança de verdade, mas concessão e acomodação.

domingo, 27 de julho de 2014

Mudar sem sair do lugar


Sharon Cummings, Positive Change

Fechadas as cortinas do espetáculo propiciado pela Copa do Mundo e sob os destroços da seleção brasileira de futebol, o país voltou à rotina na segunda quinzena de julho. Acordou com a campanha eleitoral oficializada, a convocar os cidadãos para uma reflexão sobre o que lhes têm a oferecer partidos e candidatos.
Foram poucos dias. Mas indicaram que nenhum novo roteiro está em cogitação pelos que concorrerão ao voto popular. Será percorrido o mesmo chão de terra batida das últimas eleições no país. Os programas divulgados mesclam algumas ideias concretas e muitas generalidades, parecendo ter sido elaborados mais para sensibilizar que para orientar o eleitor. Pouco se esclarece para onde deve ir o país, quais seus entraves, com que recursos se poderá contar para reformar o que precisa ser reformado.
Partidos, candidatos, coordenadores de campanha e marqueteiros estão alheios à sociedade. Não interagem com ela nem assimilam suas demandas e expectativas. A mesmice faz com que nem sequer se perceba o que separa os três candidatos principais ao Planalto. Suas vozes se preocupam excessivamente em desfechar ataques recíprocos, dissimulados em maior ou menor medida. Não é que não haja diferenças. Elas existem, mas estão codificadas. São genéricas e retóricas, além de repetitivas. O cidadão fica com a sensação de que tudo é falado como parte de um pacote preparado somente para impressionar.
Surpreende a reiteração desse desajuste entre a vida – complexa, repleta de problemas, difícil de ser compreendida e manejada – e a pobreza do discurso político, que se agarra ao canhestro para sobreviver. É como se houvesse, entre os políticos, uma cegueira paralisante, que impossibilita inovações e exacerba a defesa das posições de cada um. Os candidatos não se renovam porque temem perder espaços para os adversários. Estancam até nas pesquisas de intenção de voto.
Fala-se o que é conveniente para que não se percam votos. Deixa-se de lado o importante, não se tocam nos temas difíceis a não ser para neles pendurar promessas mágicas, a serem decretadas com uma varinha de condão tão logo cheguem ao posto cobiçado. Os candidatos dizem o que acham que o eleitorado deseja ouvir, mas não explicam a estrutura dos problemas, o teor das decisões, a origem dos recursos (técnicos, humanos, financeiros) com que se viabilizarão as soluções anunciadas.
É uma pequena tragédia política, protagonizada por todos os partidos, a situação e a oposição. Todos caminham de costas para a sociedade, atentos somente a seus próprios planos. Não espanta que o tédio, o “ódio” aos políticos e o desinteresse cresçam. E que a simplificação, a caricatura e a grosseria impregnem os ativistas e os apoiadores dos candidatos. O ramerrão é conhecido: os tucanos são entreguistas, neoliberais e contra o povo; os petistas são bolivarianos enrustidos, esquerdistas incompetentes que só se preocupam em mentir e ajudar os companheiros. Uns e outros, por sua vez, veem-se como estando acima do bem e do mal, não concedendo qualquer nesga de dignidade aos adversários. Como ter debate democrático assim?
Veja-se a ênfase que é dada agora. Os três principais candidatos escolheram slogans praticamente idênticos para suas campanhas. O eixo é a ideia de mudança, que se teria tornado sentimento e desejo comum dos brasileiros.
Todos falam em mudar, mas não ajudam a que se compreenda a mudança como desafio político. A nossa é uma época dinâmica e móvel demais. Mudamos tanto e tão depressa que nem percebemos o movimento que nos impulsiona. Muda-se sem cessar, mas não se sabe em que direção. A política se contagia. E os políticos, em vez de contribuir para que se entenda o quadro, salientam o valor da mudança para não perder contato com o imaginário social.
Mudar, na política eleitoral, significa invariavelmente melhorar, progredir, rever prioridades e corrigir erros. No jargão habitual, trata-se de uma inflexão que abre as portas do paraíso. O discurso político brasileiro não é crítico nem autocrítico. O elogio da mudança serve para que um candidato se autoglorifique e para que se estigmatize o “conservadorismo” de outros.
Não se considera que os humanos falam de mudança mas não gostam de mudar e resistem à mudança. Fazem isso sem consciência ou intenção: ou para defender o que já conquistaram, ou para proteger aquilo que lhes dá estabilidade e identidade. Mesmo assim mudam, fazem a história sem saber. Paradoxalmente, têm medo das mudanças e medo de que as coisas nunca mudem.
A história não é uma flecha que aponta sempre para frente. Está integrada por movimentos surpreendentes, não previsíveis, por efeitos bumerangue e retrocessos, erros e fracassos. Pode-se mudar para pior. Da posição que se vê como “ruim” podem derivar mudanças progressistas. Tudo isso é óbvio, mas não frequenta nenhum discurso político. Todos prometem mudanças como se fossem senhores da razão. Não explicam que às vezes se propõem mudanças para que tudo fique como está. Ou para que não se saia do lugar.
Quando Dilma fala em “Mais mudanças, mais futuro”, quantifica um processo em que o mais importante é a qualidade, silenciando sobre isso. Aécio Neves é imperativo quando propõe “Muda Brasil”, mas não diz que a mudança social é uma construção que somente pode proliferar se for adotada pela sociedade: negociada com ela. Eduardo Campos diz que é preciso “Coragem para mudar o Brasil”, como se o problema fosse exclusivamente de falta de vontade e ousadia.
Caso se deixem levar por tais discursos mudancistas, as pessoas para quem a vida precisa de fato mudar ficarão sem saber para que lado correr. E passarão a se perguntar: se é assim, por que diabos esses candidatos não se dão as mãos e reúnem forças para desenhar uma mudança que seja factível e produza impacto efetivo sobre o futuro? [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/07/2014, p. A2].

sábado, 26 de julho de 2014

Devolver vida às sombras


Ismail Shammout. A Glass of Water, 1976

Enquanto não ficar bem claro, para todos e no mundo todo, que judeus e judaísmo são uma coisa e o Estado de Israel é outra, bem diferente, não haverá como se formar uma opinião democrática que se oponha ao morticínio exterminador dos israelenses na Faixa de Gaza, que não para de recrudescer.
A barbárie e a desumanidade desabam sobre os moradores, sob a justificativa de que é preciso responder às agressões do Hamas que estariam a ameaçar a segurança de Israel.
Chega a doer a constatação de que a cultura judaica – construída ao longo de tantas perseguições e de tanta resistência heroica, berço de muitas referências políticas e intelectuais que ajudaram a civilizar e a tornar melhor o mundo – não tenha ainda conseguido erguer uma barreira ética e moral que obrigue o Estado de Israel a agir de acordo com os valores do judaísmo.
Estados são Estados, sabe-se bem disso: seguem regras próprias, forjadas com o ferro frio do cálculo e do interesse de potência. São muitas vezes controlados por grupos e pessoas que se deixam guiar por critérios autocentrados, distantes de considerações humanistas ou do respeito ao próximo. Seus excessos, quando não são contidos e revertidos, provocam dor e sofrimento generalizados e reverberam internamente, afetando até os que em tese seriam seus maiores beneficiários.
Para tudo é preciso existir um limite. Um limite ético, que vem da cultura, e um limite político, que vem da força das urnas e das mobilizações democráticas. Fora disso, sobra apenas o limite físico, militar. Que, a rigor, não deveria interessar a ninguém.
Ações estatais tendem ao pragmatismo e ao realismo, mas nem sempre são pragmáticas e realistas. Podem se deixar levar pelo irracionalismo, pelo erro de cálculo, pela obsessão. Algo assim está entranhado na lógica da atual conduta israelense em Gaza. Quanto mais ataca e bombardeia os palestinos, mais Israel se isola e fica longe da paz. Mais rouba a esperança dos palestinos, incentivando-os à guerra e à hostilidade.
Foi mais ou menos isso o que disse, entre outras coisas, Yuval Diskin, ex-diretor do Shin Bet, serviço de inteligência interna de Israel, entre 2005 e 2011. Para ele, hoje um crítico das políticas do premiê israelense Binyamin Netanyahu, se Israel não parar a construção de assentamentos em território palestino, manterá Gaza em polvorosa e impedirá que o conflito possa ser manejado com a criação de dois Estados na região. (Ler aqui.)
Em Gaza, há 2 milhões de mortos-vivos, “o lugar mais trágico da Terra”, como escreveu a rainha Rania Al-Abdullah da Jordânia. Num texto publicado no Brasil pelo Estadão de hoje (Ver aqui), ela lembra que lá “as pessoas lutam contra a pobreza, a violência, o preconceito, a intimidação, a fome, a falta de assistência médica, uma vigilância constante, insegurança, privação de artigos de primeira necessidade, desesperança, educação precária, isolamento forçado, desrespeito aos direitos humanos e a dor de perder entes queridos”.  Gaza é uma das mais pungentes e perturbadoras “distopias modernas”: um lugar onde pessoas são infelizes e têm medo, onde o futuro está condenado e é vivido como pesadelo e opressão.
Rania reproduz a emblemática e poética frase de um jovem palestino sobre o cotidiano dos moradores de Gaza: “É como ser uma sombra de seu próprio corpo, presa no chão, incapaz de se desprender dele. Você se vê ali deitado, mas não pode insuflar vida na sombra”.
É preciso “devolver vida às sombras”, enfatiza a rainha. A imagem é bela e poderosa. Não se trata somente de cessar-fogo, mas de eliminar os efeitos desastrosos do fogo: reconstruir a região e trazer seus habitantes de volta à vida.
O alcance deste objetivo depende em boa medida da comunidade global. Não só dos Estados e organismos multilaterais, mas de todos. Passa pela formação de uma consciência ética e de uma opinião democrática que integre os grandiosos valores do judaísmo e dos povos palestinos, demarque claramente uma posição e se imponha sobre a frieza e a indiferença que são inerentes aos cálculos estatais.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

A mudança na boca do povo


Stefano Rollero, Tra memoria e mutazione.

Se todos os três principais candidatos à Presidência dizem ser favoráveis à mudança – e o fazem porque julgam ter captado um “sentimento de mudança na sociedade” –, como poderemos saber em qual deles a mudança será efetivamente impulsionada?
Conversa de campanha, sem dúvida. Todos falam em mudar, até porque a vida é mudança e nossa época fez disso uma espécie de moto contínuo e de símbolo. Mudamos tanto e tão depressa que nem percebemos o movimento que nos projeta para frente. Valorizamos cegamente a mudança, queremos sempre mais dela. Somos atacados por ela, ou pela sensação dela. A política não tem como não se deixar contagiar. Quem não se compromete com mudanças deixa de dialogar com o imaginário social. Prega no deserto.
Mudar, na política de épocas eleitorais, significa invariavelmente melhorar, progredir, eliminar entraves e corrigir erros. No jargão habitual, não há espaço que associe a mudança ao risco de que a vida piore. O discurso político, ao menos entre nós, não é crítico nem autocrítico. Todos falam em mudança, seja para atacar os adversários (que não seriam tão mudancistas), seja para se autoglorificarem como campeões da “verdadeira mudança”.
Se sairmos deste terreno, perceberemos que a questão é bem mais complicada. Antes de tudo porque os humanos falam de mudança mas são estruturalmente conservadores: não gostam de mudar e erguem barreiras terríveis para a mudança. Fazem isso sem ter noção de que o estão fazendo, quer dizer, sem consciência ou intenção: somente para defender o que já conquistaram, para não correr o risco de perder o que acumularam e para proteger aquilo que lhes dá estabilidade e identidade. Mesmo assim mudam, fazem a história sem saber. Paradoxalmente, têm medo das mudanças e medo de que as coisas nunca mudem.
Pode-se mudar e piorar, porque a história não é uma flecha que aponta sempre para frente. Está integrada por movimentos surpreendentes, não previsíveis, por efeitos bumerangue e retrocessos, erros e fracassos. A rigor, ninguém a controla.
Tudo isso é óbvio, mas não frequenta nenhum discurso político. Não é da natureza da política ir muito além da positividade e das promessas. Suas falas incluem até mesmo, de forma dissimulada, a ideia de que às vezes é preciso mudar para que tudo fique como está. Ou de que se deve mudar sem sair um milímetro do lugar.
Quando Dilma fala em “Mais mudanças, mais futuro”, está quantificando a mudança sem se dar conta de que aquilo que importa é a qualidade da mudança.
Aécio Neves é imperativo quando propõe “Muda Brasil”. Ignora que a mudança social é uma construção que somente pode proliferar se for adotada pela sociedade: negociada com ela.
Eduardo Campos diz que é preciso “Coragem para mudar o Brasil”, como se o problema fosse exclusivamente de falta de vontade e ousadia.
Caso se deixem orientar por tais visões de mudança, as pessoas para quem a vida precisa de fato mudar ficarão sem saber para que lado correr. E passarão a se perguntar: se é assim, por que diabos esses candidatos não se dão as mãos e juntam forças para desenhar uma mudança que seja factível e produza impacto efetivo sobre o futuro?