A situação anda tão tensa e
confusa que um pouco de espírito analítico pode ajudar. Penso em análise no
sentido padrão: desconstruir, separar, distinguir, nomear, para então reunir
tudo num conhecimento mais abrangente.
Há black blocs e há
manifestantes, por exemplo. Nem todos os que batem e quebram são black blocs,
ou melhor, seguem a tática black bloc e a eventual filosofia de vida que lhe é
típica. Muitos são simplesmente revoltados, gente que quer dar um basta à vida infame
que se leva na periferia ou que querem visualizar algum futuro além dos
shoppings centers. Podem até existir alguns “riquinhos” que aproveitam o pique e
põem prá fora seus hormônios reprimidos ou mal utilizados, mas eles seguramente
são minoria.
Não se deveria abrigar sob a
grife black bloc tudo o que pulsa e verte ódio. Nem resumir esse universo no
conceito de fascismo ou vandalismo.
Ontem não havia black bloc na
Vila Medeiros, na rodovia Fernão Dias, em São Paulo. Mas havia muita revolta,
indignação, desejo de vingança, ressentimento, mágoa e medo. Havia vontade de
enfrentar a polícia, certamente porque a polícia é um dos piores pesadelos das
periferias urbanas, onde entra sem pedir licença e sem dialogar. Pior: matando
com enorme facilidade. Foi do governador Alckmin, meses atrás, a frase trágica
e estúpida: “quem não reagiu, está vivo”. Ela fixou um parâmetro para a atuação
policial, de certo modo reforçou, legitimou e autorizou que se atirasse antes
de saber o que se passa.
Não se precisa de tática black
bloc para que se extravase o que está armazenado nos porões das periferias, que
brota sem cessar do cotidiano e dos enfrentamentos brutais entre moradores e
policiais, misturados com criminalidade, drogas e miséria. A desesperança é um
combustível poderoso. Ela alimenta desejos de vingança, protestos difusos e
imprecisos contra tudo o que representa ordem e autoridade. Porque a ordem e a
autoridade que se apresentam ali são impostas, não nasceram de nenhuma
construção, não são decodificadas pedagogicamente, não são de modo algum “amigáveis”.
É uma situação que afeta a
todos, mas que fere de morte os mais jovens. Mata-lhes o futuro, tira-lhes a perspectiva,
convida-os a fazer cálculos existenciais negativos. É por isso que são eles, os
jovens, que se atiram de peito aberto contra a polícia, que queimam e destroem.
Encontram assim formas de clamar por reconhecimento, de aparecer, de adquirir
uma identidade que a vida lhes rouba, de exigir uma atenção que lhes é negada.
Ou será que há alguma política para eles, algum braço do Estado que não seja o
da polícia? A democracia faz sentido ali, produz resultados ali? Eles são
palpáveis, conseguem ser compreendidos? Quem atua ali como agente da
democracia?
A sociedade atual cria espetáculos
e exige que se espetacularize tudo. Os jovens em geral sabem disso, estão
aprendendo a agir assim. Ao bloquearem uma estrada e incendiarem caminhões, ao
enfrentarem a polícia, estão também representando um papel, com o qual imaginam
ser reconhecidos, ou pelo menos conhecidos. É uma forma de dizer que não
aguentam mais. Uma via torta, improdutiva, contraproducente. Se ódio, raiva,
ressentimento e desejo de vingança funcionassem a vida social já teria sido
expurgada de toda a sua ruindade e de toda a violência que contém. Mas é uma
via que precisa ser compreendida. Até para que não se ative uma espiral de
violência que a ninguém beneficiará.
A tática black bloc não empolga
as massas. Ela foi importada por clonagem, tem uma estética que cola no tipo de
vida que temos. É uma ação de minorias para minorias e contrária às maiorias.
Têm sido usados rios de tinta para falar dela e tentar explicá-la. Há quem diga
que os black blocs são a vanguarda da luta contra o capital, a ala mais
intransigente e violenta da contestação antissistema, aqueles que tirarão as
massas do pacifismo que não perturba a ordem das coisas nem abala as
instituições. Há quem veja seus seguidores como indispensáveis para a proteção
das massas, pois são eles que enfrentam a violência da repressão e fazem o
anteparo. Entre eles, muitos são anarquistas convictos, ou seja, têm uma
ideologia e uma consciência política. Mas como se trata de uma tática, ela está
aberta a muitos outros, que nenhuma ideologia possuem ou que militam
abertamente por causas obscurantistas.
Da minha parte, penso que são o
produto de uma vida bloqueada, sem esperança, sem utopia, individualizada e
fragmentada, de uma sociedade em que a violência está institucionalizada e em
boa medida entrou na corrente sanguínea, de um Estado no qual a democracia não impregna
a vida política, de uma cultura que presta homenagem ao espetáculo mas não se
complementa com uma ética pública consistente. Produto, em suma, das
iniquidades derivadas de um capitalismo sem freios e do descontrole que afeta a
vida institucional.
É uma tática que não traz
consigo democracia, direitos, causas ou utopias, mas somente o fim dos tempos.
Impor manifestações a partir da intimidação, do dano à propriedade e ao corpo
das pessoas que não concordam com a tática é atuar para reforçar tiranias. A
ideia de que a violência estatal-social é preexistente e deve ser respondida
com mais violência, de que quebrar e confrontar não é uma ação, mas uma reação,
uma “violência simbólica”, funciona como bálsamo justificatório para muita
gente, mas não leva rigorosamente a lugar nenhum. Reforça o sistema, em vez de
miná-lo.
É uma discussão antiga, difícil
de ser concluída ou de gerar convergências.
A maior dificuldade que temos
hoje, e a maior necessidade também, é quebrar a resistência à análise critica.
Isso, em boa medida, é uma vitória da tática black bloc: como ela contém muita
expressividade, convida a todos a ficarem no plano do espetáculo e aí, nesse
plano, não entra a política, mas a "arte": cada um gosta ou não e
poucos se preocupam em pensar em termos de consequência social, política, cultural
ou ideológica. É uma tática intimidatória: quem é contra ela, mesmo que de
leve, não é bem-vindo e não será ouvido. Por não ser dialógica nem reflexiva, produz
encolhimento crítico inevitável.
O fenômeno por aqui fica mais
complicado. Ganha uma distorção adicional. Se na Europa combate-se o
capitalismo "civilizado", por aqui a "selvageria
capitalista" típica dos trópicos faz com que se escondam por trás das
máscaras muitos ressentidos sociais, gente com sangue nos olhos, pessoas que
querem quebrar e bater não por razões políticas, mas por ódio e desejo de
vingança.
Por vias transversas e
improdutivas, também há um tipo de política ali, que deve ser compreendido para
poder ser criticado e superado. E, reitero, para que não se ative uma espiral
de violência que a ninguém beneficiará.