domingo, 23 de fevereiro de 2014

Vácuo e descontrole


Não deveria ter sido preciso a trágica morte do cinegrafista Santiago Andrade para que nos déssemos conta de que estamos em uma situação complicada. O país parece saturado da falta de opções, ouve com tédio os discursos políticos, no máximo com aquela vã esperança de que algum mágico dê jeito nas coisas. O clima de exasperação, a rejeição passional da divergência e a ausência de debate público bloqueiam quase tudo. As manifestações estão aí, mas a qualquer momento podem derivar para o caos ou esfriar. Também elas carecem de sustentabilidade e eixo.
Desponta no horizonte uma enorme crise social, que não derrubará governos mas os desafiará como nunca.
Um olhar que não desça às profundezas da sociedade pode achar que tudo vai bem, melhor do que antes, que o país tornou-se um player de respeito no mundo e a população está feliz. Não considera que novas modalidades de ação, novos protagonistas e demandas pressionam os governos. E se as deficiências estruturais do país – na educação, nos transportes, na saúde, na infraestrutura – não são atacadas com determinação, mais as pessoas se irritam e se frustram, adubando o terreno para todo tipo de explosão.
Foi esse o recado das ruas de junho de 2013. Poderia ter havido ali uma inflexão positiva, um salto na compreensão crítica do país que se vem formando, a abertura de uma nova dialética Estado-sociedade. Não se ouviu, porém, o recado.
Em vez disso, seguiu-se com a mesmice de sempre, com o ufanismo que nos caracteriza, a subserviência ao sistema internacional, aos bancos e aos mercados, a obsessão pelo crescimento. Em vez de inventarmos um modo nosso de fazer as coisas – por exemplo, de organizarmos a Copa, para ficar com algo simples e oportunista –, compramos um pacote fechado. Fazemos de conta que não há desperdício, que as prometidas obras de infraestrutura virão no devido tempo, que os bilhões de reais canalizados para construir ou reformar estádios são a precondição para que o país organize “a melhor Copa de todas”. As pessoas não acreditam. Preferem esperar para ver. Não há correntes sociais ativas para sustentar o que se decide fazer no país.
As coisas não pioram, vão até melhorando em alguns aspectos. Mas faltam entendimentos para que se dê um arranque expressivo. De dentro e de fora do governo federal ouve-se que o Estado precisa gastar menos, como se fosse possível reduzir ou redefinir despesas públicas a essa altura do campeonato. Se a vida de parte dos mais pobres melhorou, graças às políticas de incentivo ao consumo e à Bolsa Família, daí virão mais exigências de gasto, não menos. Surgirão arranjos inusitados e expectativas que nem sempre poderão ser atendidas. As pessoas quererão mais saúde, educação e transportes, e tudo com mais qualidade. Coisas que exigem investimento, políticas e coordenação estatal – um projeto de país, em suma, que é precisamente o que mais falta.As manifestações têm se sucedido. Vão de rolezinhos a espasmos cívicos e a protestos contra a Copa. Em todas, as agendas são idênticas: transparência, respeito a direitos, reconhecimento, espaços de lazer, transportes melhores, outra política. Em todas, o despreparo policial desaba sem muito critério sobre as multidões e se faz acompanhar de uma violência “simbólica” que o reverbera e amplifica, adicionando a ele o despreparo dos manifestantes. Destaca-se a tragédia da hora, esquecem-se as mortes enfileiradas ao longo dos anos, o cotidiano pesado, a falta de perspectiva dos jovens, o ambiente sociocultural que não agrega. Joga-se luz sobre os violentos sem que se expliquem as raízes da violência e o porquê de ela estar se convertendo em opção de vida.
É equívoco grosseiro usar a situação para atacar o governo federal, como se fosse ele o culpado pelo descontrole e pela violência que estão por aí. Mais polícia e repressão não solucionarão nada, assim como leis “antiterrorismo” ou contra mascarados. Poucas vozes políticas se fazem ouvir. O Congresso Nacional sequer se manifesta. A manipulação vem de todos os lados. Fatos soltos, interpretações descabidas e acusações levianas passam a servir de base para que se façam ilações absurdas. Ora se atinge um deputado, como Marcelo Freixo (PSol-RJ), ora a culpa por tudo seria da mídia. Há quem glamourize os black blocs como filhotes destemperados da desobediência civil e quem se aproveite deles para desgastar o regime ou propor endurecimento político. Poucos consideram o estrago que a “tática” causa à democracia.
O país parece estar em um vácuo político, no sentido preciso de que está sem direção e coordenação. Se há vácuo, é porque não há matéria que preencha o espaço: governo e oposição, instituições e sociedade civil. Como a vida muda depressa, o descontrole tende a ser grande. Não se trata do governo federal, mas de crise dos governos, das instituições, do Estado em seu conjunto, crise da cultura e de uma hegemonia. Isso se expressa, por exemplo, no afã esteticizante e performático dos manifestantes atuais. Eles não aceitam o modo “tradicional” de protestar. Querem se mostrar, aparecer, e máscaras são usadas também para isso.
Não é, porém, o fim do mundo.  Numa situação complexa, difícil de ser governada, não se deveria estar a desancar instituições igrejas, partidos, entidades, órgãos de imprensa; o melhor seria exigir que cumpram alguma função construtiva. Nossos políticos desprezam a gravidade do momento, seguem batendo uns nos outros, não ensaiam qualquer aproximação ou acordo. Estão picados pela disputa eleitoral que se aproxima. Só contribuem para complicar o quadro.
É preciso decifrar essa paisagem que desponta na neblina. O levantar de poeira, a culpabilização e as teorias conspiratórias não ajudam a que se enfrente uma condição emergencial. Serenidade, clareza, apuração rigorosa de fatos, perspectiva política e união dos democratas são o que temos de melhor: recursos indispensáveis. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/02/2014, p. A2].

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Manifestações, violência, mortes

Quando manifestações geram mortes, o prejuízo é incomensurável. Em termos humanos, evidentemente e antes de tudo. Mortes são sempre duras, injustas e dolorosas, seja de que arma saia o projétil que mata. Um morto por manifestantes já basta, não deveríamos ficar contando, fazendo listas de mortes anteriores ou construindo outras narrativas que, ao se proporem alternativas, acabam por relativizar algo que não deveria ser relativizado.
Aí alguns passam a acusar a mídia, que espetacularizaria uma morte por ser o cinegrafista Santiago Ilídio Andrade um membro da corporação e porque a mídia estaria sempre do lado da ordem. Dizem que o governo federal está comemorando, porque é um governo que quer criminalizar as manifestações para se ver livre delas. Falam que as mortes provocadas pela polícia são piores e muitíssimo mais numerosas. Que o perigo, como sempre, está do lado de lá. Transferem-se responsabilidades. Brinca-se com palavras e acusações, no melhor estilo da irresponsabilidade reticular dos nossos tempos.
As palavras se tornam peremptórias. É o Estado que deve ser acusado e responsabilizado, pois seria ele, por meio de suas instituições e de seus agentes, que tolhe direitos e pratica violência. O carinha apanha todo dia e é justo que passe também a bater. Tem direito à violência, não pode ser criminalizado quando bate e mata, pois está simplesmente reagindo a uma violência preexistente. Se inadvertidamente mata alguém, tratar-se-ia somente de dano colateral. A ser imputado ao Estado.
Círculo vicioso.
Não é preciso ler Gramsci ou Weber para saber que Estado é coerção, instituição que reivindica o monopólio da violência física. Mas Estado também é um conjunto de instituições e políticas, muitas das quais conquistadas pelo movimento democrático ou por revoluções reformistas que contaram com o sacrifício de gerações. Estado não é somente polícia e tribunais. É também escola. Expressa os interesses dominantes, mas também acolhe interesses dominados. Pode ser dirigido por um partido de esquerda, como no Brasil. Isso não muda o sistema, mas complexifica os nexos Estado-classes.
Polícia é sempre perigosa, não é necessário insistir nisso. A brasileira, em particular, está treinada para matar e reprimir com violência. Vive em busca de "inimigos internos". Não sabe conviver com massas. Mas o perigo que vem de dentro de uma manifestação é tão ruim quanto. Tem o agravante de ser dissimulado e muitas vezes banalizado, além de mostrar a fragilidade da própria manifestação. Ah, os blackblocs são necessários para denunciar a violência policial e “protegem os manifestantes”, dizem para aliviar o problema. A violência deles é simbólica, não atinge pessoas. Aí de repente matam um, sem querer, por acidente... Quem sabe um infiltrado...
Ovo da serpente.
É absurdo e reacionário pedir que se pare com "esse negócio de manifestação" e se passe a comemorar a Copa. Ninguém sério pode propor isso. Ao contrário: é preciso pedir mais manifestação e mais política para que se interrompa uma dinâmica de violência e vandalismo que só pode interessar ao sistema. Para que se reforme a polícia e se isolem os admiradores da violência como ferramenta de transformação. Manifestantes que matam devem ser criminalizados e punidos. Sejam eles de que grupo for. Os Blackblocs do RJ lamentaram a  morte do cinegrafista. Mantiveram a postura de se apresentarem não como um grupo, mas como um tática, em que cada um tem seu próprio jeito de agir. De qualquer forma, vieram a público, deram uma satisfação.
Punir um manifestante que mata é um passo para freá-lo e para que não se se generalize a matança para além daquela já provocada por uma polícia descompensada. Ou seja, algo que interessa a todos.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Vai ter Copa, mas...




Há duas versões correndo soltas na praça a respeito da campanha #nãovaiterCopa. Uma trata o fenômeno como coisa em si, outra o vê em termos metafóricos.
No primeiro caso, o veredito diz que se trata de uma campanha para impedir a Copa, feita por gente que não gosta de futebol e por inimigos do governo petista, que gostariam de ver o país pegar fogo para faturarem com isso. Essa é a visão dos governistas em geral (petistas evidentemente, mas também de alguns tucanos nos estados governados pelo PSDB), mas, no mundo político instituído, não há a rigor quem veja com simpatia a campanha, que, se bem sucedida, poderia não inviabilizar a Copa, mas levar o caos para bem perto dela. A repercussão internacional e eleitoral de um insucesso do empreendimento não interessa a quem está ou deseja estar no poder.
No segundo caso, a análise privilegia a campanha como performance midiática e campal que objetiva denunciar a má gestão de políticas públicas, o mau uso do dinheiro público e a mercantilização galopante de tudo, a começar, claro, do esporte. É a visão de muita gente que ama o futebol e gostaria de vê-lo sendo jogado de forma limpa e tecnicamente qualificada, como espetáculo agonístico de multidões. São pessoas que não gostam do modo como o futebol é gerenciado e tratado no Brasil, que desconfiam que o lugar comum da “pátria de chuteiras” é uma bobagem nacionalista e que não aceitam a manipulação grosseira que os governos fazem da competição mundial, ao estilo da “Copa das Copas” ou das campanhas publicitárias destinadas a injetar ânimo patriótico no povo, a vender mercadorias e a cacifar produtos políticos.
O problema da primeira versão é que seus defensores julgam ser uma “ingratidão” que haja manifestações que por algum segundo afetem a imagem popular dos governos petistas ou ponham em dúvida os avanços conquistados por eles. Especialmente nos últimos anos, com uma presidente que buscou se legitimar pelos dotes de gestora, não se admite que erros gerenciais ou cálculos mal feitos possam ter sido cometidos. Há, por baixo da veemência com que criticam a campanha, debocham dela e buscam desqualificá-la por inteiro, um medo quase pânico de que ela ajude a desandar o molho da festa. Não é por outro motivo que os que tentam ridicularizar a campanha vejam nela sempre a mão das oposições. Não faltam, também, os que percebem a satisfação insidiosa da “direita raivosa” com os efeitos da campanha.
O problema da segunda versão é sua despolitização e sua ingenuidade. Muitos que se jogaram na campanha pelo prisma metafórico parecem acreditar que será possível contestar os bastidores de um empreendimento como a Copa – patrocinada por grandes multinacionais, apoiada pela grande mídia e pelo empresariado nacional e tratada como cereja do bolo pelo governo federal, seu maior fiador – somente com manifestações de ruas e agitações em redes sociais. Não consideram que é preciso ir bem além da contestação da Copa para se poder de fato fazer a crítica da Copa.
Entre uma versão e outra flutuam as opiniões e as expectativas dos que acham que a Copa pode vir a se converter em um tiro n’água no médio e no longo prazo. Ou seja, a não produzir nada de bom para o país, a não ser o hexacampeonato, que como disse Felipão, “nem é algo tão difícil assim”. Teremos de conferir a empáfia do treinador.
Aspecto interessante da questão é que o conflito entre #nãovaiterCopa e os que defendem a realização da Copa tal como prevista e sem contestação não é um conflito entre esquerda e direita, mas um conflito basicamente entre diferentes posições de esquerda, as petistas e as não petistas. O lado trágico da questão, por sua vez, é que o conflito tem se aproximado rapidamente da baixaria plebiscitária do contra e a favor que tem sido a marca registrada do debate público mais recente. Políticos e partidos não falam nada. O besteirol predomina nas redes, agressões verbais se multiplicam, a desqualificação dos argumentos adversários torna-se regra. E todos assistem ao bate-boca num mix de indiferença e estupefação.
Com isso, a crítica da Copa não progride, a agenda democrática fica estagnada e as esquerdas perdem mais uma excelente oportunidade para se mostrarem acima do ramerrame da política nacional.