terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O silêncio perdido

Calçada do povo, by Eduardo Souzacampus
Ao apagar as velinhas de mais um aniversário, a cidade de São Paulo pode estar ganhando um presente inesperado. Nada extraordinário ou especial, mas nem por isso menos interessante.
Na regulamentação para 2011 da Inspeção Veicular Obrigatória, introduziu-se uma novidade. Agora, além da verificação da emissão de poluentes e de itens de segurança como freios, pneus e faróis, será também auferido o ruído dos motores.
Ainda não dá para comemorar. O teste medirá o ruído com o veículo parado e “segundo a percepção auditiva e a experiência do inspetor”. Não há, portanto, garantia de que tudo será devidamente ponderado e auscultado. Seja como for, é um começo.
A poluição sonora deveria entrar na pauta urbana. O ruído acompanha a marcha do progresso industrial e da concentração humana nas cidades, o que incluiu a batalha pelo silêncio na plataforma de lutas pelo avanço e pela consolidação da própria idéia de civilização. Ser civilizado seria, assim, ser urbano: polido, educado, não-invasivo, discreto, silencioso, responsável, participativo. Como na origem dos tempos, aliás, quando a polis grega foi traduzida na civitas e na urbe romanas, ampliando e entrelaçando seus significados. Palavras como política, cidade, urbanidade, civilização e civismo vieram daí. Cidadão tornou-se o indivíduo com direitos e deveres de cidade, isto é, referidos não somente ao espaço físico mas também aos espaços públicos, compartilhados em comum com todos os habitantes.
O índice de barulho reflete o padrão de cidadania de uma comunidade e o silêncio funciona como requisito para uma vida mais justa, igualitária e de melhor qualidade, que são precisamente as grandes promessas da civilização. Uma República de cidadãos não cria barulhos superlativos, desnecessários, por sobre os ruídos inevitáveis.

As metrópoles do mundo contemporâneo vivem à procura de silêncio. As mais antigas, sem tantos desníveis sociais e impregnadas de cultura pública, conseguem preservar padrões consistentes de convívio e privacidade. Nelas, são muitos os nichos onde há condições sonoras adequadas para a conversa e o repouso. Outras, como São Paulo, que além de novas são também um compósito de formas arcaicas e ultramodernas de vida turbinadas pela miséria e pelo crescimento selvagem, vivem oprimidas pelo ruído, que se converte em fator de risco para a saúde e a convivência.

Não há paulistano que não se incomode com ele. Muitos sofrem sem saber, sem se dar conta de que o barulho invade silenciosamente o sistema nervoso de cada um, desmonta equilíbrios, afeta a audição e o bom humor, perturba o sono e trava a comunicação. Alguns reagem, ora com indignação, ora com violência, quase sempre com a sensação amargurada de impotência. Nada parece deter o ruído crescente.

Barulho intenso, sistemático e abusivo é um sintoma de ausência de regulamentação. Em São Paulo, o poder público não só é omisso na fiscalização dos barulhentos, como dá maus exemplos o tempo todo. O caso dos ônibus paulistanos é emblemático: velhos, sujos, sucateados, são poderosos agentes de poluição sonora. Roncam e guincham pelas ruas da cidade como verdadeiros arautos do apocalipse. O poder público, além do mais, assiste passivamente ao passeio dos caminhões pesados. Só consegue impor restrições inócuas, muitas vezes não respeitadas. Para piorar, não é criativo nem ousado em termos de política de transportes.

À falta de regulamentação soma-se a falta de educação de muitos cidadãos. Ninguém a rigor importa-se muito com o sossego alheio. Excitados pelo frenesi urbano, os motoristas transformam seus carros e motos em armas contra a vida e o silêncio. Exibem-se uns para os outros o tempo todo, em alto e bom som, como se fossem os únicos donos da cidade. Em casa, exibem sem pudor a potência acústica dos eletrodomésticos. O volume alto é regra na cidade. Os moradores parecem surdos ao problema.

Inexistem campanhas específicas ou mobilizações dedicadas ao assunto. Também não se conhece qualquer vitória conseguida contra a poluição sonora. O máximo que se obteve, até agora, foi o crescimento das empresas fornecedoras de portas e janelas acústicas, ou seja, o aparecimento de novos negócios e de alguns recursos defensivos, que não atacam a raiz do problema.

É em condições razoáveis de silêncio que se pode ter vida inteligente. Ler e escrever, aprender e ensinar, dialogar e refletir. É no silêncio que se pode descansar. Nada a ver com a paz dos cemitérios, porém. A cidade civilizada reclama o silêncio democrático, no qual tem lugar o ruído das massas e das festas populares, do frenesi da política e das vibrações esportivas. A cidade brasileira, em particular, é alegre, comunicativa e espontânea. Não pode ser cerceada em seu caráter. Que continuemos a ser irreverentes, festeiros, improvisadores, amantes da música, da dança e da batucada, sabotadores criativos das regras tirânicas ou artificiais.

O motorista que buzina alucinado, o ônibus que trafega com o escapamento estourado, o motoqueiro que extrai o máximo de sua moto, a construtora que bate estacas em horários obscenos e o adolescente bem-nascido que barbariza seu prédio não têm relação alguma com o “caráter nacional”. Não são exemplos de espontaneidade e alegria, mas de má-educação. Expressam uma coletividade que perdeu consciência de si mesma, que está se tornando indiferente e pulverizada em ilhas de individualismo possessivo. São deformações e caricaturas perversas de uma cultura fundada na informalidade excessiva, produtos da modernização desregrada, excludente e predadora em que vivemos.

O ruído que vem com o progresso não é uma fatalidade, pode ser domado e civilizado. São Paulo tem potência para tanto. Precisa, porém, traduzir essa potência, convertê-la em cidadania ativa, único fator que pode efetivamente atuar como força propulsora do silêncio democrático, inerente à cidade republicana. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/01/2011, p. A2]

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Passaporte para o perigo

Traveling Without A Human Made Passport by Fania Simon
 No momento em que o país chora, estarrecido, a morte de centenas de pessoas engolidas pelas chuvas e pelos deslizamentos, pode parecer descabido discutir o uso indevido de passaportes diplomáticos por círculos próximos do poder.
A vida, porém, é assim. Dura, implacável, combina sem avisos prévios a tragédia e o ridículo, o drama e a comédia. A virtude de uma boa República também está em saber conviver com essas múltiplas faces, respondendo adequadamente a seus desafios e manifestações.
Se os mortos tragados pelas chuvas revelam a força da natureza e o despreparo do poder público para administrar situações que se repetem há décadas, o caso dos passaportes mostra bem uma das dimensões mais cínicas e sutis do poder como tal.
O passaporte diplomático é concedido basicamente a presidentes, diplomatas, ministros de Estado, militares em serviço, governadores e membros do Congresso Nacional. Trata-se de um documento restrito, de uso extremamente seletivo. Segundo cálculos do Itamaraty, seriam 6 mil as pessoas com direito a ele. O número cresce com os casos de excepcionalidade, quando a concessão fica a critério do ministro das Relações Exteriores.
Que sentido pode haver em portar um documento diplomático quando não se é diplomata, ministro, presidente ou militar em serviço?
Representantes do Estado podem necessitar, quando viajam, que alguns parentes o acompanhem e tenham certas facilidades. Podem desejar, por exemplo, aliviá-los do desconforto de uma fila ou das medidas de segurança em aeroportos, muitas vezes vexatórias. Talvez precisem disso para ganhar tempo. É um procedimento razoável, desde que seguido com critério.
Quando a emissão de passaportes especiais alcança números elevados, é porque algo fugiu do controle e já não se tem mais limites éticos consistentes. A prática passa então a ameaçar o próprio instituto, respingando na República.
Se parlamentares, funcionários públicos comuns, filhos, netos e cunhados de pessoas poderosas passam a dispor de privilégios que acompanham determinados cargos de representação, é porque querem usufruir de algo que não lhes é devido. Em poucas palavras, querem ser tratados de modo especial, diferenciado. Pode-se até aceitar que façam isso sem malícia, por acharem que o dom é lógico, automático, legítimo – não desejam se beneficiar, mas somente fazer cumprir o que julgam ser um “direito”. Nesse caso, não estariam a contribuir conscientemente para pôr em perigo a República, ainda que de fato o estejam fazendo. Não são, porém, inocentes. E, ao fim e ao cabo, quando informados, deveriam devolver os documentos, pedir desculpas e cortar qualquer insinuação.
Um passaporte diplomático concede antes de tudo vantagens operacionais. Dispensa seu portador de obrigações rotineiras para todos os cidadãos, faculta-lhe o acesso a certos espaços e ambientes. Um diplomata ou alguém a serviço do Estado pode perfeitamente necessitar disso, estendendo o benefício a familiares que eventualmente o acompanhem nas viagens.
Mas o passaporte diplomático também traz vantagens simbólicas. Transfere para seu portador uma imagem, um status, um prestígio, empresta-lhe a sensação de superioridade, impulsionada por certas cortesias que distinguem. São privilégios pequenos, quase inexpressivos, mas que valem alguma coisa no mundo de espetáculo e exibicionismo em que vivemos.
Está certo o presidente da Câmara dos Deputados, Marco Maia (PT-RS), quando observou que há assuntos "mais importantes" a serem tratados no País. Em seu afã de salvar a pele da Casa que pretende continuar a presidir, apressou-se em esclarecer que “os outros Poderes gozam exatamente do mesmo benefício”, ou seja, que a falta de discernimento é generalizada. Tem razão, mas o tema dos privilégios não pode ficar fora de uma pauta republicana. Não derruba governantes, não define o caráter dos governos, não tem peso e densidade para ser tratado como se fosse o principal eixo moralizador da vida pública. Trata-se, no entanto, de um tema que nos ajuda a entender a cultura política prevalecente, o modo como as autoridades governamentais pensam sua relação – sua distância e sua proximidade – com a cidadania e procedem na gestão das coisas públicas. Se deixado ao léu, não destruirá a República, mas poderá impregná-la de hábitos espúrios, que com o tempo se converterão em lama e detrito.
Procedeu bem, portanto, o Ministério de Relações Exteriores quando anunciou que pretende “tornar mais criteriosa” a concessão de passaportes diplomáticos. Não foi uma reação isolada ou motivada exclusivamente pela consciência do ministro Patriota. Com ela fez coro o Ministério Público Federal, que orientou o Itamaraty a analisar todos os passaportes concedidos nos últimos 4 anos e tomar providências num prazo de 60 dias.
Não se sabe se e como isso será feito, mas o mero gesto já é eloqüente: confirma que abuso há e que não se deve conviver com ele. Não é muita coisa, mas pode ser o início de uma nova fase. [Publicado no caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 16/01/2011, p. J3].

domingo, 9 de janeiro de 2011

Há ou não uma teoria política no PT?

Maria Errani (Etiopia, 1940), Cosmo
Na virada do ano,  só pra provocar, postei uma questão no Facebook:  existe uma teoria política a embasar a ação governamental de Lula e do PT? Se sim, qual é ela e onde está exposta? Se não, por que não?
Para minha surpresa, houve grande reação e repercussão. Muita gente leu, curtiu, e diversos amigos comentaram o post, acrescentando considerações extremamente pertinentes e esclarecedoras, que sugerem uma agenda de pesquisa aberta para os próximos anos.
Reuni parte dessas intervenções aqui no blog, pois acho que elas, lidas em conjunto, podem incentivar a que outras pessoas explorem a questão e a que a discussão prossiga.
Como disse meu amigo Rogério Baptistini na primeira resposta à postagem inicial, “a questão é excelente para uma tese acadêmica. As repercussões políticas dela são óbvias e justificam a realização de uma pesquisa”. Independentemente disso, creio que ela pode nos ajudar a pensar o Brasil dos dias atuais.
Reproduzo as intervenções em estado bruto, sem editá-las. Como não pedi autorização a ninguém, espero que os autores não se sintam mal ao encontrarem seus textos aqui. Mas o Facebook é algo público (até demais) e tudo o que está lá está imediatamente ao alcance de todos. Além disso, os autores são intelectuais públicos militantes, dispostos sempre ao diálogo e à discussão.
Vamos lá.
Rafael Faria: É uma questão difícil pra um final de ano. Mas deixo aqui algo interessante, principalmente pela data em que foi escrito, do Perry Anderson. Em 2002 o historiador inglês, no plano econômico, notava: “De modo geral, porém, nem o PT nem o presidente eleito têm qualquer alternativa pronta para opor à ortodoxia reinante, como deixa clara a imediata adesão deles à diretivas do FMI”. Agora, mais interessante ainda é a preocupação de Anderson, no plano político, com uma sobrestimação da figura do Lula: “A cultura brasileira é sentimental e cínica, e neste momento a mídia está se fartando de divulgar informações biográficas sobre o presidente. O exemplo de Lech Walesea deveria bastar como aviso contra os excessos nesse departamento. Isto posto, não deixa de ser verdade que Lula personifica uma experiência de vida popular e um registro de luta social e política de baixo para cima inigualado por qualquer outro governante no mundo atual. Além disso, por trás dele está o único partido de massas novo a ter sido criado a partir do movimento sindical desde a Segunda Guerra – um partido que em termos de números, influências e coesão não tem igual na América Latina. No entanto, Lula recebeu o dobro de votos dados ao PT – que corre o risco de ser acentuado pela Presidência reforçada. Mas a combinação de Lula e PT ainda é muito forte”. E continua: “Muito mais que na Itália, que lançou o conceito para o mundo, o Brasil é por excelência o país do ‘transformismo’, a capacidade que possui a ordem estabelecida de abraçar e inverter as forças transformadoras, até que fica impossível distingui-las daquilo que se propunham a combater. É o lado sombrio da cordialidade brasileira. O ‘paz e amor’ é, por antecipação, um vocabulário de ingestão e derrota”.
Alexandre Curtiss Alvarenga: Primeiro - antes de ler o que já foi postado - pensei em responder assim: é uma questão que deve cobrança aos intelectuais orgânicos do próprio PT. Sei que é tranquilamente legítimo que intelectuais de outras procedências e tradições façam suas interpretações e julgamentos. Mas há uma diferença - crucial - nos esforços de uns e de outros. Uns são “cobrados” para demonstrar e garantir algo como “competência”, resultados. Muitas vezes quem critica não tem esse ônus, a crítica é como um “ensaio” (enquanto gênero, modo de raciocínio).
Retornando então: os intelectuais do PT têm essa teoria política a fundamentar o acontecido? O PT tem publicações, escolas de formação, intelectuais que formulam idéias e atuam. Seria o caso de fazer o levantamento das teorias que embasam esses núcleos e essas pessoas.
Depois de ler o que já se postou, acho que pensei outras coisas. Perry Anderson vem da tradição marxista e aparece como um dos "críticos" que podem apontar defeitos, mas não vão 'pagar' por eles, nem se o diagnóstico apresentar erros - a não ser dentre pares e na comunidade acadêmica, onde pode sofrer um processo de desqualificação. Aqui a questão ganha uma perspectiva distinta, mais 'metodológica'. Teorias existem "prontas" para diagnosticar realidades e dar diretrizes, ou teorias são práticas de entendimento e, daí, crescem “no confronto com a realidade social"? Neste sentido, o PT estaria, também, “aprendendo” a construir realidades e não teria lá muito bem "uma" explicação a priori para seus “rumos” e decisões tomadas. Alguma base - os princípios -, mas também muita contingência (até porque não se pode esquecer que o executivo age sob pressão, desqualificação constante, sabotagem - além de suas próprias limitações históricas e genéticas).
Por fim, a pergunta toma o PT como referência, mas o que se questiona vai muito além e poderia ser uma colocação “prá cima” também do que restou de comunistas e/ou marxistas por aí. Ou seja, a política “hiperrealista” praticada hoje tem mesmo que se conformar com horizontes curtos, e daí os políticos estão fadados a administrar o capitalismo capenga "naquilo que for possível"? Ou há no horizonte uma “alternativa” colocada? Uma superação do capitalismo - muito cantada, mas... E aí entramos numa bibliografia muito explorada pela editora Boitempo...
Cláudio Gonçalves Couto: Essa me parece uma pergunta que faz pouco sentido para o PT, embora fizesse muito sentido para os partidos comunistas. Esses, de fato, tinham uma teoria (por vezes, apenas uma mesmo, oficial), de modo que seria relativamente simples deduzir sua aplicação a uma experiência prática de governo, ou da vida partidária como um todo.
Em algum momento no final dos anos 80 (ou seria no começo dos 90?), Carlos Nelson Coutinho questionava justamente isto: a falta de uma teoria que embasasse a ação política do PT. Mas seria difícil demandar tal teoria de um partido que já era à época (na verdade, desde sua fundação), e é ainda hoje, um grande conglomerado de forças sociais e políticas, além de reunir intelectuais de diferentes matizes teóricos e ideológicos, todos a formular e propor suas próprias diretrizes (talvez não teorias) para a ação política.
Ou seja, no PT havia sindicalistas pragmáticos sem qualquer preocupação ideológica, leninistas variados, trotskistas múltiplos, social-democratas, socialistas liberais, liberais de esquerda, socialistas cristãos, ambientalistas etc.. Seria possível formular diversas teorias a partir daí, mas dificilmente uma teoria. Os documentos oficiais do PT, em particular aqueles produzidos nos Congressos do partido, procuravam contemplar essa diversidade, ponderada pelo peso das diferentes correntes e, dentro delas, das diversas lideranças. Nunca me esqueço do Primeiro Congresso do PT, em 1991, que assisti in loco numa pesquisa para o Cedec. Houve uma discussão muito interessante e acalorada sobre a questão da luta armada como via para o socialismo. Como o acordo era difícil, foi-se à votação e o encaminhamento dela foi sensacional. Vladimir Palmeira defendeu acaloradamente a luta armada com legítima, lançando mão de seus dons de orador, mas perdeu a votação. O encaminhamento contrário ao texto que advogava a luta armada foi feito pelo Rui Falcão num discurso em que ele defendeu... a legitimidade da luta armada! Incrível! Satisfez às fantasias ideológicas da base do partido no gogó, mas pragmaticamente defendeu um texto que a excluía das estratégias oficialmente contempladas.
Com o tempo, como todo o discurso ideológico oficial converteu-se em peça de ficção para afagar a alma e os idílios afetivos da militância (um discurso de mentirinha, como gosto de chamá-lo), levar tal "teoria" dos textos oficiais em conta é perda de tempo - que o digam os operadores do mercado financeiro que acreditaram nisto em 2002.
Por fim, vale lembrar. O que temos no Brasil é um presidencialismo de coalizão e, portanto, o governo não é só de Lula ou do PT, mas é também do PMDB, do PP, do PTB, do PR, do PDT, do PSB, do PC do B... E não há nenhuma teoria que tenha como sair daí, há apenas pragmatismo. Se já seria difícil formar uma teoria no caleidoscópio de esquerda que é o PT, imagine num governo de coalizão tão amplo.
Mas, apenas para concluir, acho que nada melhor resume o Lula (não necessariamente o PT) do que a resposta que ele deu no final dos anos 70 (acho que foi no programa Vox Populi, da TV Cultura) à pergunta de se ele era comunista. Ele respondeu: "Não, sou torneiro mecânico".
Jorge Fazendeiro de Oliveira: De uma provocaçãozinha do Marco Aurélio, o Cláudio Couto escreveu um belo texto, sem desmerecer os demais. Provocaçãozinha aqui vai no bom sentido. Como eu ando dizendo, essa sofisticação da oposição vai render bons frutos...
Adelia Miglievich: Vamos pensando e vamos vendo os frutos ... se o Estado se fortalece ou não com as políticas sociais... quais? Vamos vendo o relacionamento com os países do Eixo Sul-Sul... vamos vendo se a palavra igualdade se repete (inócua ou consistentemente). Ufa!! E os fogos no céu? Terão muitos por aí?
Ana Dora Partos: Li por ai:" O Estado mudou o PT muito mais do que o PT mudou o Estado...
Marco Aurélio Nogueira: Beleza de conversa! Excelente comentário do Cláudio. Muita coisa prá pensar. Eu diria, prá manter a bola rolando, que é impossível governar e fazer política sem uma teoria. Ela não precisa, porém, existir nem como algo estruturado, nem como algo totalmente "consciente". Quanto mais clara e estruturada, melhor. Talvez parte dos problemas e dificuldades do PT venha da impossibilidade de se ter uma teoria clara e estruturada, como observou o Cláudio.
Alexandre Curtiss Alvarenga: Fiquei pensando no assunto e lá pelas tantas cogitei tratar-se de uma discussão na qual o PT é apenas um instante. Ela seria a "velha discussão" da teoria do partido político. Houve um tempo em que ela fez bastante sentido e vários italianos - do PCI - foram traduzidos aqui. O que restaria para os partidos “mais ideológicos” no mundo contemporâneo?
No concernente ao PT diretamente, acabou de sair do forno este artigo do André Singer - publicado no último número da Novos Estudos Cebrap (onde, aliás, tem também artigo teu, Marco, no dossiê Joaquim Nabuco). Vai o link do artigo, em pdf: http://novosestudos.uol.com.br/acervo/acervo_artigo.asp?idMateria=1408
É um começo de avaliação sobre 'partidos' - no caso, o PT. Não terminei de ler o artigo, porque a revista chegou no meio do turbilhão de encontros e desencontros de fim de ano, mas me chamou a atenção o “cuidado sociológico” quantitativo, expresso em tabelas e gráficos, mostrando um partido que sofre uma transformação considerável. No início, muito “cacique” para pouco “índio”; passados os anos, transforma-se cada vez mais num partido de massa e, como tal, de limites fluídos ("líquidos"?) e perspectiva esgarçada, dado pluralismo de grupos em seu interior.
Quando leio coisas assim, penso como seria interessante aplicar os mesmos critérios em pesquisas sobre os outros partidos políticos importantes. Idéias surgem e logo a imaginação demanda explicações. Teorias em andamento...
Bruno Pinheiro Wanderley Reis: Conversa boa mesmo, Marco! Só vi agora, e tendo a acompanhar Cláudio e Alexandre quanto à viabilidade/pertinência/necessidade de uma teoria no PT. Mas queria acrescentar uma cerejazinha no bolo.
Acho que, na lata, a resposta é inequivocamente não: não existe mesmo uma teoria política, consistentemente digna do nome, a embasar a ação governamental de Lula e do PT. Mas veja que sou acadêmico, e não militante (o mote do Alex cabe aqui, talvez com sinal trocado). Logo, meu problema não é saber se há teoria (boa ou não) a orientar o PT, e sim se há teoria apta a explicar ou ao menos enquadrar o que se passa ali/aqui. E a meu juízo há sim, boa ciência política, e bem estabelecida, perfeitamente canônica e convencional, a enquadrar analiticamente a experiência, o "caso" do PT e de Lula no Brasil. Só que ela não é marxista (ou só é de uma maneira muuuito diluída), e sequer é teoria política no sentido normativo. Estou pensando na literatura sobre corporativismo (ou "neo" corporativismo, pra ficar do bem), socialdemocracia, Claus Offe etc.
Mutatis mutandis, cá como lá tivemos partidos com genuína base sindical, outsiders relativamente ao sistema de poder previamente constituído, de origens com fumaças revolucionárias (muito mais lá do que cá, diga-se) que vão sendo progressivamente abandonadas/renegadas ao longo de sua ascensão ao poder.
A ironia é que o PT, em todas as suas multiplíssimas correntes, sempre renegou ostensivamente a socialdemocracia europeia (pelo menos até o Lula chegar lá). Mas, quer saber? Isso é largamente irrelevante. (E essa constatação não deixa de ser pertinente para um esforço de resposta à tua pergunta...) Se é que a sociologia política serve pra alguma coisa, restrições estruturais limitam o leque de opções efetivamente abertas aos atores em cada época, de maneira em larga medida independente das crenças desses mesmos atores. Esses partidos, todos, lá e cá, ao optarem pela luta eleitoral, domesticaram-se, moveram-se rumo ao centro, fixaram compromissos, deram anéis pra não perderem dedos, renegaram cláusulas programáticas, burocratizaram-se e, enfim, corromperam-se em alguma medida. Michels (em 1911!) que o diga.
Até institucionalmente a coisa vale: em que pesem as naturais peculiaridades próprias a cada contexto, é irresistível a similaridade entre o corporativismo tripartite europeu e o conselhismo "participativo" petista: ambos os experimentos, em seus respectivos limites, são o patente resultado institucional da ascensão de outsiders ao poder, e da consequente necessidade de abrir novos espaços de influência pra seus aliados sociais, tradicionalmente alijados dos espaços de representação previamente existentes.
Ao fim e ao cabo, porém, mesmo no meio dessa mixórdia toda, mesmo num perpétuo ajuste adaptativo que parece feito às cegas, se olharmos para os resultados - que diabo! - é preciso reconhecer que todos eles têm apreciáveis resultados redistributivos pra exibir. O que terá dirigido isso? Lá como cá, acredito ter sido menos a clareza doutrinária/programática do que a intensidade do vínculo e a dependência até identitária de cada partido com as organizações sindicais dos trabalhadores, do "andar de baixo" a que se refere com verve o Elio Gaspari. As resoluções dos congressos? Como a narrativa do Cláudio sugere fortemente, acredito que elas sejam antes racionalizações ex-post daquilo que de fato o partido viu-se compelido a fazer do que orientações prévias para a ação.
Acho, portanto, que o pragmatismo não é problema. Será antes vantagem, se pelo menos a vinculação orgânica com a base se mantiver. A revolução é que vai pro beleléu nessa história toda. O Lênin tinha carradas de razão quando batia duro no trade-unionismo e no cretinismo parlamentar: desse mato, definitivamente, não sai coelho. Ou melhor: não sai o coelho que ele queria tirar do mato. Sai outro.
E o capitalismo? Vai durar eternamente? Não. Será superado pelos séculos, e um dia os historiadores do futuro vão olhar com curiosidade erudita para o termo usado por nós pra conceituarmos nosso tempo - porque eles vão estar usando outra classificação, que vai-lhes parecer perfeitamente natural. As gerações passadas também não estavam conscientemente engajadas na superação revolucionária do feudalismo pelo capitalismo, e muito menos na superação do escravismo pelo feudalismo, ou do paleolítico pelo neolítico etc. etc. etc...
Marco Aurélio Nogueira: Muito legal, Bruno! Também acho que o pragmatismo é uma vantagem e uma virtude, especialmente se se pensar na esquerda. O PT demorou a chegar perto disso, e enquanto não o fez perdeu mais do que ganhou. O problema, a meu ver, é que uma entrega cega ao pragmatismo despe o partido (qualquer partido) de identidade programática mais densa e o ameaça de flutuar oportunisticamente. Para a esquerda, isso é grave, porque a esquerda não almeja somente introduzir melhorias na distribuição de renda e na gestão, mas também no modo de pensar o mundo. Claro, pode ser que essa esquerda seja "só minha" e não tenha mais como existir. Se assim for, quanto mais se souber disso melhor. Daí a questão da teoria.
Vc tem razão, e acho que todos concordam com isso, que temos uma teoria (teorias, na verdade) para explicar a conduta governamental do PT. Estamos até bem servidos nisso. Há também uma "teoria" intra-partidária que justifica o que o PT fez no governo, suas opções, etc. Parte disso está nas resoluções congressuais do partido, parte na intelectualidade mais propriamente partidária. Mas mesmo aqui é algo que deixa a desejar, ou seja, até como justificativa se avança pouco.