sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Marina, a “nova política” e a esquerda


Tela de Sergio Scatizzi

É justo, correto e necessário que se critique a “nova política” de que fala Marina Silva. Ela é efetivamente vaga e está mal explicada, gerando dúvidas, incertezas e desconfianças.
Mas a crítica prevalecente não está conseguindo acertar o foco e alcançar o alvo. Reduz a ideia a uma caricatura: a de que se resume aos “bons contra os maus”, aos “melhores e piores”, a de que é “contra os partidos” e faz “apologia da não política”.
Os críticos podem terminar por morrer pela boca.
Primeiro, porque todo pensamento progressista luta pela renovação da política. Fazer política de outro modo, mudar as regras do jogo, aproximar política e cultura, introduzir formas de democracia direta na democracia representativa, projetar as massas no Estado, radicalizar a democracia, são ideias que frequentam todas as melhores utopias, incluindo as dos críticos de Marina.
São ideias que estão no centro, por exemplo, da perspectiva da “democracia progressiva” de que falaram, entre outros, os comunistas italianos Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer e Pietro Ingrao. Inscrevendo-se com originalidade na tradição marxista que vinha de Gramsci, foram a força do eurocomunismo e ainda hoje servem para qualificar boa parte do debate político e teórico da esquerda.
A “democracia progressiva" partia da democracia política e aceitava a perspectiva de avanço processual mediante acúmulos, sedimentações e consolidações. Seu eixo era a ação coletiva de crítica, debate e proposição, de modo a promover uma dupla contestação: ao sistema e à oposição meramente negativa a ele. Contestava e construía instituições. Seu maior suposto era que qualquer processo de mudança efetiva precisaria articular diferentes temas, planos e problemas em uma sucessão de reformas concatenadas, distribuídas ao longo de um tempo que não se podia determinar.
Ela se voltava, por isso, para o tema da representação política, procurando consolidar uma reflexão que fosse crítica da ideia liberal de representação e estabelecesse uma representação entendida não de maneira corporativa e, portanto, não segundo o princípio que advoga que o representante deve se comportar e agir de acordo com instruções recebidas de quem o elegeu. Na “democracia de massas” que se concebia, a participação ocupava um papel central na formatação de um novo sistema representativo, que por ela seria “alargado” e revigorado.
A renovação da política foi insistentemente propagada por Berlinguer, por exemplo. Ele pensava que a ação progressista devia “libertar-se de uma visão redutiva da política e da luta política, que tende a avaliar a política somente em termos de votos para os partidos, de número de assentos obtidos nas assembleias legislativas, da conquista de cargos e posições de poder”. Era uma posição que tentava retirar a política do controle sufocante dos partidos, impedi-los de ocupar o Estado e as instituições a partir da chegada aos governos. Além disso, Berlinguer não aceitava que os partidos deixassem de lado “o caráter e o valor claramente políticos daqueles fatos que dão origem a movimentos e organismos que se afirmam na sociedade, por fora dos partidos, e que são indicador e consequência de questões novas que precisam ser resolvidas, de aspirações, ideias, costumes e comportamentos novos”. [Cfr. E. Berlinguer, Rinnovamento della politica e rinnovamento del Pci, in Rinascita, 4 dezembro 1981, agora in A. Tortorella, Berlinguer aveva ragione, 1994, p. 89]
A “nova política” pensada naqueles anos não adotava uma atitude “movimentista” ou contra os partidos, mas procurava estabelecer um novo modo de articular partidos e movimentos, partidos e sociedade, partidos e cidadãos, sociedade política e sociedade civil. Parece-me que algo assim faria um bem danado aos nossos tempos.
Política, além do mais, sempre é busca pelo novo e para isso precisa ser sempre nova. Se a esperança é sua razão de ser, como se repete sempre, ela não pode oferecer isso se não se apresentar como renovada e renovadora. O mais do mesmo nunca forneceu combustível para o embate político.
Em segundo lugar, propor uma “nova política” para combater o toma-lá-dá-cá usual não deveria desagradar aos que querem avanços políticos reais. Toda a esquerda, todos os democratas e progressistas têm falado isso nos últimos anos. Ou será que há, hoje, alguém que aplauda o atual padrão da política brasileira, seus personagens vetustos ou up to date, seus arranjos estapafúrdios, suas chantagens contra as medidas progressistas dos governos?
Renovar a política é quase um mantra em nossa história política recente. Tem sido manipulada pela direita. A esquerda se identifica fortemente com ela. Mas todas as oportunidades que se abriram para que se fizesse algo nessa direção foram desperdiçadas. A Nova República não teve fôlego para tanto. A Constituinte cedeu ao fisiologismo da época. Avançou muito, mas nem sequer tocou na institucionalidade política. FHC contornou o tema. Nem quando o PT – partido que cumpriu boa parte de sua trajetória com esse discurso – chegou ao governo federal e se tornou a mais importante força política do país foi dado qualquer passo na direção de uma “nova política”. O fisiologismo, as garras do sistema, a afoiteza com que se buscou a formação de alianças, a malandragem dos adversários, tudo amarrou o partido, impediu-o de atuar com desenvoltura e desidratou suas mais nobres intenções renovadoras.
Pode acontecer o mesmo com Marina Silva ou com Luciana Genro? Claro que pode. Mas isso não está dado de antemão.
Em terceiro lugar, na ideia de “nova política” (na de Marina inclusive) há um componente importante, que era claro para os comunistas italianos dos anos 1980 mas que está sendo deixado de lado: a política instituída – feita mediante partidos, regras e hierarquias – não é a única política, não esgota todo o campo da política e precisa, por isso mesmo, se encontrar com as demais formas de política. Assim como os partidos não deveriam ser os únicos protagonistas do jogo político: são os mais importantes, sem dúvida, mas isso nem sempre se deve a méritos deles e sim a injunções sistêmicas. Além do mais, por serem os protagonistas mais importantes, muitas vezes exacerbam seu poder e tendem a monopolizar o processo político.
Marina está dizendo que pretende governar com os “melhores de cada partido”. Pode ser vago, ilusório, mero estratagema de sedução e persuasão, mas não é um absurdo. Não é, na verdade, algo tão inovador assim, pois a convicção subjacente é que os “melhores” trarão consigo os respectivos partidos, ou ao menos parte deles, e nessa medida darão ao governo condições de dialogar com o Congresso.
Aécio diz que “o Brasil não é para principiantes, mas para gente competente e experiente”. Dilma, numa frase bastante contraditória, diz que “bons e maus é uma distinção muito simplista” e que, para ela, “os bons são os que têm compromisso com a inclusão social”.
São frases que podem soar como música suave para os ouvidos dos críticos de Marina, mas acrescentam pouco. Não têm a ver com “nova” ou “velha” política, mas com política feita com ou sem qualidade, com ou sem intenções sociais, com ou sem capacidade de gestão. Coisas que, de resto, não derivam automaticamente de um modo de fazer política que obedeça a partidos ou a alianças parlamentares.
Em suma, a “nova política” é uma perspectiva que está posta há tempo. Uma bandeira progressista que, como ideia, deve ser criticada, questionada, aperfeiçoada e esclarecida em termos práticos. Mas não se trata de uma bobagem, nem de conversa prá boi dormir. Se for abraçada de modo determinado, pode cumprir uma função. Num conjuntura que repõe a ideia, o melhor a fazer é contribuir para ela fique mais clara e progrida.

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