segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

De crias e feridas


Ilustração de Américo Gobbo

"Não perdi a eleição para um partido político, mas para uma organização criminosa que se instalou no seio de algumas empresas brasileiras, patrocinada por esse grupo político que aí está."
A declaração de Aécio Neves ao jornalista Roberto D’Ávila repercutiu amplamente, como seria de esperar, feita que foi para isto mesmo.
O senador pode ter tido motivos para dizer o que disse. Acha que se manifestou de acordo, ao lembrar que a expressão “organização criminosa” foi a mesma usada pela Polícia Federal para classificar a “quadrilha que atuou durante 12 anos na Petrobras”. Mas a frase forte, solta no ar, jogou mais lenha numa fogueira que queima há tempo sem produzir efeito positivo. Lançou um factoide, num momento em que o País clama por gestos emblemáticos.
É verdade que o aparelhamento da Petrobrás atingiu, nos últimos anos, a dimensão de um verdadeiro assalto, combinado por partidos políticos e empreendedores vários. Mas também é verdade, como disse o delator premiado Paulo Roberto Costa, que operações deste tipo têm sido rotineiras no País, não se limitando nem à Petrobrás, nem a um ou outro ciclo governamental. “Não se iludam. O que acontece na Petrobras acontece no Brasil inteiro. Em ferrovias, portos, aeroportos. Tudo.” O apoio político a diretores encarregados de fazer as intermediações corruptoras não teria faltado ao longo das últimas décadas. Foi assim que se viabilizou a sistemática formação de cartéis especializados em tirar dinheiro extra de atividades econômicas que dependem de recursos estatais.
Haveria, pois, que se qualificar a acusação, pô-la além da criminalização localizada. Virar a página não seria “inocentar” o PT ou aliviá-lo de responsabilidade, mas abrir o leque, expor as raízes profundas da corrupção e educar a cidadania.
Do outro lado da cerca, o PT tem motivos para reagir com irritação à declaração de Aécio. Afinal, ela mantem o partido numa posição incômoda, estigmatizando-o como se fosse o único a ter as mãos sujas. Judicializar a questão, porém, mediante a interpelação de Aécio na Justiça, não é caminho virtuoso. Responde a um factoide com outro factoide. Não tira o partido da vitrine, nem dá ao fato inconteste da “corrupção” qualquer tratamento consistente. O partido continua enfeitiçado pelo espelho mágico, crente de que não há na Terra ninguém menos corrupto do que ele. E faz questão de dizer que “não leva recado para casa".
A frase de Aécio veio em má hora, mas não configura um “golpe” ou a manutenção em aberto de um interminável “terceiro turno”, como disseram próceres petistas. Foi inadequada porque deu combustível para os que desejam acirrar ânimos, propõem intervenções militares e pedem impeachments. Não extravasou um “sentimento de indignação” que possa impulsionar uma oposição democrática consciente de seu papel.
A reação petista manteve o tom e engrossou o caldo. Faz tempo que o PT chama de golpista toda crítica ou acusação que lhe é endereçada. Fala que é tudo coisa feita para prejudicá-lo. Não se dá conta de que, ao agir assim, passa recibo aos acusadores e insufla seus próprios defensores. Enforca-se com a própria corda.
O País permanece em clima eleitoral. Os protagonistas das urnas de 2014 não retocaram a maquiagem. Continuam lambendo as próprias crias e as próprias feridas, a mastigar a mesma ração insossa que ofereceram aos eleitores. Nenhuma manobra diferente, nenhuma análise prospectiva, nenhum realinhamento de forças, nenhuma atitude de grandeza. O diálogo anunciado pela presidente ficou no terreno protocolar, as oposições sequer estão pagando para influenciar o que virá pela frente. Todos parecem encantados, à espera dos frutos que virão do escândalo da Petrobrás.
A manutenção sem novidades da polarização PT x PSDB não traz ganhos ou vantagens para ninguém, nem para os próprios contendores, muito menos para a população, o Estado democrático ou a agenda pública. O parafuso espanou e quanto mais petistas e tucanos insistirem em forçar a chave de fenda maior será o estrago.
O melhor para todos seria que o novo governo começasse com o pé direito. Quem sabe assim a política aprumasse e as coisas ficassem mais claras. Não é esta oposição – verborrágica, exagerada, midiática – que se espera do PSDB. Não será deste modo que o PT crescerá como força política capacitada para disputar espaço em um governo que somente em parte pode ser apresentado como seu e que viverá na turbulência.
O cenário lembra o abraço de dois afogados que, ao submergirem, levam consigo as energias e as expectativas de uma multidão de espectadores. No horizonte, não há boias nem salva-vidas.
Sem metáforas: faltam lideranças políticas, bons articuladores, estadistas, e na falta deles o País gira em círculos, cambaleante, aprisionado por suas limitações. Estamos carecendo de “ideais morais” que fixem uma imagem de cidadania que possa servir de parâmetro para a sociedade. O nível da “moralidade pública”, entendida em sentido rigoroso, não moralista, está baixo demais e os desafios do País são enormes. O ceticismo social e as paixões reprimidas que nascem desta discrepância não ajudam a ninguém. [Publicado em O Estado de S. Paulo, Caderno Aliás, 07/12/2014, p. E9]

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

No fio da navalha



Paul Klee, Red Balloon.1922

Há uma dissonância querendo crescer no Planalto. Ela dá o ar da graça mediante uma velha conhecida das esquerdas no mundo todo.
Pode ser assim apresentada: quanto mais complexas parecem ser as tarefas do governo reeleito, mais deveriam as forças que o apoiam pressioná-lo a ir para a esquerda, ou seja, a radicalizar suas posições, seu discurso, suas políticas e suas alianças. Se o raio de manobra diminuiu, a melhor saída seria “empoderar” o governo pela via do movimento social, libertando-o dos gargalos que lhe impõem o sistema político e a estrutura econômica.
Todos reconhecem, sem exceção, que ficou mais difícil a situação do governo, em que pese Dilma ter vencido as eleições. Há o megaevento da Petrobrás, cujos desdobramentos não se consegue prever, há o rombo nas contas públicas, a disputa pela presidência da Câmara dos Deputados, o crescimento econômico que não desponta e a inflação que persiste, a educação e a saúde a latejar, tudo isto combinado com a presença de uma oposição mais forte e a necessidade que o governo terá de formar nova maioria no Congresso sem se deixar levar pela chantagem excessiva do PMDB e de seus aliados.
O governo estará obrigado a dedicar tempo e atenção à política, negociar mais e melhor, dialogar de verdade, buscar novas fontes de legitimação e recuperar o tempo perdido, fazendo tudo isso com uma marca clara de inovação. Não poderá simplesmente reproduzir o toma-lá-dá-cá que tem prevalecido nas relações entre o Executivo e o Legislativo ou a rotina das políticas assistencialistas dos últimos anos, que deverão ser sustentadas e consolidadas sem que sejam tidas como a única marca registrada da ação governamental. Se o governo forçar a mão, poderá perder parte de seus apoios e comprar briga com o mercado; sua base parlamentar, aliás, que operou em regime de engorda crescente ano após ano, bateu no teto. Se mantiver tudo como está, poderá terminar engessado e frustrar os eleitores que viram na reeleição da presidente a possibilidade de “mudar mais”. Caminhará portanto no fio da navalha.
Um ministério “mais qualificado” é esperado tanto pelo mercado quanto pelo PT, mas por motivos distintos. Ao passo que os operadores econômicos querem uma equipe que estabilize e promova crescimento, o partido quer nomes que agreguem suas correntes e seus militantes, ajudando-os a permanecer no campo da mudança e do reformismo social. O País, por sua vez, espera que a presidente lhe apresente uma agenda para o futuro.
A “reforma política”, que está na ordem do dia, não poderá ser o principal recurso para que se enfrente o furacão que se anuncia. Corrupção casa com financiamento eleitoral, mas tem mil tentáculos. Governos podem funcionar seja qual for o sistema de voto. E uma reforma política, por mais bem sucedida que venha a ser, não produzirá efeitos imediatos nem sobre a dinâmica política, nem sobre a governabilidade, pouco servindo, portanto, para melhorar o desempenho governamental.
O momento indica que o PT deve se reposicionar. Sua direção nacional fala em “construir hegemonia na sociedade”. Se a expressão for bem traduzida, poderá significar que o partido dará maior atenção à elaboração de uma cultura que sirva de parâmetro para a educação política dos brasileiros, podendo até mesmo implicar maior questionamento das ações governamentais. Isto jogaria o PT mais no longo que no curto prazo, mais na guerra de posição que na guerra de movimento. O partido, porém, deseja atuar, “em conjunto com partidos de esquerda”, para desencadear um amplo processo de mobilização social.
Como disse o governador Tarso Genro (RS) – defensor de uma reestruturação profunda do PT –, o partido “deve deixar de ser mero apoiador-espectador, excessivamente preocupado com cargos e espaços na máquina pública, para se tornar um partido apoiador-proponente, disputando os rumos do Governo”. Sua proposta põe em xeque o sistema de alianças em vigor, o que significaria aumentar a distância do PMDB: “O governo da presidenta Dilma deve não só ser defendido da direita tradicional dos tucanos, mas também da direita que integra sua própria base parlamentar”. Cabe ao PT ser “o núcleo de sustentação mais coerente das medidas progressistas e democráticas do segundo governo Dilma”.
Uma “frente de esquerda” voltou assim a frequentar os discursos petistas.
O contraponto tem sido feito pelo ministro Gilberto Carvalho, um dos mais próximos do ex-presidente Lula. Para ele, o momento é de valorizar o diálogo tanto para “reunificar o país” quanto para sanar deficiências que se acumularam. Imprimir outro curso ao governo, corrigir falhas e erros, mas sem implodir a base parlamentar duramente construída, mantendo próximos e unidos todos os partidos que apoiam o governo, sem vetos.
O PT da “frente de esquerda” se distingue do PT do “diálogo” à direita, mas ambos se compõem: o governo governaria com a aliança à direita e o partido o pressionaria pela esquerda, ativando os movimentos sociais, numa espécie de “duplo poder”, o do governo e o do partido.
Diante disso, três questões ficam em aberto.
A primeira é se o diagnóstico acerta ao constatar a existência de forças e movimentos de esquerda para integrar uma frente como a pretendida. Mesmo que existam, elas podem não ter disposição para atuar de modo unitário.
A segunda é se a união destas correntes encontraria respaldo efetivo no PT e ajudaria o governo.
E a terceira tem a ver com o que a “frente de esquerda” fará com os democratas liberais e a esquerda democrática não petista. Se empurrá-los em bloco para a “direita”, estará praticando uma infâmia e turbinando as oposições. O mais razoável seria agregá-los ao “novo ciclo reformista” que se deseja inaugurar em 2015. Para isto, porém, a “frente de esquerda” precisaria ser convertida numa “frente democrática”, proposta para a qual a cultura petista majoritária não se mostra suficientemente preparada.[Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/11/2014, p. A2]

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Leandro Konder, meu amigo desenhista


Desenho de Leandro Konder, RJ, junho 1984

Como aconteceu com outros amigos, conheci Leandro Konder primeiro no papel e depois ao vivo.
Estudante, lia seus livros e me maravilhava com o fato de que eles pareciam ter sido escritos “para mim”, quer dizer, podiam ser compreendidos até por quem estava em formação ou sabia muito pouco, como era meu caso. Por volta de 1972, me interessei muito pelo marxismo de Georg Lukács, e Leandro era seu maior intérprete no Brasil. Lembro-me bem do entusiasmo com que li Realismo e antirrealismo na literatura brasileira (1974), volume coletivo com ensaios assinados por intelectuais de quem alguns anos depois eu me tornaria amigo. Leandro era o principal deles.
Mais tarde, no segundo semestre de 1976, quando participei da direção da revista Temas de Ciências Humanas, que tinha nítida influência marxista (Lukacs, Gramsci e PCI), procurei entrar em contato com Leandro, que na época morava entre Bonn e Paris. Pedi ajuda a Nelson Werneck Sodré e em pouco tempo estava escrevendo para Leandro. Trocamos muitas cartas. As que me chegavam, eram invariavelmente preciosas, escritas quase sempre à máquina e em papel de seda, um A4 cortado ao meio. Houve também alguns bilhetes escritos à mão com letra miúda e harmoniosa. Falávamos de tudo um pouco, mas sobretudo de projetos editoriais, marxismo, eurocomunismo e política brasileira.
Somente fui conhecer Leandro no início de 1979, quando ele voltou ao Brasil. Depois de tantas cartas, a expectativa era tamanha que ao encontrá-lo parecia que o conhecia há décadas.
De lá para frente, tivemos muitos encontros e participamos de inúmeras reuniões políticas.
Leandro tinha um mantra pessoal: era preciso não se levar jamais exageradamente a sério. Ou seja, rir da própria desgraça, não perder a capacidade de perceber o que há de patético e inesperado nas atitudes humanas, a natureza contraditória das pessoas. Havia nele, em doses fartas, um delicioso senso de humor que suavizava a firmeza da crítica e humanizava a exposição, recheando-as de detalhes e boutades que funcionavam como travas de sustentação da narrativa e sempre revelavam algo mais do personagem ou do assunto em foco. A verve e a leveza de Leandro certamente o ajudaram a deixar claro e demonstrar que um marxista não é necessariamente um chato. “Importante mesmo - reconheceu certa vez - é ser intelectual marxista e preservar o senso de humor”.
Tendo participado, com ele, de várias reuniões políticas, adorava vê-lo desenhar, fazer caricaturas e cartuns enquanto a discussão pegava fogo. Invariavelmente retratava os próprios amigos presentes ou personagens mencionados nas reuniões. Os desenhos funcionavam como um balãozinho de oxigênio: modulavam a chatice das discussões e nos traziam de volta à dimensão cômica da vida. Em suma, à vida.
Ganhei alguns daqueles desenhos de recordação. Perdi quase todos, infelizmente. Um deles consegui guardar, trancado a sete chaves. Feito em 1984, ilustra esta postagem.
Leo escreveu a quarta capa do meu livro Um Estado para a sociedade civil, em 2004. Foi um acontecimento para mim.
Escrevi sobre o marxismo de Leo no blog que mantenho no Estadão (o artigo pode ser encontrado aqui). 
Agora que ele morreu, no último dia 12 de novembro, aos 78 anos, deixando um enorme buraco em todos os que o conheciam, penso que posso homenageá-lo reproduzindo aqui a íntegra daquele pequeno texto, que mostra Leandro Konder por inteiro: um intelectual gentil e generoso, amigo de seus amigos.
“A política se faz com as mãos mergulhadas no sangue e na merda”, dizia brutalmente o velho Sartre. A reflexão sobre a política, entretanto, na medida em que pretende contribuir para a construção do conhecimento de uma atividade humana peculiar, deve procurar evitar a intimidade e o convívio duradouro com porcarias. Deve pensar grande.
Meu amigo Marco Aurélio Nogueira, leitor atento de Gramsci e de Bobbio, aberto tanto a sugestões de Giddens, de Bauman e de Beck quanto a ideias de Freud e de Habermas, vem repensando há vários anos os complexos problemas da relação entre o Estado e a sociedade. O Estado, atualmente, está em crise: tem desafetos à direita e à esquerda. Marco Aurélio, porém, adverte contra os riscos de um “Estado sem sociedade civil” e também contra os riscos de uma “sociedade civil sem Estado”.
Nas condições em que nos encontramos, arrastados num processo de mundialização que não corresponde às nossas aspirações, temos, entretanto, a chance de aproveitar importantíssimos avanços técnico-científicos, de promover uma desprovincianização.
Por tudo isso, mesmo em plena globalização neoliberal, Marco Aurélio Nogueira recusa a sedução de uma perspectiva catastrofista ou apocalíptica e busca delinear um reformismo democrático radical, para que possamos vir a ter acesso a formas de vida mais justas e mais inteligentes.  Leandro Konder

domingo, 9 de novembro de 2014

Revista Época | Entrevista: "O baixo nível reflete a desqualificação dos partidos"

Poucos dias antes do segundo turno das eleições presidenciais, dei uma entrevista para a revista Época. Como ela circulou bastante e foi lida por muitas pessoas, achei adequado republicá-la no blog. Para mim, tem a função de registrar um momento importante da histórica política brasileira, além de documentar minha própria trajetória.
A entrevista segue abaixo na íntegra, exatamente como foi publicada na edição nº 855 da revista, datada de 20/10/2014, p. 32-34.
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O cientista político Marco Aurélio Nogueira sentiu na pele a radicalização política destas eleições quando anunciou a seus 751 seguidores no Facebook o voto em Marina Silva (PSB) no primeiro turno. Ainda não fez as contas de quantos amigos perdeu ao tomar partido. “Ouvi mais elogios, mas muitos falaram: ‘Que decepção!’”, diz. Professor de teoria política da Universidade Estadual Paulista (Unesp), ele se prepara agora para perder mais amigos depois de ter assinado um manifesto de intelectuais que se identificam com o rótulo de “esquerda democrática”, em apoio à candidatura de Aécio Neves (PSDB). Nogueira já militou no antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e ainda se identifica como “eurocomunista”.
ÉPOCA – Por que a polarização política chegou a nível de radicalização destas eleições?
Marco Aurélio Nogueira – É um fato inédito. Depois da ditadura para cá, a que se aproxima mais desta eleição foi a disputa entre Fernando Collor e Lula, em 1989, quando houve muita apelação. Agora, há uma diferença importante: a reverberação. As redes sociais são câmaras de eco que incrementam tudo o que se fala. O barulho de um alfinete se compara a um trovão. O baixo nível do debate também reflete a desqualificação dos partidos. Os partidos perderam a capacidade de orientar seus militantes. Não há orientação clara a respeito do que deve ser feito, especialmente quando se tenta pensar a política como um exercício que não é dedicado a destruir o adversário. A política tem uma face nobre. Quem tem condições de impulsionar a face nobre da política são os que estão bem colocados no jogo político: as grandes lideranças, os intelectuais, os partidos. Os partidos deveriam ser canais de agregação de lideranças e intelectuais que pudessem funcionar como educadores cívicos. Mas não atuam assim.
ÉPOCA – É pela falta de qualidade dos quadros políticos?
Nogueira – É devido mais à perda da capacidade de agregação dos quadros que aos quadros individualmente considerados. O ponto nevrálgico dessa discussão são os partidos políticos, que podem fazer a mediação institucional e associativa. Quem pode organizar a qualidade da política não são os indivíduos. Os partidos precisam ser recriados. Os partidos continuam a ser símbolos que orientam as pessoas. Mas não conseguem mais funcionar como modeladores e organizadores da sociedade – como os partidos comunistas já foram no passado –, porque as pessoas não querem mais ser comandadas. Como eles se recriarão? Não sei. Mas não conseguirão dar esse salto para a frente na base da recuperação de qualquer mentalidade burocrática ou autoritária. Não basta uma direção de fibra de aço.
ÉPOCA – A crise dos partidos não é mundial?
Nogueira – Não é um problema exclusivamente brasileiro. Parte do problema tem a ver com nossa época, em que o eixo passou a ser a individualização, não a associação. Vemos isso naquela propaganda que diz: “O importante é ser você mesmo”. Ou seja: vire-se. Faça o melhor da sua parte, que o resto acontecerá por extensão. Isso não é verdade. São necessárias mediações para produzir uma espécie de força coletiva que venha das diferentes individualidades. Ainda não conseguimos resolver bem isso no Brasil. Onde há grandes tradições associativas e maior vida comunitária, como nos Estados Unidos e na Europa, o problema é menor.
ÉPOCA – Após as jornadas de junho, o senhor disse que “nas redes sociais, não há debate democrático” e que, no Brasil, “o debate é movido pelo ódio, mais que pelo bom-senso e pela paixão cívica”. Qual é a explicação para isso?
Nogueira – Quando você se comunica com alguém pelas redes, é movido pela explosão, não pela reflexão. Você escreve uma frase de 140 caracteres e aperta uma tecla. O debate político, vivido dessa maneira, fica irremediavelmente empobrecido. Pode-se dizer que isso representa o início de uma nova forma de fazê-lo. Reconheço que há grandes vantagens de rapidez, interação e troca de opiniões. É algo que ainda precisa ser assimilado. Talvez, fora de uma disputa eleitoral, isso ocorra com mais facilidade. Sou frequentador das redes sociais e já tive boas discussões. Fora da eleição. Na eleição, é quase impossível. Nestas eleições, sob estas circunstâncias, é mais impossível ainda.
ÉPOCA – Quais serão os desdobramentos dessa polarização?
Nogueira – Não acho que o mundo acabará, mas também não vejo nenhuma consequência positiva. Um dos piores efeitos da polarização PT-PSDB foi forçar a sociedade a um tensionamento de A contra B, que não produz vida coletiva muito positiva. Além da polarização PT-PSDB, temos a polarização NordesteSudeste, ricos contra pobres. Os partidos contribuíram para isso. Especialmente o PT, porque foi assim que ele se constituiu. Se apresentou sempre como o polo que regeneraria a sociedade pela ascensão dos explorados. O PT amadureceu sem completar o movimento, que seria propor-se a ser partido de toda a sociedade. O PT continua a se apresentar como o partido dos pobres. Inevitavelmente, isso transporta uma polarização social para a política.
ÉPOCA – Uma corrente de cientistas políticos vê a polarização PT-PSDB como positiva, porque organiza o sistema partidário, muito fragmentado. Qual sua opinião?
Nogueira – Se for para corrigir os excessos da fragmentação partidária, é bom que tenhamos uma confluência do sistema para dois polos. Mas isso não resolve o problema da qualidade da polarização. Se cada um dos polos não consegue apresentar aos espectadores o que os diferencia, não sei o que ganhamos com isso. A polarização PT-PSDB não deixou claro o que os diferencia, a não ser na base de uma certa apelação: “Nós somos os pobres, vocês são os ricos”, “Nós somos keynesianos, vocês são neoliberais”. Para mim, as visões entre PT e PSDB não são tão distintas assim, mas são apresentadas como se fossem completamente divergentes, numa simplificação da discussão substantiva. Onde está o busílis da questão econômica entre PT e PSDB? Na maior ou menor atribuição de peso à regulação estatal. Ao que me consta, o PSDB nunca foi inimigo visceral da regulação estatal. O PT acredita mais na regulação estatal, mas não impediu que o governo Lula continuasse e corrigisse a política econômica do PSDB. No passado, houve a expectativa de uma composição PT-PSDB. Como inimigos mortais puderam cogitar trabalhar juntos? Talvez porque a diferença entre eles não seja tão grande. Talvez porque ela tenha sido artificialmente amplificada.
ÉPOCA – Por que  Marina não conseguiu quebrar a polarização?
Nogueira – Ela apanhou demais e não teve condições de fixar sua voz no cenário. Marina caiu do céu como candidata num dia de agosto e não teve tempo de se preparar. Quem tinha o discurso afinado era Eduardo Campos. Ele colocaria na mesa o debate sobre a nova política. E o faria do jeito Eduardo Campos. O jeito Marina é diferente: mais à esquerda, ambientalista, temperamental, com uma linguagem empolada, oscilante, fala uma coisa, depois corrige. Ela é parte integrante de um movimento – a Rede, os verdes, os ecologistas –, de um pessoal que não se cansa de discutir. As conferências de uma hora duram quatro! Eles não param! É um negócio perturbador! Eles procedem pelo consenso, mas um candidato tem de dar respostas num curtíssimo prazo. Marina lançou o programa num dia e, no dia seguinte, já tinha de corrigir. Se eu tentasse extrair da Marina a visão de nova política, perceberia também várias falhas, devido a uma visão um pouco romântica da política e a dificuldades de formulação. Não é verdade que a nova política seja feita pelos melhores. Isso é um papo bobo.
ÉPOCA – Dá para haver terceira via no Brasil?
Nogueira – Vale a pena perguntar se “terceira via” é o modo correto de pensar essa questão. A terceira via, como conceito, é o caminho entre o socialismo e o capitalismo. Podemos traduzir isso como um expediente para quebrar polarizações – uma terceira opção com o que há de melhor no polo A e no polo B. Isso é possível no Brasil. Poderia criar uma dinâmica política e social mais interessante. Mas não vejo a possibilidade desse terceiro polo mediante o surgimento de uma força que não está no cenário e caia do céu. Marina foi uma tentativa disso e mostrou que não tem viabilidade.
ÉPOCA – No primeiro turno, o senhor declarou voto em Marina pelo Facebook. Quantos amigos perdeu por isso?
Nogueira – Ainda não fiz essa conta. Quando você publica uma coisa assim, há dois tipos de manifestação. A grande maioria concorda com você. Faz isso porque é mais fácil, não quer atrito, gosta de você ou não tem tempo para desenvolver uma contestação. Ouvi muito mais elogios. Mas muitos falaram: “Que decepção!”. Assinei um manifesto em favor de Aécio – e continuo de esquerda. O manifesto é de pessoas de esquerda que não são revolucionárias ou adeptas da luta de classes, mas formam uma esquerda democrática. Quantos amigos perderei? Se pegar o povo da universidade, a maioria é petista. Perderei muitos amigos, mas não tenho objeção a isso. A vida tem de ser calculada  levando em conta as perdas e os ganhos (risos).

sábado, 1 de novembro de 2014

A ilustração fantástica de Américo Gobbo


Ilustração de Américo Gobbo

Uma das coisas mais bacanas de ter um blog é você poder ser seu próprio editor. Define o que quer publicar, a linguagem a ser usada, o tamanho do texto e a ilustração que o acompanhará. Pode optar por usar uma imagem que reforce ou destaque coisas do texto, ou que simplesmente o embeleze. Pode se valer da ironia e dos finos traços dos cartunistas ou da mágica reveladora dos fotógrafos.
Tudo, evidentemente, em função de seus próprios gostos pessoais, daquilo que você valoriza. Tenho usado e abusado deste recurso, incorporando alguns desenhos, ilustrações, pinturas, gravuras e cartuns.
Descobri o desenho e a arte de Américo Gobbo graças ao jornalista Mauro Malin, do Observatório de Imprensa.
Estávamos – eu e Claudio França pelo IPPRI da UNESP, Mauro pelo Observatório e Mario Mazzili e William Sodré pelo Instituto Cultural CPFL – tentando pôr de pé um projeto para acompanhar e discutir as manifestações de junho de 2013. Queríamos ampliar e amplificar as análises que haviam sido feitas, combinando visões jornalistas com elaborações de caráter mais teórico. A ideia era fazer um site que canalizasse o trabalho e o publicizasse. Precisávamos de uma marca, de uma identidade visual para o nome do projeto: Ruas em Movimento. Foi quando Mauro apresentou o Gobbo.
Depois de alguns ensaios e conversas, ele chegou a uma ótima solução.

O projeto, infelizmente, não seguiu em frente. Está adormecido, podendo ser reativado a qualquer momento. Ninguém sabe. Mas Gobbo seguiu evidentemente em frente e continua ativíssimo.
Nos últimos tempos, tive o privilégio de acertar com ele um apoio para ilustrar alguns de meus textos no blog.
Os leitores saberão apreciar a fineza da arte de Gobbo. Não sou crítico especializado, mas me encantam profundamente a riqueza de detalhes e o colorido de suas ilustrações. Não sei bem porque, mas elas me lembram o realismo fantástico, ao fazer com que certos detalhes ganhem amplitude e capacidade evocativa.
Américo Gobbo tem um site, onde todos poderão ver o que ele tem feito nos últimos anos: http://americogobbo.com.br/. Trata-se de um artista com sólida formação e larga experiência. Estudou na conceituada Accademia di Belle Arti di Bologna, Itália, entre 1985 e 1989, tendo vivido nesta cidade até 2007. Hoje, mora em Leme, interior do estado de São Paulo, onde mantém um estúdio de pintura e gravura.
Merece continuar a ter o destaque que vem obtendo. Para mim, é uma parceria que só faz o blog crescer.