sábado, 27 de junho de 2009

A sociedade como sacrifício

Basta passar os olhos pelo noticiário ou observar a vida cotidiana para notar que algo desafina no plano das instituições. A insatisfação com elas é difusa. O mal-estar dentro delas, indisfarçável. Elas nos desagradam, aborrecem-nos ou não nos inspiram confiança, seja na política (partidos, casas legislativas), na educação (escolas, universidades) e na segurança pública (polícia, presídios), seja na economia (empresas, mercados) e na vida associativa primária, na família.

Precisamos de sociologia para discutir o ponto. Não dá para achar que as instituições falham porque são defeituosas, mal dirigidas ou mal organizadas.

Nossa época está atravessada por três processos que se superpõem, potencializando a globalização, a conectividade geral e o ritmo veloz que imperam por toda parte. As sociedades modernas estão sendo gradativamente reconfiguradas, antes de tudo, pela individualização: os indivíduos se “soltam” dos grupos, que sobre eles exercem cada vez menos poder e controle. Soltando-se dos grupos, soltam-se também das instituições. A individualidade se tornou um valor inestimável, tanto no sentido da privacidade, quanto no sentido da “autonomia moral”, do pensar e decidir com a própria cabeça. E muitos destes indivíduos individualizados se tornam individualistas, egoístas, indiferentes aos demais.

Individualização, individualidade e individualismo tornaram-se assim condições estruturais. Combinados com os demais traços da época, explicam muitos dos dilemas associativos atuais, que refletem um quadro de “dessolidarização”. As instituições não funcionam bem porque não conseguem incluir, congregar e coordenar os indivíduos, que delas escapam ou a elas se tornam indiferentes. Os indivíduos necessitam delas, mas são levados a viver como se seguissem uma carreira-solo, alheios a vínculos e compromissos coletivos.

Nem sequer na dimensão privada da vida as coisas estão ajustadas. O alto índice de divórcios, os crimes passionais hediondos e os novos formatos de família e relacionamento revelam que certos equilíbrios foram perdidos, mas também sugerem a presença de um maior desejo de liberdade. Conservadores e tradicionalistas, com maior ou menor dose de ingenuidade, acreditam que tudo se deve à degradação dos costumes, que se recuperariam caso a ordem e o rigor moral voltassem a prevalecer no seio das famílias. Para eles, o desejo de liberdade é subversivo e precisa ser contido.

Devemos pensar com cuidado. A vida coletiva não se esgotou, nem as pessoas e os grupos andam às tontas pelo mundo. Todos sabem que uns precisam dos outros e que todos precisam de limites e coordenação, mas a tendência prevalecente indica que o poder das instâncias coletivas se reduziu. Ele continua a existir, evidentemente, mas não porque o coletivo forneça direção e identidade para seus integrantes ou aumente a potência deles como sujeitos, e sim porque lhes possibilita reforçar demandas e posições.

Ao perderem o hábito de valorizar o coletivo, as pessoas tendem a se ver mais como “vítimas” do que como beneficiárias da vida em sociedade. Elas estão de fato sobrecarregadas de pressões e de problemas, e não têm muito com quem dividir isso. Sequer o trabalho e o emprego – esses trunfos categóricos do gênero humano – conseguem hoje organizar as pessoas. É compreensível que sintam o coletivo como um fardo, que se deve suportar com abnegação ou asco.

A vontade de ser livre e independente, de pensar com autonomia e criar as próprias regras, introjetou-se na consciência social. Ganhou impulso com as transformações que vêm atingindo as sociedades contemporâneas. Animada e embaralhada pela possibilidade que se tem hoje de se fazer tudo, ou quase, acabou por dissolver a percepção do social.

Mas a vida coletiva continua a existir e, nessa medida, continua a exigir que se aceitem regras e se coopere. Isso implica ao menos duas coisas.

Numa dinâmica tradicional, ou estruturalmente autoritária, implica o sacrifício do indivíduo e de seus desejos, o silêncio e o bloqueio de sua mobilidade. O grupo prevalece unilateralmente sobre as pessoas, monitorando-as sem apelação. É um sacrifício imperceptível, mas nem por isso menos real, já que o indivíduo sequer imagina a possibilidade de escapar à regra e sofre as limitações como um “fato natural”.

Numa dinâmica social moderna, diferenciada e democratizada, como a nossa, implica o sacrifício do individualismo, a capacidade de compreender o todo, assumir as próprias responsabilidades e contribuir para a organização justa do coletivo. Os indivíduos prevalecem sobre os grupos, porque podem fazer escolhas sem consultá-los ou pedir licença. É um sacrifício complexo, consciente e responsável, que exige altas doses de reflexividade, espírito cooperativo e disposição para o diálogo, sob pena de projetar a comunidade para o caos ou a impotência.

Aceitar a presença de minorias ideológicas ou corporativas, por exemplo, exige o sacrifício da vontade de potência das maiorias, silenciosas ou não, do mesmo modo que a liberdade de ação das minorias exige, da parte delas, o respeito às regras básicas de convivência e aos direitos dos indivíduos. O reconhecimento do direito de uns pressupõe o igual reconhecimento do direito de outros.

Encontrar um ponto de equilíbrio entre essas dimensões – o coletivo e o individual, as regras e a liberdade – é um desafio permanente, que se mostra tanto mais complicado quanto mais as sociedades se diferenciam e se individualizam. Em sociedades desse tipo, não se pode vencer categoricamente, com a marginalização dos dissidentes, e nenhuma conquista pode ser obtida à base da força ou da violência (física ou verbal). A argumentação persuasiva, a tolerância e a ação política inteligente são os únicos recursos dos sujeitos políticos. Nelas, a ordem silenciosa e o ruído caótico bloqueiam a democracia e funcionam como empecilhos igualmente perversos para a mudança. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/06/2009, p. A2]

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Pérolas do futebol



Meu amigo José Antônio Pinho – professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e editor da excelente revista Organizações & Sociedade (http://www.revistaoes.ufba.br/) – é, como eu e milhões de outras pessoas, um amante do futebol. Sua revista publicará nas próximas semanas um número especial dedicado precisamente a esse esporte, visto como prática, negócio e desafio gerencial.

Acabei de receber um e-mail do Pinho com uma excelente coletânea de frases célebres do mundo do futebol. Agreguei algumas outras à sua lista e reproduzo tudo abaixo.

Como se sabe, muitas das frases consideradas “pérolas do futebol” são inventadas. Alguns dos personagens do universo futebolístico tornaram-se tão famosos e foram tão centralizadores das atenções que impulsionaram a construção de todo um imaginário a partir deles. Foi o caso, por exemplo, de Vicente Matheus (1908-1997), o “eterno” presidente do Corinthians, que mesmo depois de morto continuou a ser referência na área. Suas frases sem pé nem cabeça fizeram-no famoso, completando todo o folclore que se criou a partir de sua conduta irreverente, alegre, fora dos padrões do que se considerava “mundo educado”. Matheus morreu de câncer em 1997. Dez anos depois, quando o Corinthians caiu para a série B, sua viúva Marlene o homenageou: “Ainda bem que o Vicente não viu. Seria mais uma morte para ele”.

São atribuídas a ele algumas pérolas que jamais puderam ser comprovadas: “O Sócrates é invendável e imprestável”, “Depois da tempestade vem a ambulância”, “Agradeço à Antárctica pelas brahmas que nos mandou”, “Vou dar uma anestesia geral para os que estão com a mensalidade atrasada”, "Minha gestação foi a melhor que o Corinthians já teve."

Outro grande personagem foi Dario, o Dadá Maravilha, cuja irreverência concorria com a ingenuidade e a genialidade dentro e fora do campo. Consta que ele mesmo fixou seu slogan: “Com Dadá em campo, não tem placar em branco”. E que costumava se definir sem falsa modéstia: “Artilheiro são outros, eu não sou artilheiro, sou uma máquina de fazer gols”. Para ele, o gol seria “o orgasmo do futebol”. Também é atribuída a ele a conhecida “Tragam-me a problemática, que eu chego com a solucionática.

Garrincha teria de ser igualmente lembrado, e com ele se iniciaria a composição de um verdadeiro elenco de ouro.

Independente de serem falsas ou verdadeiras, as frases são fantásticas. E revelam toda a dimensão cultural (portanto, política e social) do “esporte das multidões”, que tem mesmo, ao menos no Brasil, a cara do povo.

Ao reproduzir algumas delas abaixo, faço o convite para que outros amigos do futebol continuem a completar a lista.

De Vicente Matheus

"Jogador tem que ser completo como o pato, que é um bicho aquático e gramático".

"O difícil, como vocês sabem, não é fácil".

"Se entra na chuva é pra se queimar”.

"Tive uma infantilidade muito difícil."

"Haja o que hajar, o Corinthians vai ser campeão”.

"Peço aos corinthianos que compareçam às urnas para naufragar nossa chapa".

De Dario, o Dadá Maravilha

“Só existem três coisas que param no ar: beija-flor, helicóptero e Dadá”.

"Eu me preocupo tanto em fazer gols, que não tive tempo de aprender a jogar futebol".

“Não existe gol feio, feio é não marcar gols”.

“A área é o habitat natural do goleador, nela ele está protegido pela constituição, se for derrubado é pênalti”.

“Num time de futebol existem nove posições e duas profissões: o goleiro e o centroavante”.

“Bola, flor e mulher, só com carinho”.

De outros

"Quando o jogo está a mil, minha naftalina sobe". (Jardel, ex-atacante de Vasco e Grêmio).

"Clássico é clássico e vice-versa". (Jardel).

"Nem que eu tivesse dois pulmões eu alcançava essa bola". (Bradock, amigo de Romário).

"No México que é bom. Lá, a gente recebe semanalmente de 15 em 15 dias". (Ferreira, ex-ponta esquerda do Santos).

"O clube estava à beira do precipício, mas tomou a decisão correta: deu um passo à frente". (João Pinto, jogador do Benfica de Portugal).

"Eu disconcordo do que você disse". (Vladimir, ex-lateral do Corinthians, numa entrevista à Rádio Record).

"Na Bahia é todo mundo simpático. É um povo muito hospitalar". (Zanata, ex-lateral do Fluminense).

“Estou de regime, e o doutor me proibiu de comer bicarbonato”. (Fabio Baiano, ex-zagueiro de Flamengo, Palmeiras e São Paulo).

“Para fugir do becão, fiz que fui, não fui, e acabei fondo..”. (Nunes, antigo centro-avante do Flamengo).

A partir de agora, meu coração só tem uma cor: rubro-negra”. (Do zagueiro central Fabão, ao ser contratado pelo Flamengo).

"Não tem outra, temos que jogar com essa mesma". (Reinaldo, centro-avante do Atlético-MG, ao responder ao repórter que queria saber se ele ia jogar com aquela chuva).