sábado, 23 de março de 2013

Desejo de poder




A decisão foi tomada com a costumeira sagacidade, um dos atributos mais incensados do ex-presidente Lula. Mas não faz jus à importância política que ele tem na história recente do país.
Quando, a dois anos do fim do mandato da presidente Dilma Rousseff e dos governadores estaduais, a população e o sistema político são instados a derivar para a dinâmica da sucessão, todos perdem alguma coisa.
Perdem antes de tudo os governos, que trocam suas agendas executivas e seus planos de obras, investimentos e repasses, por afagos em aliados, reprimendas em adversários e trancos em inimigos. Atos que deveriam ser corriqueiros convertem-se em factoides, decisões são antecipadas ou postergadas com o propósito de chamar atenção e dramatizar a relação com a sociedade. Tudo sai do eixo, da dimensão do que é razoável, escorre pelo ralo das maldades e bondades de que é feita a face escura da política – uma face que se suporta bem quando a outra face exibe vigor e determinação, coisa que está bem longe de acontecer. E assim, como que de repente, jogam-se todos num frenesi para acumular trunfos, “adensar o entorno”, compor base política e atrapalhar os adversários. Prova disso é a reforma ministerial promovida pela presidente na semana passada, em meio ao anúncio de novos benefícios à população e a uma nova onda de aprovação popular a seu governo. A troca de ministros não seguiu qualquer lógica gerencial, foi pura fisiologia e ajuste para acomodar parceiros e manter intacta a base governista. Como disse o deputado federal Alfredo Sirkis (PV-RJ), “alguns ministros insignificantes saíram e outros ministros insignificantes entraram”. Abriram-se assim mais espaços para a ação predatória dos partidos aliados, sem qualquer critério ou justificativa séria.
O governar, nesse quadro, torna-se exibicionismo, marketing e construção de imagem. Governos e governantes ganham em protagonismo e visibilidade, mas perdem em planejamento e eficácia, agindo na contramão do que deles se espera. Assume o primeiro plano, sem qualquer dissimulação, aquele “perpétuo e irrequieto desejo de poder” que Thomas Hobbes (1651) considerava tendência geral dos homens.
Mesmo no universo imediatamente político, quer dizer, no mundo dos políticos e dos partidos, não há somente ganhadores. Os que se posicionam na situação, estejam em Brasília ou nos estados, ganham certamente alguma coisa. Foi pensando neles que Lula decidiu lançar Dilma à reeleição. Com sua argúcia autorreferenciada, imaginou criar um fato que ajudasse o governo a visualizar amigos e inimigos, tanto dentro quanto fora da coalizão governante. O sinal de largada significou que a partir de agora políticos e partidos situacionistas devem maximizar o uso de seus recursos de poder para infernizar a vida dos adversários e tentar cristalizar suas marcas e identidades. Devem por em movimento uma enxurrada de obras, promessas e realizações. Devem rever e ajustar cronogramas anteriores ou simplesmente inventar outros às pressas. Menos discussão, crítica e reflexão, mais movimento e divulgação.
No campo das oposições, o estrago é ainda maior, pois elas são forçadas a acelerar a resolução de seus próprios dilemas e dificuldades. Ao fazerem isso, abrem mão de um trabalho mais cuidadoso, mais denso, mais afinado com suas tradições e mais atento aos problemas nacionais. Tendo de interagir com um futuro artificialmente antecipado, não conseguem resolver nem acomodar suas contradições e tensões, perdendo força antes mesmo de irem à luta. Os ruídos e arestas entre Serra, Alckmin e Aécio Neves no interior do PSDB, assim como os improvisos que o PSB é obrigado a fazer para dar corpo e envergadura a Eduardo Campos, são a ponta mais visível desse iceberg.
Isso não quer dizer que as oposições terminem por ver aumentar sua letargia. Elas até poderão chegar em condições razoáveis à disputa eleitoral de 2014. Mas dificilmente farão isso sem um esforço desproporcional, sangrando bastante e varrendo a sujeira para debaixo do tapete. Terão menos tempo para reunir seus pedaços, elaborar um programa consistente que parta de um diagnóstico profundo da realidade nacional e tenha engenho e arte suficientes para  seduzir os eleitores. Em vez de candidatos oposicionistas fortes, sustentados por proposições substantivas e coerentes, sintonizados com correntes de opinião e interesses conscientes de si, surgem candidaturas alternativas impulsionadas por apetites pessoais e regionais. Dar-se-á o mesmo no campo situacionista, já que seus candidatos serão levados a requentar o conhecido em vez de tentar dar um passo à frente e inovar. A pressa é inimiga jurada da perfeição. 
A antecipação casuística do calendário eleitoral é ruim para a democracia e para a massa de eleitores, em especial aqueles setores sociais (os pobres, os excluídos, os discriminados) que mais teriam a ganhar com a existência de um debate democrático de qualidade, pedagógico e incorporador. A partir de agora, tal debate tornou-se hipótese remota.
A manobra de Lula – como, aliás, qualquer manobra em política – traz consigo alguma dose de risco. Ela submete Dilma a um teste de resistência. A candidata situacionista, que hoje é a maior beneficiária da antecipação, terá de caminhar daqui para frente com um pé em cada canoa, apresentar-se ora como gestora e governante do presente, ora como fiadora de um futuro que parece distante demais. Poderá chegar inteira e fortalecida às urnas de 2014, mas poderá também acumular algum desgaste por excesso de exposição. Se a calmaria se instalar no país, se apresentará como sua criadora e tenderá a magnetizar de forma invencível todo o campo político. Se, porém, a vida não lhe fornecer somente temperaturas amenas, brisa e água fresca, chegará extenuada ao momento eleitoral, será responsabilizada por erros e fracassos e terá poucos ombros amigos em que se apoiar. [Originalmente em O Estado de S. Paulo, 23/03/2013, p. A2].

quarta-feira, 6 de março de 2013

Homenagem a Carlos Nelson Coutinho

Com Carlos Nelson Coutinho. Nápoles, 1997.

Em dezembro de 2012, na Universidade Federal da Bahia, tive a oportunidade, a emoção e o prazer de fazer uma conferência em homenagem a Carlos Nelson Coutinho. Foi no encerramento do III Encontro de São Lázaro, tradicional promoção da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. A conferência se chamou "Democracia e socialismo".  O vídeo pode ser assistido aqui
A primeira vez que ouvi o nome de Carlos Nelson Coutinho foi, creio, em 1974, quando Gildo Marçal Brandão me apresentou aos ensaios reunidos em Realismo e Anti-realismo na literatura brasileira, livro de um grupo de ensaístas que tinham o filósofo húngaro marxista Gyorgy Lukács como referência. O livro acabara de ser publicado pela Paz e Terra. Lukács era, naqueles anos, para o grupo de estudantes e professores que eu integrava, a máxima expressão do marxismo que pretendia reivindicar, ao mesmo tempo, renovação e rigor. Fazíamos uma espécie de “marxismo acadêmico”, concentrado no plano do estudo, obrigados a isso pela dura repressão política que praticamente extinguira os partidos de esquerda do cenário nacional. Havia um clima de “intelectualismo” meio que refratário à ação política, mas as condições objetivas eram brabas, e justificavam a cautela. Vivíamos à espera do retorno do príncipe moderno, ou seja, de um partido político revolucionário.
Eu lera Gramsci alguns anos antes, incentivado por Lúcio Flávio Pinto na Escola de Sociologia e Política. Na época, fazíamos a revista Di...fusão, de que participavam também Reginaldo Forti e Claudio Kahns. Era uma revista de centro acadêmico, na qual publiquei minhas primeiras resenhas. Lúcio sugeriu que lêssemos as notas de Gramsci sobre jornalismo para ganharmos base teórica. Li-as e me entusiasmei muito, mas a leitura não teve sequência. Mas o modo gramsciano de fazer marxismo, expresso naquelas notas, me influenciou sem que eu me desse conta, suavizando a assimilação que fazia do lukacsianismo de meus colegas. Lukács me dava alguns bons esquemas e boas categorias com que fazer luta ideológica, mas não resolvia satisfatoriamente a questão da política, eu perceberia mais tarde, quando o troquei por Gramsci. Conversei centenas de vezes sobre isso com meu grande amigo Gildo Marçal Brandão ao longo daqueles anos. Até sua morte prematura, em 2010, o tema nunca saiu da conversa.
Mas ali, em 1974-1975, éramos todos lukácsianos e o livro em que estava o artigo de Carlos Nelson foi como que a abertura de uma porta para a reflexão crítica. Fui atrás de outras coisas dele, e descobri, com surpresa, que aquele cara que tinha tanto a dizer era pouco mais velho do que eu e tinha muita coisa na bagagem. No livro sobre o antirrealismo, ele dialogava com Lima Barreto, ampliando o dialogo que havia feito com Graciliano Ramos e outros em Literatura e Humanismo (1967), livro que li com enorme interesse. Maravilhavam-me o estilo fluente, a escrita sedutora e a agenda teórica de Carlos Nelson. Ainda se ouviam os ecos do marxismo althusseriano quando devorei O Estruturalismo e a Miséria da Razão, que ele publicara em 1972 também pela Paz e Terra. Um cara que publicara dois livros como aqueles antes dos 30 anos de idade, pensei, merecia respeito! Ainda mais sendo marxista, luckasiano e comunista... e no Brasil.
Mas seria somente em 1976 que eu e Gildo tomaríamos a iniciativa de tentar entrar em contato com Carlos Nelson. Faríamos isso valendo-nos de Nelson Werneck Sodré, com quem conversávamos para organizar a revista Temas, que viria à luz em 1977. Sodré nos informou que Carlos Nelson estava em Paris e eu me propus a escrever para ele. A intenção era convidá-lo para escrever em Temas e na revista Escrita Ensaio, que eu e Gildo editávamos para a Editora Escrita, de Wladir Nader.  Em seu primeiro número, dedicado à cultura brasileira, a revista da Escrita traria um texto de Carlos Nelson.
Começaria ali, naquela primeira de incontáveis cartas, uma amizade que durou até o dia 20 de setembro de 2012, quando Carlos Nelson morreu aos 69 anos.
Trocamos muitas cartas e posso dizer que nossa amizade nasceu pelo correio. Somente nos conhecemos em 1978, quando ele voltou ao Brasil. Mas antes disso já havíamos conversado sobre praticamente tudo, e eu já havia imaginado como é que seria a figura daquele baiano tão simpático, erudito e bem-humorado nas cartas. Quando fui a seu encontro, num pequeno apartamento da Rua Barata Ribeiro, no Rio, era como se já o conhecesse há décadas. Dar-se-ia o mesmo, aliás, com Leandro Konder.
Guardo essas cartas como se fosse um tesouro particular. Elas dizem muito a meu respeito, me ajudam a entender quem me tornei, as opções que fiz, as relações que estabeleci.
Na época em que a correspondência cresceu, havia nos ambientes de esquerda a questão do eurocomunismo. O Partido Italiano e o Partido Português punham-se em lados distintos na Europa, e me lembro da dedicação com que Carlos Nelson me convenceu do avanço que representavam as ideias italianas, que no início eu via com suspeita. Usávamos metáforas para evitar falar em partido comunista e comitê central, pois achávamos que a censura poderia se interessar por nossa correspondência. A ideia era que “as roupas do príncipe moderno” haviam ficado pequenas demais e necessitavam de reforma urgente. Aos poucos, tornei-me tão “eurocomunista” quanto ele. Tornei-me, também, um consumidor voraz dos textos democráticos que o Comitê Central do PCB fazia chegar ao Brasil (via Voz Operária), e que eu sabia contavam com a ajuda de Carlos Nelson, que integrava na Europa o grupo de assessores que Armênio Guedes organizara para modernizar o partido no plano da formulação política. Quando saiu na revista Encontros com a Civilização Brasileira (nº 9, 1979) o artigo de Carlos Nelson sobre a democracia como valor universal, eu já lhe conhecia o eixo e as conclusões, mas nem por isso pude deixar de ver ali um elemento que ajudava demais ao que se fazia no Brasil naqueles anos em termos de luta contra a ditadura. Além do mais, era um texto que atualizava o marxismo político, e o convertia numa ferramenta em condições de dialogar com a ciência política acadêmica, que começava então a se firmar. Pouco depois, ajudei a Editora Ciências Humanas a publicar o volume de Carlos Nelson A democracia como valor universal, que trazia aquele texto seminal e mais alguns outros. Participei ativamente da redação da “orelha” feita por Armênio Guedes, sugerindo acréscimos ou cortes como se fosse um texto meu. Fizemos isso na redação do jornal Voz da Unidade, em São Paulo, que então começava a circular.
Tudo isso é história, mas é sobretudo história de uma amizade.
De final dos anos 80 para frente, mantive intensos contatos com Carlito. Ficava em sua casa quando ia ao Rio. Quando fui para Roma (1984-1985), ele me visitou uma vez e ficou alguns dias em casa, depois de termos participado de um seminário em Ferrara. Passamos a trocar milhares de e-mails assim que nos informatizamos, mais pro fim da década. Conversamos mais e melhor por escrito do que por telefone.
Fizemos muitas coisas juntos. A edição dos Cadernos do Cárcere de Gramsci foi a mais empolgante e importante delas. Toda a ideia da edição, sua concepção, o plano editorial, o estudo que deu origem a ele, tudo isso foi obra de Carlos Nelson. O trabalho braçal, sobretudo de tradução, foi especialmente dele e de Luiz Sergio Henriques. Fiquei com o nome ali por generosidade dos dois, e talvez por um reconhecimento dos largos anos em que trocamos ideias sobre o assunto.
Saímos do PCB quase ao mesmo tempo, ainda que não de modo articulado, por volta de 1983. A motivação teórica e ética era a mesma, os motivos operacionais algo distintos. Em São Paulo, eu estava profundamente entranhado na vida do partido, participava da direção estadual, entrara em choque frontal com o Comitê Central. O grupo carioca em que estava Carlito estava mais no plano intelectual, cultural. A linha geral, porém, era a mesma: o partido bloqueava o esforço de renovação política e teórica de que os comunistas necessitavam. Não dava para ser coerentemente marxista sem uma ruptura.
Nem sempre estivemos do mesmo lado depois que saímos do PCB. Ele, que sempre dizia não saber viver sem um partido, passou pelo PSB, foi para o PT e depois para o Psol, ao passo que eu fiquei fora de partidos. Cheguei a lhe dizer, em tom de brincadeira, que ele trocava demais de sigla partidária porque sempre exigia demais de cada uma delas. A resposta, repetida várias vezes, seria sempre que “eu não mudo de lado, nem de posição, os partidos é que fazem isso”. Eu também gostava de provocá-lo dizendo que o Carlito da democracia como valor universal era muito melhor que o Carlito que teorizava sobre a “contrarreforma” empreendida por FHC e Lula. Vi-me várias vezes defendendo o governo Lula contra ele, que criticava com veemência o PT por ter abandonado a fronteira das reformas sociais e se entregado ao “eleitoralismo”. Divertíamo-nos (a sério) com essas sinuosidades e com o transformismo que parecia afetar os governos de esquerda. Nunca chegamos a conversar a fundo sobre isso, ainda que tenhamos planejado fazê-lo. Nossas diferenças ficaram em estado latente, mais que manifesto. Jamais atrapalharam nossa amizade.
A vida, os compromissos profissionais e as distintas opções políticas ajudaram a fazer com que os contatos diminuíssem entre nós. Inconscientemente, fomos reduzindo as conversações, deixando que elas aflorassem somente quando possível, quase ao acaso. Quando conversávamos, lamentávamos o fato, mas não conseguimos acumular forças para reverter a situação.
Esquecer as diferenças e divergências que tivemos seria desrespeitar sua memória, seria uma ofensa a alguém que sempre valorizou a crítica e a discussão de ideias. Os mais próximos o recordarão como uma personalidade exuberante, dotado de uma humanidade excepcional e sempre disposto a rir de si próprio e das bobagens humanas. Um amigo fraterno. Carlos Nelson Coutinho foi durante mais de 50 anos um comunista e sempre se definiu desse modo. Considerava ter mudado de siglas, mas não de lado. Em um país no qual virar-a-casaca é um fenômeno político de massas, poucos poderão ao final de suas vidas dizer a mesma coisa.