terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Nada será como antes

Caricatura de Fabrício "Manohead" R. Garcia
Nunca antes na história desse país houve um presidente como Luiz Inácio Lula da Silva. Encerrada sua dupla presidência, nada será igual. O país que ele nos deixa é outro, para o bem e para o mal. Nem melhor, nem pior, simplesmente diferente.
Lula fez e desfez, aconteceu, circulou e apareceu, mudou o discurso do poder e o modo como a opinião pública se relaciona com seus governantes, pacificou e articulou os mais distintos interesses sociais, a ponto de sair de cena como uma espécie inusitada de glória nacional. Deixou marca tão forte na política, na administração pública e no imaginário popular que será preciso um tempo para assimilarmos sua ausência.
Lula não teve a grandiosidade fundacional e paradigmática de um Vargas, verdadeiro artífice do Brasil moderno, que ele forjou mediante um padrão de intervenção estatal e um “pacto” ainda hoje vigentes. Não trouxe o charme nem o dinamismo de JK, com sua fantasia industrializante de recriar o país, fazendo cinqüenta anos em cinco. Sequer seria justo aproximá-lo de Fernando Henrique Cardoso, cujo refinamento intelectual fazia com que conhecesse a estrutura do país que pretendeu administrar.
Mas Lula foi diferenciado. A começar do estilo. Falastrão, debochado, emotivo, avesso a protocolos e a regras gramaticais, demarcou um território. Líder metalúrgico, filho humilde do Brasil profundo, encontrou uma fórmula eficiente de dialogar com as grandes multidões, valendo-se da exploração de uma espontaneidade que o levou a ser tratado como um brasileiro igualzinho a você, predestinado a promover a ascensão dos pobres graças à magia de uma identificação imediata. Por ter vindo “de baixo” e carregado a cruz do sofrimento, Lula saberia como atender aos pobres. A precariedade da formação intelectual e a falta de gosto por leituras ou estudos sistemáticos seriam compensadas pela percepção intuitiva das carências sociais. Ponha-se nisso uma pitada de sagacidade e se tem a lapidação de um mito.
O estilo Lula de ser presidente caminhou sempre de braços dados com glorificação e a autoglorificação. Foi assim, aliás, que ele abriu caminho no PT. Soube usar a aura que o cercou no final dos anos 1970, quando despontou como expressão de um “novo sindicalismo” que irrompia numa sociedade silenciada pela ditadura e disponível para se emocionar com a movimentação dos operários do ABC paulista. Criou-se assim o signo do trabalhador que se impõe a políticos, estudantes e intelectuais para fundar um partido diferente, uma política de outro tipo, um novo discurso, um distinto modo de deliberar e agir. O bordão “nunca antes na história”, na verdade, nasceu ali, colando-se à sua trajetória.
O estilo sempre esteve próximo da egolatria e da auto-suficiência, combinadas com uma enorme vontade de agradar a todos. Lula nunca reconheceu erros ou cultivou a modéstia. Sua vida teria transcorrido numa sucessão de eventos positivos, modelados por seu discernimento, seu sacrifício e seu espírito de luta. Outros erraram, companheiros inclusive, ele no máximo foi enganado ou ficou imobilizado por perseguições e preconceitos.
Mas é impossível diminuir o tamanho real do personagem. Num país em que as elites políticas, econômicas e intelectuais, apesar de não terem conseguido governar o país com generosidade, nunca largaram as rédeas do governo, a irrupção de um metalúrgico no Planalto deve ser compreendida sem ira nem ressentimento. Tratou-se de um fato excepcional, desses que podem efetivamente sinalizar que algo novo começou a trepidar no chão da vida cotidiana.
A chegada de Lula ao poder não foi obra do desígnio divino, nem derivou exclusivamente de seu carisma ou mérito pessoal. Muita gente se empenhou para isso e a operação exigiu algum sacrifício. O PT, por exemplo, trocou sua identidade operária pela possibilidade de projetar um operário na cúpula do Estado. Depois de ter se recusado a jogar o jogo da redemocratização do país, o partido passou a defender as regras formais e informais do sistema político. Afastou-se dos compromissos de esquerda. Depurado de combatividade e eixo, ficou refém de seu mais conhecido expoente. Alguma semelhança com o papel desempenhado por Luiz Carlos Prestes no velho PCB não é mera coincidência.
A estratégia foi auxiliada pelos fatos da vida. Houve o governo FHC, que venceu a inflação e lançou a plataforma de uma sociedade mais educada para a racionalidade econômica e mais sensível à necessidade de centralizar a questão social. Lula beneficiou-se, também, da consolidação democrática, da expansão da economia internacional e do que isso trouxe de espaço para o crescimento da economia brasileira. Tudo ajudou a que as políticas públicas ganhassem nova preeminência e incluíssem o combate às zonas de miséria e pobreza que devastam a sociedade.
Exagera-se muito na avaliação que se faz de Lula. Na apreciação do que há de positivo em seu governo, nem sempre se dá o devido valor à equipe técnica e política que o assessorou. O bloco de sustentação e a amplíssima coalizão de interesses que montou não se deveram a uma incomum habilidade de negociador, mas sim à recuperação do Estado como agente, à disseminação de práticas generalizadas de composição parlamentar e a uma “racionalidade” dos próprios interesses, que pactuaram para ganhar um pouco mais ou perder um pouco menos. Uma “nova classe média” apareceu, impulsionada pelas facilidades do crediário, pelos programas de transferência de renda e pela impressionante mobilidade da sociedade. Mas não mudou a face do país.
A presidência Lula se completou com a eleição de Dilma Rousseff, sua maior criação. O “animal político” nascido no ABC mostrou que tem corpo e vontade própria. Já não depende mais de um partido para se afirmar e pode almejar ser fiador do novo governo.
Mas nada é tão simples como parece. Todo governante constrói sua biografia e a lógica da política o impele a buscar luz autônoma. Uma hipótese realista sugere que haverá um suave descolamento entre Lula e Dilma. Disso talvez nasça um governo mais ponderado e equilibrado, capaz de substituir a presença de um líder carismático e intuitivo pela determinação e pelo rigor técnico que são indispensáveis para que se possa construir uma sociedade mais igualitária.
Lula entrou para a galeria política brasileira. Mas não inventou a roda, nem começou do zero. Não fará tanta falta quanto imagina ou imaginam. Sua passagem para os bastidores do sistema, ainda que temporária, poderá propiciar uma lufada de oxigênio na política e na dinâmica social, ajudando-as a adquirir mais espontaneidade e a pressionar por agendas de novo tipo.
Nada será como antes, é verdade, mas ninguém lamentará nem se vangloriará disso. [Publicado no caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 26/12/2010, p. J3].

Seguir em frente

Caricatura: Fabrício "Manohead"  R. Garcia
Ano de eleições gerais nunca termina como os demais. Dezembro surge animado e cheio de promessas, menos como fim de período e mais como porta de entrada de um novo ciclo, carregado de esperanças. Há dúvidas e incertezas também, é evidente, mas o clima é de reveillon. O tradicional balanço do que se fez e passou é substituído pela excitação de decifrar o que vem pela frente.
A movimentação frenética dos vencedores é reveladora. No curto espaço de tempo que separa a apuração dos votos da posse dos novos governantes, atiram-se todos na disputa por cargos, na formatação do ministério e dos secretariados estaduais, na distribuição das fatias nobres e das migalhas do poder. O país assiste a tudo parado, com mãos e bocas travadas, entre o indiferente e o curioso. A hora é dos políticos, não dos cidadãos. É quando se destacam os mais hábeis, os mais insistentes, os mais persuasivos, quando fica claro o real poder de fogo das coalizões que irão governar.
O momento também ajuda a que se perceba quem coordenará as ações dos novos governos e decidirá sobre a vida e a morte, isto é, terá a ultima palavra. No plano federal, a pergunta reverberou durante todo o mês: dado o protagonismo e o brilho acumulados por Lula, que papel exercerá ele no governo de Dilma Rousseff e, portanto, nas definições que precederão seu inicio efetivo? Sairá de cena ou permanecerá nos bastidores, influenciando, pressionando, "aconselhando"? Terá cargo compatível com sua estatura real ou presumida? Conseguirá se manter em evidência, de modo a se valorizar como candidato para 2014? Agirá como "reserva moral" da nação ou como "partidário", como homem público ou como cidadão comum?
A resposta a essas questões respinga evidentemente no que se imagina estar reservado à presidenta Dilma Rousseff. Terá ela força suficiente para se descolar de seu antecessor e provar que uma criatura pode muito bem ter vida autônoma perante seu criador? Imprimirá marca pessoal a seu governo, seja em termos de estilo e linguagem, seja em termos de políticas e escolhas?
Estamos há duas décadas vivendo um ciclo virtuoso no Brasil. Sua tônica tem sido a continuidade, não a ruptura ou a mudança de padrão. O segundo Lula deu maior visibilidade à questão social -- ainda que não propriamente à política social -- beneficiado pela recuperação da racionalidade econômico-financeira alcançada por FHC. Ambos contribuíram para ajustar o Estado e imprimir mais profissionalismo à administração pública. Projetaram o país no mundo, dando nova consistência à política externa. Diatribes partidárias à parte, trabalharam na mesma direção e se complementaram. Não fizeram mais porque se deixaram consumir por uma obstinação mal calibrada de acumular recursos de poder. Os dezesseis anos de FHC e Lula só não foram excepcionais porque seus principais operadores -- o PSDB e o PT -- não estiveram à altura do momento.
Nada indica que esse ciclo esteja para se romper, ainda que já se possam notar sinais de saturação. A sociedade quer mais, necessita de governos melhores, que se mostrem mais sensíveis às suas demandas e expectativas. Embora tenhamos progredido bastante, continuamos toscos na arte de governar. Faltam-nos estadistas, lideranças respeitáveis, cidadãos ativos e partidos qualificados para estruturar as correntes de opinião da sociedade e delinear um rumo para o país. Carecemos de políticas públicas mais criativas, especialmente na área social, que viveu os últimos anos à sombra da benevolência e das coreografias presidenciais e ameaça se acostumar a isso.
A partir de 2011, com uma presidenta que não poderá repetir o figurino Lula e será obrigada a inventar um guarda-roupa afinado com sua personalidade e sua biografia, tenderão a ganhar preeminência dois elementos que ficaram secundarizados nos últimos oito anos. A política, por um lado, será mais exigida e os políticos precisarão mostrar mais seriedade e competência. O Brasil está mais complexo e depende, agora, de operações que articulem seus grupos, classes e interesses no plano da representação política, sem pagar preço alto demais para as coalizões de conveniência. Por outro lado, não haverá nenhum encantador de serpentes no Planalto, mas uma governante treinada para agir de modo pragmático e com menos propensão a querer agradar a todos. Uma dose extra de racionalidade técnica poderá impregnar seu governo, com impactos no desenho das políticas e no discurso com que se buscará legitimá-las.
Com mais política e mais racionalidade técnica, maior espaço haverá para a recuperação de alguns fios que se perderam no decorrer dos últimos dezesseis anos. Fios que não se romperam, mas que permaneceram desatados, atrasando o desfecho de certos processos vitais. O fio do desenvolvimento sustentável, por exemplo, que foi bloqueado pela fúria de um desenvolvimentismo mal compreendido. O da justiça social, que não progrediu satisfatoriamente e não se aproximou com firmeza dos parâmetros dos direitos de cidadania, confundindo-se com assistencialismo e generosidade. O da democracia política, que embora tenha se consolidado, ainda deixa a desejar, seja porque não dispõe de uma boa cultura política, seja porque carece de instituições atualizadas e não tem sido embebida do necessário protagonismo social.
Desenvolvimento sustentável, justiça social e democracia política formam o tripé mágico que pode, mais que as habilidades e os atributos de um líder acima do bem e do mal, abrir caminho para a consecução da etapa mais importante da modernização capitalista brasileira, que conduzirá o país ainda marcado pelo passado colonial, pela dependência econômica e pela mediocridade política para a condição de Estado fundado em um livre pacto de cidadãos.  
São conjecturas e especulações de um dezembro aberto para o futuro. Adequadas, portanto, ainda que não necessariamente corretas e factíveis.
Bom ano novo a todos. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/12/2010, p. A2].

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Perguntas retóricas para um fim de ano intrigante


Lula sai glorificado da Presidência por que fez um bom governo, por que é um bom comunicador, por que conseguiu desagradar a poucos, por que conseguiu estabelecer um vínculo de identificação com as massas, ou pela somatória disso tudo e mais um pouco?
Sempre impliquei com a expressão "populismo". Com o passar do tempo, passei a achar que a implicância era dura demais. A expressão pode ganhar o status de conceito, desde que reduzida ao mínimo lógico: estilo de liderança que dispensa mediações institucionais vigorosas e busca permanente interlocução direta com as massas. Desse ponto de vista, é um estilo que se dissemina com facilidade hoje em dia, flutuando sobre os escombros  institucionais do Estado democrático, a desorganização das estruturas de classe e a natureza sempre mais midiática da política. Hoje me pergunto: o populismo atual é a maturação de um estilo que merece respeito ou deriva tão-somente da ruptura dos laços entre partidos e sociedade? É uma falha sistêmica ou somente a lapidação de um procedimento tão antigo quanto andar prá frente?
O destaque e o prestígio de Lula são ou não são proporcionais à desmoralização e à desimportância dos partidos políticos? Teriam acontecido se acaso os partidos continuassem a ser estruturas consistentes, com personalidade própria e capacidade de decidir coletivamente?
Lula deixará saudades ou dentro de alguns meses não será mais que uma lembrança em processo de desmanche?

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Um ano para Nabuco


Foi um centenário para não se botar defeito. 2010 reservou atenção especial a Joaquim Nabuco (1849-1910), um dos principais pensadores do Brasil profundo e formulador sofisticado de uma importante vertente de explicação da história do país.

Certamente por ter pesquisado bastante o pensamento político de Nabuco, em torno do qual fiz meu doutoramento em 1983, e beneficiado pelo lançamento da segunda edição do livro que dediquei a ele (O encontro de Nabuco com a política. As desventuras do liberalismo. Paz e Terra), pude participar de diversas comemorações. Fui a muitos seminários, congressos e lançamentos. Re-visitei o autor com que convivo há tanto tempo e consolidei algumas das minhas teses sobre ele. Reformulei algumas outras também, felizmente.

Nabuco ocupou grande espaço na imprensa escrita, foi objeto de várias reportagens televisivas, de documentários e de muitas publicações. No dia 5 de dezembro, Ângela Alonso fez uma ótima retrospectiva da movimentação editorial que o acompanhou. Está na Ilustríssima, da Folha de S. Paulo. A constatação de Ângela é inquestionável: a presença do pensamento de Nabuco "transcende o teor protocolar da efeméride e se impõe como chave de interpretação do Brasil do século 21". Muito bom o balanço.

Também vale a pena ler o dossiê por ela organizado para a revista Novos Estudos, do Cebrap, que pode ser acessado aqui, e do qual participei com um texto que passarei a disponibilizar  nesse blog, na seção de artigos e ensaios.

Dos diversos comentários que foram feitos ao meu livro, destaco a excelente resenha crítica elaborada por Bernardo Ricupero na Revista Brasileira de Ciências Sociais, da ANPOCS. (Leiam aqui.) Dialogando de forma fina com o argumento básico do livro -- Nabuco teria estado na "vanguarda da revolução burguesa" que se ensaiava no Brasil do final do século XIX --, Bernardo fornece um rigoroso panorama da pesquisa empreendida. Apesar disso, não se furta a observar que o livro "também tem suas oscilações". Apesar de lidar com maestria com os diferentes Nabucos, mostrando a unidade básica subjacente a seu pensamento e a sua atuação, o livro "não deixa de ter seu Nabuco preferido: o de Nogueira é especialmente o Nabuco da campanha abolicionista". O que não é, na sua visão, propriamente um defeito, já que o autor de O abolicionismo "foi, como poucos, capaz de perceber os traços constitutivos de um país como o Brasil. País alicerçado na escravidão, instituição cuja influência continua a se fazer sentir nos dias que correm, principalmente na dificuldade de se implantar plenamente a cidadania entre nós. Este é, não por acaso, o principal motivo para que Nabuco continue a nos interpelar".

Uma bela resenha, dessas que fazem a gente se convencer de que valeu a pena reeditar o livro. 

domingo, 5 de dezembro de 2010

Morros, guerras e paradigmas

A operação militar no Complexo do Alemão continua causando perplexidade, atenção crítica e repercussões variadas. Não poderia ser diferente. Há muita coisa inédita nela, a começar do esboço de um novo tipo de vínculo entre forças armadas e população, parte importante do que veio a ser considerado o sucesso da operação. Efeito colateral disso foi a recuperação, por parte dos militares, de uma imagem positiva deles próprios perante a sociedade e o Estado. Saídos manchados de sangue dos anos de chumbo da ditadura de 1964, os militares estão agora em condições de repor de forma plena o papel que desempenharam em muitos momentos da história, um papel muito mais de construtor da nacionalidade e de defesa do território do que de fiador da autoridade e do arbítrio estatais. É uma oportunidade e tanto, pronta para ser efetivamente aproveitada.

Um saudável e importante debate seguiu-se aos momentos mais dramáticos da ocupação, quando prevaleceu a passionalidade imagética da cobertura televisiva, em especial daquela modelada pelo padrão Globo. Estudiosos e especialistas estão hoje em atividade, apurando o foco de uma crítica particularmente fundamental, sem a qual os avanços terão muito mais dificuldade para ocorrer.

Luiz Eduardo Soares, um dos principais analistas da questão da segurança pública e da violência urbana, postou em seu blog um excelente texto sobre o tema, que é de leitura indispensável. "A crise do Rio e o pastiche midiático" (veja aqui) reitera a profundidade e as hipóteses com que aborda a questão, sobretudo aquela que insiste no intrincado e espúrio relacionamento de cumplicidade entre traficantes, criminosos e policiais: "O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia", observa. É algo para se destacar como plataforma de reflexão e de intervenção pública. Foi esse, aliás, o centro da excelente entrevista que Luiz Eduardo concedeu ao programa Roda Viva, no último dia 29/11, igualmente disponível no blog.

A edição de hoje, domingo, do Estadão, repercute com riqueza e competência toda a operação. Fernando Henrique Cardoso, num interessante texto publicado na página 2, defende a necessidade de uma integração positiva entre sociedade e Estado para que se possa seguir em frente: "Se agora no Rio de Janeiro as ações combinadas das autoridades políticas e militares abriram espaço para um avanço importante, é preciso consolidá-lo. Isso não será feito apenas com a presença militar, a da Justiça e a do Estado. Este está começando a fazer o que lhe corresponde. Cabe à sociedade complementar o trabalho libertador". A sua é uma posição polêmica, mas precisamente por isso corajosa e estimulante: "Enquanto houver incremento do consumo de drogas, enquanto os usuários forem tratados como criminosos, e não como dependentes químicos ou propensos a isso, enquanto não forem atendidos pelos sistemas de saúde pública e, principalmente, enquanto a sociedade glamourizar a droga e anuir com seu uso secreto indiscriminadamente, ao invés de regulá-lo, será impossível eliminar o tráfico e sua coorte de violência". Vale muito a leitura (veja aqui).

Na mesma edição, o caderno Aliás publica dois excelentes textos de Francisco de Oliveira ("A surda guerra oculta") e de Renato Lessa ("Paradigma do voo rasante", reproduzido do seu blog). Ao passo que o primeiro lembra, com propriedade, que "sob o mantra do combate ao crime organizado, o que se oculta é uma surda guerra de classes", Lessa joga luz sobre a "adrenalina cognitiva" despejada sobre os cidadãos pelo "paradigma Globocop", composto de "um narrador onipresente, dotado da capacidade de tudo prescrutar, e de uma rede de intérpretes fiéis e fidelizados". Trata-se de um paradigma que "opera no vácuo e na ausência de instituições de controle social sobre os agentes do poder executivo, para não falar da rarefação do mundo da representação política". Muito bem sacado.

No Aliás, há ainda uma entrevista muito esclarecedora com a antropóloga Mariana Cavalcanti ("Um espelho no morro").

Em suma, não falta material para que se trate a questão com seriedade e se a insira de modo sustentável na agenda democrática do país.