segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Os dez mais das eleições de 2014




Não tenho particular predileção por listas. Mas, além de achá-las divertidas, penso que nos ajudam a organizar ideias, fazer planos e checar hipóteses. Não explicam nada, só sugerem. Dão pistas para apostas que poderão ser feitas ou revistas.
Reveladas as urnas de 2014, que mostraram uma encarniçada disputa política no país, pode-se concluir que entre mortos e feridos sobreviveram todos. Nem todos são vencedores, mas muitos derrotados se fortaleceram e alguns vitoriosos ficaram em pior posição do que os que perderam. Coisas da política.
Cada um de nós pode fazer dezenas de listas. Com os melhores e os piores, os memes mais difundidos, os tuítes top-ten, os modelitos mais bacanas ou mais cafonas dos candidatos, as melhores e as piores frases, as gafes mais emblemáticas, as acusações mais torpes, e assim por diante.
No meu caso, a lista é bem simples: elenca os que melhor se saíram nas eleições, tendo em vista o desempenho efetivo nas urnas, o “capital político” acumulado e as possibilidades futuras de influenciar o processo político nacional.
Vai lá:
1.    João Santana. Porque deu nó em pingo d’água e conseguiu vender a ideia de que a política é uma mercadoria que se compra quente e com pimenta.
2.   Dilma. Porque mostrou resiliência e venceu de uma só vez a desconfiança dos petistas, os manifestantes de junho de 2013 e os pedidos de “volta, Lula”.
3.    Aécio. Pela resistência tenaz, pela frieza e pela boa imagem.
4.    Bolsa Família. Pela contribuição eleitoral sem igual.
5.    Os petistas. Porque foram à luta.
6.    Os tucanos. Porque finalmente foram à luta.
7.    Fernando Pimentel. Porque ganhou Minas.
8.    Geraldo Alckmin. Porque saiu da seca e ajudou a dar 64% dos votos paulistas para Aécio.
9.    Lula. Porque só mostrou a cara nas últimas semanas, desceu do trono de ex-presidente e protagonizou os piores episódios de baixaria da campanha.
10.  Marina. Porque mostrou faro e timing político ao apoiar Aécio, mas não conseguiu liderar e unificar o discurso e o voto da galera da Rede.

sábado, 25 de outubro de 2014

Amanhã há de ser outro dia




Termina amanhã, domingo, aquela que muitos consideram a mais virulenta e imprevisível eleição presidencial da história brasileira. O que deveria ter sido uma festa da democracia arrastou-se como um drama alimentado por perfídias, acusações sórdidas e tramoias de destruição pessoal, banhado por uma taxa de intolerância e sectarismo difícil de ser esquecida. A gangorra das pesquisas mostrou um eleitorado dividido e inseguro, o bate-boca nas redes revelou uma cidadania sem educação política.
Não foi a primeira eleição a se valer de ofensas e jogo sujo no Brasil recente. Em 2014, porém, a campanha negativa chamou atenção sobretudo pela intensidade e pela reverberação imediata, movida a internet. Plantados de forma cirúrgica, boatos e difamações cruzaram a arena da disputa, repercutiram com rapidez e dificultaram que o debate eleitoral ganhasse dignidade política.
A campanha negativa também se destacou por ter sido largamente empregada por um partido, o PT, que sempre se apresentou como alvo preferencial de ataques preconceituosos feitos pela mídia e pelas elites. Por ser governo e possuir muitos recursos políticos, o PT deu o tom, determinando o ritmo e o estilo da corrida eleitoral. Escolheu as armas do combate, pagando um preço por isto. Deu corda a um “antipetismo” que não lhe é favorável, sofreu derrotas em estados importantes e viu sua bancada no Congresso Nacional sofrer séria redução. Mostrou-se aquém de uma esquerda democrática moderna, capaz de decifrar o capitalismo contemporâneo e a sociedade tecnológica que desponta. Terá dias ruins pela frente.
Mas não foi somente o PT a errar e a perder. Perderam e erraram todos, sem exceção, a provar que o sistema político ruiu e que novos arranjos partidários se tornaram urgentes. Sem eles e sem uma boa reforma, a política continuará colonizada pelo econômico e ainda mais exposta a escândalos, os governos permanecerão medíocres e as oposições democráticas, impotentes.
Por que chegamos a este ponto? Algo ocorreu para que uma importante mas rotineira  competição eleitoral, na qual está dada a possibilidade de alternância no poder, se convertesse em uma batalha campal sem parâmetros éticos e incapaz de cumprir o que se espera de um debate presidencial: apresentar ideias e propostas para o futuro.
Ficaremos um bom tempo a nos perguntar como permitimos que isto acontecesse.
Águas que corriam juntas, ou paralelas, se turvaram e se separaram; amigos viraram inimigos; pais e filhos deixaram de discutir política em casa; confrontos físicos substituíram o debate de ideias, lideres políticos nacionais se transformaram em caixeiros viajantes da infâmia, o engajamento ideológico se converteu em alavanca de estigmatização.
Foi um período assustador, vivido sob o signo do “confronto político” e da morte aos inimigos, numa temperatura elevada ao extremo sem que houvesse a rigor nada que a justificasse, a não ser uma cobiça desmesurada pelo poder, o despreparo para processar divergências, alguns fantasmas ingênuos e certas crenças toscas. Apoiadores convertidos em justiceiros, teleguiados por centrais de desinformação, fanatizados por suas convicções, sem tolerância, sem critério, numa flagrante demonstração de rusticidade política e de ausência de perspectiva cívica. Juntos, abraçados e misturados, ajudaram a promover uma inédita guinada da sociedade para a direita mais bestial, a cavalo de uma leitura falsa da realidade brasileira, qual seja, a de que o País estaria prestes a ser “bolivarianizado” ou às portas de uma contrarrevolução que roubaria a comida dos mais pobres.
Se este padrão prevalecer, o que esperar do próximo ciclo governamental? Haverá nele disposição, serenidade e força persuasiva para trazer os brasileiros para a política democrática e o debate de ideias? Seja quem vença amanhã, terá equilíbrio e generosidade para trocar o toque marcial pela pomba da paz, chamando a sociedade para um convívio mais fraterno?
Vença quem vencer, a vida continuará, mais forte do que a indigência dos políticos, a frouxidão dos partidos, a vacuidade dos discursos, a caça às bruxas. Seguirá mostrando que a política precisa mudar. Com reformas institucionais, renovação cultural e refundação partidária, mas também com um gigantesco esforço de educação política, que dê aos jovens sobretudo, mas não somente a eles, uma chance de entrar com o pé direito no fascinante e perigoso universo do poder e do Estado.
Os políticos foram patéticos nos debates, vulgares nas maneiras e nos discursos, fraquíssimos em proposição, cínicos demais na capacidade de mentir, tergiversar, iludir e sofismar. Convidaram a sociedade ao rebaixamento cultural. Em algum ponto da estrada, serão castigados. O vencedor do segundo turno herdará um reino estagnado, manchado pela corrupção, tensionado pela mentira e cujos habitantes acordarão segunda-feira indiferentes à alegria sem graça dos vencedores e à tristeza calculada dos perdedores, pouco ligando para os excessos e a bizarrice daqueles que se apresentaram como salvadores da Pátria. Amanhã será outro dia, impulsionado pela esperança e pela vontade de mudar.
O próximo ocupante do Planalto governará um País fendido e repleto de desafios. A governabilidade tenderá a ser mais difícil. Precisaremos de muita política com P grande, para que se possa viabilizar a pacificação dos espíritos e a ampliação das possibilidades de governança democrática. A ninguém deve interessar a generalização da “guerra civil” que hoje já existe de modo focalizado. Todos, políticos e cidadãos, vencedores e perdedores, terão de manifestar maior desejo de fiscalização dos governantes e de recomposição social. Será preciso alcançar um novo pacto de convivência.
Da combinação de discernimento político e disposição participativa dependerá bastante o futuro do Brasil que sairá das urnas de amanhã. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/10/2014, p. A2].

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

A decadência ética e as novas regras do jogo



Arianna Favaro. Le città invisibili 1

Prestes a terminar a batalha campal que, ao longo das últimas semanas, jogou o país numa tosca e virulenta discussão eleitoral, ponho-me a pensar retrospectivamente.
Fui insistentemente monitorado. Talvez por não ter temido a exposição pública, talvez por ter muitos conhecidos, talvez porque me atribuam algum poder de influenciar pessoas e formar opiniões. Também há muita inveja e mesquinharia entre as pessoas, mesmo entre as que se julgam mais lúcidas e clarividentes. Algo disso sempre respinga nos relacionamentos e contatos, ou no julgamento que uns fazem dos outros.
Não me senti de modo algum “perseguido” ou “patrulhado”. Várias outras pessoas, pertencentes aos dois lados da pendenga, registraram a mesma situação. Além do mais, comunistas têm grande capacidade de resistir a este tipo de cerco. Cresci nele, vivi boa parte da vida como minoria dentro da esquerda. Nunca me atrapalhou em nada. Longe de mim, portanto, posar de vítima.
O ocorrido foi somente parte de um jogo que abandonou regras procedimentais básicas, fixadas pela ética pública, em troca de ganhos marginais de visibilidade e, quem sabe, de alguns votos. Não frequento o “coitadismo”. Para mim, coitados são sempre os que batem e atacam.
Agora, quando o rescaldo da batalha começa a ser contabilizado, penso que os registros devem ser feitos, ao menos para que se conheçam os novos termos do jogo político e cultural que ameaçam passar a prevalecer entre nós. A decadência ética e política a que assistimos na campanha eleitoral de 2014 não deveria ser confundida com a choradeira lamurienta dos que não têm firmeza suficiente para suportar as “verdades” da luta política. É um tema que teremos de discutir daqui para frente. Ele não poderá ser largado no escaninho das reclamações, terá de ser procurado no setor de achados e perdidos.
Duas manifestações foram particularmente agressivas e antidemocráticas. Uma pessoa me fez saber que está com “vergonha de ter sido sua aluna”, ao passo que outro ameaçou queimar todos os meus livros. Ambos deixaram transparecer uma fúria assustadora, com a qual nunca tive de lidar, nem sequer durante a ditadura militar. Houve quem prometeu “reler meus livros” para descobrir em que degrau da escada eu tropecei de modo tão vergonhoso. Arrogantemente, outros “lamentaram” minha posição, que teria sido, para eles, uma “revelação” associada a uma espécie de troca de pele, a uma metamorfose provocada por excessiva exposição aos raios e eflúvios do grande capital. Uma alma caridosa disse ter pena de mim, um inflexível revolucionário disse que eu não passava de um “intelectual de aluguel”, outro lembrou que sempre tive uma “alma tucana” que finalmente teria vindo a público. E não faltou quem sugerisse que, por nunca ter falado em gênero e sexualidade, eu certamente seria um macho-alfa a serviço da submissão da mulher.
Foi cansativo, mas valeu a pena. Passei a limpar minha rede de contatos, que estava artificialmente inchada. Comecei a afastar e a bloquear quem não interage comigo, quem agride terceiros só pelo prazer de me agredir, quem aparece para ironizar, zoar ou debochar, quem ofende, mente ou planta boatos, os exibicionistas, os grosseiros e os chatos, os torquemadas que se limitam a julgar e a vomitar sentenças. Não perdi “amigos”, longe disto. Se algum saldo positivo vier a sair destas eleições ele incluirá, em lugar de destaque, a oportunidade que todos tivemos de aclarar os campos em que nos encontramos, os limites que estamos dispostos a suportar, as maneiras que escolhemos para discutir política e ideias, os valores que pretendemos cultivar, o quanto achamos que gentileza, respeito e bons modos devem integrar o relacionamento entre humanos.
Deveríamos todos – cidadãos, militantes, apoiadores, analistas, jornalistas, políticos, intelectuais – começar a fazer uma reflexão. A quem pode interessar esta inflamação irracional que inundou as redes e está chegando às ruas? Os que se batem entre si são democratas de diferentes colorações, com algumas ideias distintas e igualmente preocupados com os destinos do país. Têm tradições que devem ser respeitadas e que podem fornecer larga base comum para cooperações e trabalhos conjuntos. Integram partidos diferentes, que ao lutarem pelo poder estão a extrapolar, impulsionados por campanhas que perderam o senso das medidas, das proporções, do razoável.
O confronto hoje não é entre "nós" e "eles", mas entre "nós" e "nós". O prosseguimento deste clima de sectarismo e intolerância não pode ajudar à democracia, nem emprestar qualidade a ela. Um presidente será eleito no domingo, mas segunda-feira a vida continuará. Quem vencer governará um país bastante dividido e temos de torcer para que ele, seu governo, os partidos e o Congresso se esforcem no sentido de promover uma recomposição. Quando mais deixarmos que a irascibilidade, a violência verbal, a acusação gratuita e a agressão tomem conta de tudo, mais difícil será para quem vier a sair vitorioso das urnas. E pior será para todos nós.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Por que falar em “esquerda democrática”?


Tarsila do Amaral, Operários. 1933

A época em que vivemos flerta o tempo todo com a ideia de que esquerda e direita seriam conceitos que já não teriam sentido. Não são poucos os que dizem que eles não servem mais para explicar os embates políticos e os alinhamentos ideológicos.
Em parte por causa disto e em parte porque o circuito político e intelectual está bastante confuso hoje em dia, o surgimento de um manifesto falando em apoio da “esquerda democrática” à candidatura de Aécio Neves provocou alguma celeuma. (O manifesto pode ser encontrado e endossado em www.esquerdademocratica.com.br).
A celeuma encontrou duas traduções típicas nas redes.
Uma diz que seria inapropriado (os adjetivos usados não foram bem este) entender Aécio como um político de esquerda, já que ele seria a quintessência do “neoliberalismo”. Os que assim falaram, confundiram apoio com identificação. O manifesto jamais tratou Aécio como sendo um político de esquerda, mas somente procurou expressar o apoio que a ele dão alguns democratas e pessoas de esquerda que não se sentem representadas pelo PT e que pensam que há outras esquerdas fora do circuito petista. São coisas bem diferentes.
Deixemos de lado, por ora, a questão de saber se se deve ou não definir o eventual futuro governo Aécio como “neoliberal”. Observo, porém, que um governo se define de dois modos: por seu programa, compromissos e aliados, e por seu desempenho efetivo. O governo Aécio não começou, sequer se sabe se será eleito; portanto, não dá de antemão para dizer que será "neoliberal". Nem mesmo se apelarmos para outros governos apoiados pelo PSDB, pois eles existiram há muito tempo (1995-2002) e o mundo e as circunstâncias mudaram demais. O próprio neoliberalismo já não é mais um horizonte razoável hoje.
Quanto ao programa, aos compromissos e às alianças feitas em torno de Aécio, não consigo ver em que elas possam ser definidas como "neoliberais". Com o perdão da simplificação: neoliberal hoje virou um chavão, usado para tentar desqualificar certas posições. Não houve nada mais "neoliberal" no Brasil do que o ciclo petista, que facilitou tudo para o grande capital financeiro e o mercado, por exemplo, ainda que não tenha feito somente isto.
A segunda tradução explorou a ideia de que esquerda e direita não fazem mais sentido, que seria melhor falar em “progressistas e conservadores”, por exemplo. A esta ponderação, com a qual não concordo, tenho respondido da seguinte maneira.
O conflito político que conta, hoje, entre nós no Brasil, é o conflito entre duas formas de esquerda. Uma delas, a do PT, precisa por a mão na consciência, se rever e se reformular, pois decaiu praticamente ao rés do chão. Hoje, é difícil dizer que o PT represente uma esquerda avançada. Não sabemos o que ele pensa, exceção feita à disposição de continuar distribuindo bolsas. Em seus governos e em seus documentos, as reformas estruturais são proclamadas, mas não são levadas à prática, nem desenvolvidas teoricamente. Nele, não há mais valores democráticos profundos, de que são feitas as esquerdas. Não há republicanismo, em que pese Dilma usar esta expressão ad nauseam, o que pode ser mais reflexo de uma carência do que de uma convicção.
A “outra” esquerda é na verdade um universo plural. Seria mais certo falar em “outras” esquerdas. Entre elas, a esquerda democrática é a que se contrapõe de forma mais típica à primeira esquerda. Pretende, na verdade, atuar para estimular o PT a rever procedimentos e a se reencontrar com sua própria história. Nesta segunda esquerda, portanto, há lugar para setores do PT, assim como para do PSDB, para comunistas, liberal-socialistas, democratas liberais, socialistas e democratas cristãos, entre outros integrantes do que se poderia ver como polo “progressista” da sociedade.
Não penso que PT e PSDB possam ser tratados pela dicotomia esquerda e direita. Um não está "mais à esquerda" ou à direita do outro, a não ser em termos de agitação e propaganda eleitoral. Os dois pertencem ao campo da socialdemocracia, portanto da “centro-esquerda” ou da esquerda democrática.
O que vem a ser isso?
Comecemos pela esquerda: “amplo e diversificado universo de homens e mulheres que defendem a democracia política, o pluralismo e a justiça social como base para uma sociedade mais igualitária, fraterna”. Trata-se, pois, de uma posição que pensa que o capitalismo precisa ser politicamente regulado, a renda precisa ser mais bem distribuída, a propriedade privada desconcentrada, as políticas sociais incrementadas e o Estado, democratizado e impregnado de participação de massa, e assim por diante.
Este universo, por ser plural, comporta diferentes gradações e tipos. A esquerda democrática é um deles. Ela seria a esquerda que não abre mão da democracia, não faz concessões neste terreno, trata a democracia como valor universal e valoriza suas regras procedimentais, seus valores e sua cultura. A revolução que esta esquerda democrática concebe é reformista, não "revolucionária": é um movimento progressivo de transformações estruturais. Precisamente por isso, ela é bem mais flexível nas alianças e mais abrangente na cultura política, área na qual admite, por exemplo, que os liberais democráticos têm um papel importante a desempenhar na construção da igualdade social. Norberto Bobbio, por exemplo, foi um deles. Alguns partidos integram esta corrente no Brasil: PSB, PSDB, PPS, PV, Rede e parte do próprio PT.
A esta esquerda democrática (que alguns preferem chamar de centro-esquerda, a meu ver equivocadamente), opõe-se aquilo que, por contraste, poderia ser chamado de “esquerda não democrática”, entendida não como posição "autoritária", mas como corrente que não valoriza a democracia em termos de cultura e sistema de regras e procedimentos e que acredita que a revolução deve ser feita "revolucionariamente", mediante manifestações de força, lutas encarniçadas de classes e críticas frontais ao capitalismo. Seria algo que, no Brasil, teria abrigo em partidos como PSTU e PCO, em movimentos como o MST e em setores minoritários do PT. Haveria também o PSol, que se apresenta como "esquerda coerente" mas que ainda não deixou muito claro o que entende precisamente por isto.
Um traço comum a estas várias expressões da esquerda revolucionária – que são, diga-se de passagem, inteiramente dignas e legítimas –, é a convicção que cada uma delas tem de que seria a única esquerda verdadeira e de que todas as demais seriam farsas pequeno-burguesas ou expedientes de capitulação. Neste traço comum há, evidentemente, um componente de arrogância e autossuficiência, que aparece quase sempre de forma verborrágica e histriônica. Este componente, em vez de ajudar, atrapalha a afirmação das esquerdas, pois funciona como usina de disseminação de uma mentalidade, de uma cultura política, de um modo de expressão que opera em favor da diferenciação radical, da separação e da oposição entre os democratas, contribuindo para aumentar a fragmentação política e luta entre as esquerdas.
O PT tem uma história socialdemocrática, mas se desencontrou dela nos últimos anos. Em vez de fortalecer seus laços com a esquerda como um todo, preferiu se entregar ao PMDB. Em vez de valorizar a cultura comum das esquerdas (democracia, reforma social, tolerância, busca de direção intelectual, esforço para educar politicamente a população, atitude republicana na condução do Estado), optou por se dedicar à conservação do poder. Afastou-se assim da sociedade e da esquerda, perdendo autenticidade. Talvez por isso a militância petista tenha desaparecido, só voltando a ressurgir em períodos eleitorais.
O PSDB, hoje, mais por desejos da Fortuna do que por virtù própria, ressurgiu no bojo de uma aliança democrática que poderá dar a ele o norte reformador que andou meio adormecido nos últimos anos. Esta aliança esboça hoje a formação de um polo recomposto e alargado, no qual podem ser depositadas algumas importantes fichas democrático-sociais. Se esta aliança crescer e se reforçar, a trajetória da esquerda no Brasil tenderá a ser mais equilibrada e produtiva.