domingo, 29 de dezembro de 2013

O ano que não terminou




Um ano como 2013, que conheceu protestos do porte dos de junho, não poderia terminar como começou.
Não poderia, mas à primeira vista foi o que aconteceu.
As ruas de junho falaram muitas coisas. Suas vozes verbalizaram uma insatisfação que não se imaginava presente no país, cantado em verso e prosa como em franco processo de expansão da renda e do consumo, dando passos de gigante para frente e prestes a se converter em um dos grandes do mundo. Potencializadas pelas redes sociais, turbinadas pela violência policial e pegando a todos de surpresa, as vozes fizeram-se ouvir. Os prefeitos das capitais cancelaram os aumentos da tarifa do transporte urbano, um dos estopins da mobilização. A presidente convocou cadeia de rádio e TV, disse “estou ouvindo vocês” e acenou com cinco pactos políticos para começar a responder às ruas. O gesto inteligente revelou iniciativa mas pouco produziu de concreto. Dele sobrou somente o Programa Mais Médicos, que se ajustou bem ao cenário nacional e ajudou o governo federal a recuperar parte da popularidade perdida. O programa, porém, que poderia ter sido o carro-chefe da recuperação do SUS, ficou no meio do caminho. Queimou-se uma oportunidade.
É fácil criticar os governos e constatar que eles não souberam reagir às ruas de junho. Mas os governos, que têm seus déficits próprios – técnicos, políticos, operacionais –, são estruturas integradas ao sistema político, dependentes dele, não tendo como ser muito melhores do que ele. E, no Brasil, o sistema é ruim demais. Falta-lhe quase tudo que se espera de um organismo que existe para funcionar como esteio da democracia política e ponte pela qual trafeguem e sejam processadas as demandas e aspirações populares. O sistema prejudica os governos, bloqueando eventuais predisposições que gestores possam ter de abrir canais de negociação com a sociedade.
O padrão, o volume e a forma de expressão das demandas também determinam a qualidade das respostas governamentais. Houve um pouco de tudo nas ruas de junho, mas não houve quem dispusesse as diferentes reivindicações numa agenda que pudesse ser traduzida politicamente e determinasse as ações governamentais. O próprio movimento das ruas não mostrou particular capacidade ou interesse de dialogar com o poder: denunciou o que não está bom, mas não indicou caminhos para se mudar. Teve caráter mais explosivo e espasmódico do que construtivo. A velocidade e a expressividade foram sua marca, não a paciência ou a “guerra de posição”. Ao se depararem com um muro de silêncio no Estado, os protestos se dispersaram, e o que sobrou acabou por se confundir com escaramuças mais agressivas e violentas.
2013 mostrou que as relações entre o Estado (governos e sistema político), o mercado e a sociedade civil estão carentes de encaixe e de coordenação. O poder de agenda de cada um desses polos é desigual: sobra no mercado, falta no Estado e na sociedade civil. Há mais competição e luta pela vida do que política. Não espanta que tudo pareça solto, sem rumo, fora de controle.
Passado o primeiro choque, o sistema político se recompôs e o país submergiu no ritmo irritante de antes. Mostrou-se perigosamente indiferente às ruas, como se estivesse a alimentá-las e a pedir que voltem a agir. Não dialogou com elas, não decodificou seus sinais, não demonstrou qualquer capacidade de iniciativa e interação. Deu-se o mesmo com os governos. O mundo institucional permaneceu fechado ao mundo social.
Os motivos, as pulsões e as circunstâncias que levaram milhões de brasileiros às ruas em junho permanecem intocados. Na ausência de respostas do sistema político, de providências governamentais e de ganhos organizacionais dos próprios manifestantes, as ruas refluíram e hibernaram. Mostraram sua juventude, sua forma política surpreendente, seu ativismo midiático que se vale de redes sociais e celulares. Não encontraram pontes e braços que as projetassem para o centro do Estado, porque os que estão no Estado não conseguem sentir as ruas e quem está nas ruas não acredita que o Estado esteja interessado em ouvir ou dialogar. As ruas hibernaram, mas permanecem vivas, em condições de mobilização latente, fiéis ao mix de hipermodernidade, injustiça e caos que as qualifica.
Por isso, quando saímos da primeira percepção, constatamos que 2013 não terminou do mesmo modo: foi contagiado pelos protestos de junho, ainda que o sistema político não tenha se dado conta disso. O ano, a rigor, não terminou, pois aquilo que o distinguiu fez com que ele se projetasse, invadisse e condicionasse o ano novo, transferindo para ele um bom lote de questões não resolvidas.
É ilusório achar que a bonança prevalecerá depois da inesperada tempestade. A insatisfação de parte expressiva da população mistura-se hoje com a resignação tradicional e com um encantamento submisso ao poder do Estado. A combinação dessas três vertentes político-culturais – a insatisfação, a resignação, o encantamento – é nitroglicerina pura. Desaguará de algum modo nas eleições de 2014.
Isso não quer dizer que as urnas do próximo ano beneficiarão as oposições. Antes de tudo porque as oposições seduzem pouco, não inspiram confiança, não sugerem um futuro diferente. No meio delas, porém, há dinâmicas de novo tipo, que poderão cumprir importantes funções de oxigenação e democratização. Uma eventual vitória situacionista não será mero prolongamento da situação atual. A conservação das posições políticas não significa estagnação política, especialmente se se levar em conta a alta taxa de problemas do país e tudo aquilo que nele se mexe.
O ano que desponta trará consigo novas oportunidades para que se recomponham as relações entre Estado e sociedade. 2013 está prestes a acabar, mas não a terminar, a não ser no calendário. No chão da vida, continuará pulsando, a invadir 2014.
Bom ano novo a todos. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/12/2013, p. A2].

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Polêmicas de papai Noel




Enquanto a população, e sobretudo os emergentes das várias classes , quer dizer, aqueles que estão conseguindo se fixar como “mercado consumidor”, deram nó em pingo d’água para fazer suas compras; enquanto se insinua por aí um novo estilo de consumidor, mais “consciente” e, portanto, mais seletivo e menos conspícuo; enquanto industriais e lojistas contabilizam o quanto ganharam e deixaram de ganhar ao longo do ano – enquanto tudo isso rola, muita gente perde tempo batendo boca prá saber se 2013 foi ou não um ano de expansão do consumo.
Não sou economista, nem muito menos comentarista econômico, mas percebo algumas coisas que não aparecem em dados e porcentagens. Coisas que parecem claras, e que extraio da lógica e de muita conversa com as pessoas nas ruas.
Impulsionado pelos efeitos positivos das políticas oficiais de incentivo ao consumo e ao crédito, pela generalização maciça do cartão de crédito e pelo aparecimento de uma massa de milhões de brasileiros que finalmente conseguiram ingressar no mercado de consumo, graças precisamente aos benefícios sociais governamentais e à maior oferta de bens, o comércio continuou a crescer, e as vendas de Natal refletiram isso. Mas não bombaram, o que também dá prá entender. Se mais gente entra no mercado, se há mais publicidade e produtos, como o comércio não cresceria? Ele cresce porque há elasticidade, porque tem gente que estava fora e quer entrar. Mas não pode crescer indefinidamente, sempre a taxas elevadas, porque a vida não funciona assim.
Associações comerciais constatam coisas que funcionam como lobbies: o consumo nas lojas físicas decaiu e há mais medo da inadimplência, o que refreia o consumidor. Querem menos impostos, menos “custo Brasil”, menos juros. Valorizam sua função na estrutura da economia. Tem suas vozes para proclamar que “algo precisa ser feito para o país não parar”. E usam e abusam de pesquisas como a da Serasa, que indicam que as vendas de Natal cresceram somente 2,7% em todo o país na semana de 18 a 24 de dezembro, na comparação com igual período do ano anterior. Dados de 1 semana (!!!) acabam sendo usados para sugerir que a luz amarela acendeu;
Mas as usinas de informação também constatam que cresceu o consumo eletrônico, que bateu recordes anteriores e mostra ter largo fôlego. Qualquer um sabe: hoje é prática usual – de todas as classes – passar nas lojas para ver, tocar ou experimentar um produto e depois ir para casa, sentar diante do laptop e pesquisar o melhor preço eletrônico para comprar. A coisa funciona, evita-se o aborrecimento das lojas, a entrega é feita. Há alguns tropeços, falhas e frustrações, como em tudo, mas no geral é um ato de consumo fácil. Limpo... Somando tudo, o comércio físico e o eletrônico, o resultado não pode ter sido ruim.
Do mesmo modo que há muita gente revendo ou moderando hábitos de consumo. Por um lado, há mais desconfiança em relação ao futuro. Não por causa do governo ou da política econômica, mas por culpa da vida: essa é uma época de insegurança e risco e as pessoas não precisam ler Bauman ou Beck para sentir isso. Os governos fazem seu discurso costumeiro, de que estão acima de flutuações estruturais e somente praticam o bem, o certo e o seguro. Mas não são totalmente honestos nisso. Fazem política, porém. Temos de dar descontos.
Por outro lado, há mais gente pondo em xeque o padrão capitalista selvagem de consumo, aquele que cresce sempre mais, sem critério, no embalo de promoções, propaganda, estilo e exibicionismo. Muitos jovens, independentemente de terem mais ou menos dinheiro, praticam formas mais conscientes de consumo. São mais roots, digamos assim. Gostam de coisas alternativas. Compram menos roupas e quinquilharias. Andam de transporte público e veem o automóvel como último recurso. Se têm dinheiro, poupam e guardam para fazer uma viagem cult, por exemplo, para comprar um livro ou ir ao teatro.
Essa moçada não é seguramente a maioria, mas precisa ser considerada com atenção. Assim como a desconfiança intuitiva dos emergentes. Não é verdade que as pessoas tendem a se atirar compulsivamente às compras, ainda que comprem bastante e muitas vezes condicionem sua felicidade ao quantum de coisas adquirem. 5% de inflação no ano é algo que se sente, não deveria ser banalizado
Os que se esmeram em bater boca para atacar ou defender a política econômica e as opções governamentais não estão a discutir prá valer. Fazem mais jogo de cena, esgrimindo dados comerciais para reforçar posições políticas.
Dados são dados: não provam nada. Servem para ser interpretados e para indicar algumas tendências. Isso quando são de boa qualidade, o que nem sempre acontece.
Dizer que as vendas de Natal foram boas, ótimas ou fracas não prova que a economia está bem ou mal. Suspeito que não prove nada, aliás. Somente indica uma disposição meio tola de politizar tudo, de satanizar a “mídia de direita”, de descobrir inimigos por toda parte, de fazer lobby e agitar.
É uma forma ruim de terminar o ano. Indica que chumbo grosso vem por aí, quando começar de fato o processo eleitoral.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Trotsky / Stalin, cinema & literatura





Aproveito o período de festas e relaxamento para pôr em dia algumas leituras.
Resolvi reler O Homem Que Amava os Cachorros, de Leonardo Padura, de 2009 e que acaba de ser lançado pela Boitempo. Quando o li a primeira vez, fiquei sensibilizado e fui arrastado por sua trama. É um livro muito bom e interessante, que mistura história e ficção em torno de um dos personagens mais emblemáticos do século XX, Leon Trotsky.
Duas ou três coisas chamam atenção, à medida que avanço na leitura. Uma delas é o subtexto de Padura, que o mostra bem crítico ao regime cubano, e não só porque, como na maioria dos lugares em que houve comunismo, o regime reescreveu a história, pintando Trotsky como demônio e Stalin como santo. O Iván do livro, narrador da trama, verbaliza seu desencanto e suas preocupações com o clima disciplinador e fechado reinante na ilha. Deixa o leitor, no mínimo, com a pulga atrás da orelha.
Outra coisa é o modo como a errância de Trotsky no exílio revela um personagem perdido, e consciente disso. Protegido por admiradores passionais, sem conseguir dar um rumo a sua oposição, assistindo aos processos de expurgo movidos por Stalin contra velhos bolcheviques, vai mostrando sua fragilidade na medida em que a trama avança para o crime de Ramón Mercader.
Mercader, por sua vez, é tratado no livro como oscilando entre o mocinho e o bandido, produto de uma época de fanatismo e boçalidade ideológica que o convenceu de que tinha um papel de herói a desempenhar para garantir o avanço da revolução bolchevique.
Tocado pelo livro, fui atrás de dois filmes sobre os personagens principais dessa história. O assassinato de Trotsky, de Joseph Losey, no qual Ricard Burton é Trotsky, Alain Delon é Mercader e a maravilhosa Romy Schneider faz a trotskista que introduz o assassino na casa de Trotsky. O filme é meio chato, e mostra um Mercader à beira do desequilíbrio, bem diferente do cara de sangue frio que planeja meticulosamente um crime. Losey não constrói os personagens e deixa o espectador meio desarmado. É interessante, de qualquer modo.
O outro filme é uma produção da HBO (1992), com um excelente Robert Duval dando show na pele de Stalin. Durante 3 horas, Stalin é pintado rigorosamente como "monstro", tendo a voz de sua filha Svetlana como narradora da história. É um filme envolvente, cruel com Stalin. Tem brechas e forte viés ideológico, mas conta muitos detalhes sórdidos daquela que foi uma das grandes desgraças do século XX: a derivação da revolução bolchevique para uma ditadura perversa, que girou em torno da mente perversa e meio demente de Stalin.
Quem assiste ao filme, ou lê o romance de Padura, fica a se perguntar como foi possível que durante tanto tempo tantos tenham se deixado levar pelos relatos fanatizados que centralizavam o camarada Stalin e escamoteavam seus crimes. A história moldada, inventada e feita com golpes de mão e picaretas, foices e martelos.
Numa entrevista que li, Padura afirma que "Trotski era um político, Stalin um psicopata. Trotski poderia ser duro, reprimir, mas não de uma maneira doentia". Sua simpatia por Trotsky é evidente, e se afirma por contraste à monstruosidade de Stalin. Mas nem por isso O homem que amava os cachorros força a barra. Além do mais, tem uma prosa envolvente, com muitos achados preciosos.
O livro de Padura e os filmes sobre Trotsky e Stalin (facilmente encontrados no youtube) nos remetem à história do século XX e em particular à história da esquerda comunista e da União Soviética. Inquietam e convidam à reflexão.

domingo, 8 de dezembro de 2013

A Copa ou a vida - II





Se Copa do Mundo ganhasse eleições e ajudasse a melhorar a avaliação dos governos, talvez a ditadura de 64 não tivesse acontecido ou não teria acabado como acabou.
Futebol não é o ópio do povo, que tem sabido separar bem as coisas: ao povo o que é do povo, aos políticos e governantes, o resto, ou seja, as eleições e o poder. Uma coisa é o jogo, outra coisa é a representação. (Falo assim sabendo que “jogar” se aproxima bastante do “representar”.)
Todos faturam com ele, dos empresários e comerciantes aos políticos, dos petistas e tucanos aos extremistas de esquerda e de direita, passando evidentemente pelos peemedebistas, pelos comunistas, pelos socialistas e pelos liberais. Ativistas ou intelectuais que foram tucanos empedernidos um dia e agora desfilam como petistas apaixonados e sinceros aplaudem as obras da Copa como se fosse o resgate da nação, a definitiva emancipação social dos brasileiros. Do mesmo modo, petistas arrependidos ou desiludidos, ao lado do variado contingente de oposicionistas, vaiam a Copa para pedir mais investimento social ou mais “racionalidade gerencial”.
Em suma, tem pra todos os gostos. E todos sempre quiseram e continuarão a querer tirar sua casquinha.
Precisamente por isso, seria recomendável que os intelectuais, os gestores, os governos, os políticos – especialmente aqueles de melhor qualidade, em quem se depositam as chances do futuro – fossem mais comedidos em suas performances. O ideal seria que falassem menos, limitando-se a tomar providências e decisões, a torcer contra ou a favor, a olhar o jogo quando ele começar.
Encher a boca para falar que o governo fará a melhor de todas as Copas ou que o brasileiro mais uma vez mostrará seu valor é tão fácil quanto espinafrar o Blatter ou zicar os planos da FIFA.
Difícil mesmo é tratar o futebol com a seriedade que ele merece e com a responsabilidade que a política exige. Ou seja, relativizá-lo (it’s just a game, fellows...) e extrair dele o que pode haver de positivo na dimensão lúdica, na publicitária e na econômica. Sem esquecer a dimensão técnica, que entrará em campo e da qual dependerá boa parte do almejado sucesso do show.