sábado, 28 de junho de 2008

O desenvolvimento exigente



Parece haver no país um consenso, segundo o qual não teremos chance de avançar como sociedade – ou seja, de eliminar a desigualdade, a miséria, a fome – e como Estado democrático sem taxas vigorosas de crescimento econômico. São muitas as esperanças associadas ao desenvolvimento, como se dele dependesse tudo: emprego, renda, igualdade, a felicidade mesma dos cidadãos.

Paradoxalmente, isso ocorre num momento em que o próprio desenvolvimento se mostra difícil, controverso, até mesmo indesejável. Há, é verdade, uma forte pressão – da economia mundial, dos organismos internacionais, dos governos de outros países – para que se acelere o crescimento e se dissemine a mentalidade do “catch-up”, como se existisse um padrão ótimo de renda ou PIB que devesse ser alcançado por todos os países. Fala-se até em “ditadura do desenvolvimentismo” como critério a ser seguido na construção do futuro, que deveria ser o mesmo para o mundo todo.

Esta pressão, no entanto, não traz consigo nenhuma idéia consistente de desenvolvimento, nem faz qualquer projeção a respeito de suas vantagens ou de seu custo social. Sua estratégia e suas metas são definidas a partir da experiência dos países mais desenvolvidos ou de economias que conseguiram sucessos estrondosos em curto espaço de tempo, sem que se esclareça se isso pode ser tomado como medida universal.

O desenvolvimento continua a ser o principal motor do capitalismo e é uma necessidade real das comunidades humanas que se inserem neste sistema. Mas não é razoável que tudo seja feito ou defendido em seu nome.

Estamos discutindo o tema num contexto condicionado pelas conseqüências do padrão de desenvolvimento das últimas décadas, que assistiram a uma expansão desenfreada do capitalismo e das forças produtivas em todo o globo. Vivemos sob a sensação de que o desenvolvimento em curso, graças à sua lógica cega e “irresponsável”, ameaça a reprodução das sociedades humanas, reitera a desigualdade e agrava o desequilíbrio ambiental. Também por isso, é difícil saber quando se pode falar de fato em desenvolvimento. Saltos no PIB ou na renda per capita não são de modo algum confiáveis como indicadores de sucesso.

Devemos querer desenvolvimento no Brasil, mas não podemos querer qualquer desenvolvimento.

Um desenvolvimento sustentável precisa ser proposto com firmeza. A idéia de sustentabilidade não pode servir de base para que se bloqueiem projetos de crescimento econômico que se dediquem a melhorar as condições de vida da população. Mas ela não é em si mesma uma abstração. Surgiu como um grito de alerta e funciona tanto como parâmetro de moderação e regulação do crescimento, quanto como critério de preservação ambiental.

Uma perspectiva sustentável de desenvolvimento é indispensável para que se estabeleça uma sintonia fina entre expansão das forças de produção, apetites do mercado, necessidades coletivas e justiça social e, ao mesmo tempo, para que a economia interaja amigavelmente com a natureza. Não se trata, pois, de simples recurso preservacionista, mas de algo bem mais abrangente, que supera tanto a indiferença produtiva do ambientalismo tradicional quanto a volúpia do produtivismo incondicional.

Justamente por isso, trata-se de uma perspectiva exigente, bem mais complexa que qualquer outra do passado. Ela necessita tanto de uma idéia clara de desenvolvimento, que o conceba de forma multidimensional, como projeto regulado politicamente, quanto de um pacto social que dê fundamento prático, moral e político à idéia.

O desenvolvimento desejável não pode ter as mesmas metas de antes (concentradas no econômico), nem muito menos partir dos atores de sempre – o Estado, os empresários, os trabalhadores. Precisa envolver o conjunto da sociedade e implicar uma série de ações que reformem, dinamizem e articulem os diferentes sistemas sociais (a educação, a saúde, os transportes, a infra-estrutura, etc.) e alterem, portanto, a institucionalidade existente, a começar do próprio aparelho de Estado e atingindo os partidos políticos, a universidade e a comunidade científica.

O desenvolvimento hoje não depende somente do Estado, mas é inconcebível sem o Estado. Mas para coordenar o desenvolvimento, o Estado precisa ter capacidade de intervenção, ou seja, ser capaz de fazer política (econômica e social), regular o mercado, enfrentar a prevalência do sistema financeiro e liderar um pacto social substantivo.

O problema é que estes requisitos são de difícil obtenção nas circunstâncias atuais. Não faltam operadores técnicos e políticos qualificados e o país parece preparado para vivenciar um novo ciclo de expansão sem ameaças à estabilidade e à segurança da população. Melhoramos muito em diferentes áreas – da gestão à distribuição de renda, do conhecimento tecnológico à democracia eleitoral – e temos uma base material para o desenvolvimento.

No entanto, carecemos do fundamental, ou seja, de boas condições para o estabelecimento de um pacto social que seja simultaneamente desenvolvimentista e aberto para a sustentabilidade, que olhe o país como um todo e condicione o avanço em termos de produtividade a uma consistente agenda distributivista.

Pactos são produtos políticos e intelectuais. Dependem de sujeitos, atos de vontade, lideranças, batalhas de persuasão, convencimento e argumentação. Não avançam sem projetos referenciados, sem forças sociais minimamente mobilizadas, sem coalizões políticas inteligentes e generosas.

Por não termos como produzir pactos deste tipo, corremos o risco de assistir a um ciclo expansionista muito mais propenso ao reforço unilateral do mercado que ao aumento da igualdade ou à democratização da sociedade. Se assim ocorrer, continuaremos sem desenvolvimento efetivo e entregues à progressiva colonização do futuro pela economia. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/06/2008.]

domingo, 8 de junho de 2008

Poder, tema de novo livro




A Editora Unesp acabou de publicar um novo livro de minha autoria: Potência, limites e seduções do poder. O livro integra a Coleção Paradidáticos da editora, que visa a colocar ao alcance de um público amplo textos sobre ciência e cultura que ajudem a que se entenda o mundo contemporâneo.

O livro é, portanto, obra de divulgação. Esforcei-me para oferecer ao leitor um material de reflexão redigido em estilo agradável e direto. Para seguir o padrão da coleção, o livro contém também um glossário, um elenco de questões para debate e algumas sugestões de leitura. De qualquer modo, espero ter conseguido produzir um texto que não peque pela simplificação excessiva do argumento ou pela leviandade no tratamento dos complicados temas do poder.

Eventuais interessados poderão adquirir o livro diretamente na Editora Unesp ou nas livrarias existentes. Nos sites tipo Fnac, Submarino, Cultura e Saraiva, sempre se encontram descontos.

Para dar uma idéia do que nele se encontrará, reproduzo abaixo a sua Introdução.


O tema não aceita indiferença. Sempre houve e sempre haverá quem receie o poder ou se incomode com o poder. De uma ou outra forma, todos são magnetizados por ele. O poder seduz. A própria sedução é um de seus principais recursos. Sempre há quem sofra com o poder e quem cobice o poder.

É um assunto universal, de todos os tempos, presente em todas as culturas, objeto de conversas de bar e de tratados refinados escritos por pensadores dos mais diferentes estilos e das mais díspares orientações ideológicas. É daqueles temas que costumamos chamar de clássicos, que nunca saem de cena e que se tornam sempre mais fascinantes a cada nova abordagem, ainda que não fiquem necessariamente mais bem compreendidos. Podemos partir dos antigos filósofos gregos, passar pelas reflexões teológicas da Idade Média, freqüentar os clássicos modernos (Maquiavel, Hobbes, Kant, Rousseau, Hegel, Marx) e chegar aos contemporâneos, e iremos nos deparar com a mesma inquietação, com o mesmo interesse em entender as armadilhas, as sinuosidades, as misérias e a potência do poder.

Por que alguns mandam e outros obedecem? De que métodos e recursos se valem os que mandam? Como conseguem obter apoio e consentimento? Como justificam e como é recepcionado este poder? Em seu famoso Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1762), Jean-Jacques Rousseau propôs-se claramente a explicar por qual “encadeamento de prodígios” o forte – isto é, a maioria -- pôde resolver-se a servir ao fraco, aceitando uma dominação que, em nome de uma “felicidade real”, deu-lhe apenas uma “tranqüilidade imaginária“. Não foi o primeiro a se dedicar ao problema, mas seu texto marcou época na história do pensamento político.

Amado e odiado indistintamente, o poder perturba, leva pessoas à loucura, corrompe e alucina, mas também serve para que se movam montanhas e para que multidões dispersas se organizem. O poder reprime e prejudica, mas também acalenta, protege, incentiva e beneficia. Costuma ser utilizado tanto para conservar quanto para revolucionar, tanto para promover mudanças quanto para preservar o status quo. É visto como instrumento e como fim último, como recurso e como meio de vida.

Diante do poder, não há como simplesmente darmos de ombros e acharmos que não tem nada a ver. Podemos não gostar dele, mas não temos como evitá-lo nem como subestimá-lo. Podemos pensar que ele não é um tema atraente, que há coisas melhores para se estudar, mas não compreenderemos os horrores e as maravilhas do mundo se não incluirmos o poder e não tentarmos decifrar o poder.

O anedotário sobre o poder é ilimitado. Todo povo cria fantasias sobre o poder e o explica de algum modo. Não há quem não ache, ao menos por uma vez, que os governos são sempre arrogantes com os cidadãos mais fracos e rastejam diante dos poderosos. Todos crêem que os políticos são simpáticos quando precisam pedir votos aos eleitores e se convertem na encarnação mesma da empáfia e da soberba quando chegam ao poder. A vida está cheia de pequenos tiranetes que se incham quando põem a mão em alguma nesga de poder. Servidores públicos, policiais, gerentes de banco, empresários, chefes de seção, jornalistas, técnicos de futebol, professores, top-models e artistas famosos sempre têm seu instante de poder e arrogância. Nestas ocasiões, pisoteiam e maltratam quem lhes aparecer pela frente, abusando de todos os recursos de que dispõem para humilhar o próximo ou para dele se distanciar. São momentos parecidos com os quinze minutos de fama que Andy Warhol atribuiu como “direito” para cada um dos habitantes das sociedades dotadas de um forte sistema de mídia. A fama e o poder muitas vezes andam juntos, mas são coisas bem diferentes.

O texto que se segue pode ser entendido como um convite para que nos interessemos pelo tema. Seguindo a sugestão feita décadas atrás por um pequeno livro do filósofo Gérard Lebrun (1981), tentaremos seduzir o leitor a olhar o poder como assunto digno, crucial, estratégico, se possível desfazendo-se de alguns preconceitos e indo além de algumas “evidências”. O plano não é convencer ninguém nem da “bondade” nem da “maldade” intrínsecas ao poder, mas sim abrir algumas clareiras para que se possa pensar o poder como um fato integrado à vida, que se insinua em nossos discursos, em nossos relacionamentos amorosos, em nossa atividade produtiva, nas lutas que travamos para ser felizes ou simplesmente para defender nossos interesses.

O poder está em toda parte. Tem muitas faces, múltiplas dimensões e inúmeras falas. Exibe-se e se oculta com igual dedicação. Ama a exposição e não vive sem o segredo. Podemos odiá-lo, cobiçá-lo, combatê-lo ou apenas temê-lo. Justamente por isso, não temos o direito de ignorá-lo e de não tentarmos compreendê-lo. Se assim procedermos, acabaremos por não saber bem o que fazer com o poder que temos e com todos os pequenos e grandes poderes com que interagimos.

sábado, 7 de junho de 2008

Para pensar


“A tendência predominante de nossa sociedade mostra a vingança histórica do espaço, estruturando a temporalidade em lógicas diferentes e até contraditórias de acordo com a dinâmica espacial. O espaço de fluxos dissolve o tempo desordenando a seqüência dos eventos e tornando-os simultâneos, dessa forma instalando a sociedade na efemeridade eterna. O espaço de lugares múltiplos, espalhados, fragmentados e desconectados exibe temporalidades diversas, desde o domínio mais primitivo dos ritmos naturais até a estrita tirania do tempo cronológico. Funções e indivíduos selecionados transcendem o tempo, ao passo que atividades depreciadas e pessoas subordinadas suportam a vida enquanto o tempo passa. Embora a lógica emergente da nova estrutura social vise à contínua suplantação do tempo como uma seqüência ordenada de eventos, a maioria da sociedade em um sistema global interdependente permanece à margem do novo universo. A intemporalidade navega em um oceano cercado por praias ligas ao tempo, de onde ainda se podem ouvir os lamentos de criaturas a ele acorrentadas”. [Manuel Castells, A sociedade em rede, p. 490].


“Graças a sua flexibilidade e expansividade recentemente adquiridas, o tempo moderno se tornou, antes e acima de tudo, a arma na conquista do espaço. Na moderna luta entre tempo e espaço, o espaço era o lado sólido e impassível, pesado e inerte, capaz apenas de uma guerra defensiva, de trincheiras – um obstáculo aos avanços do tempo. O tempo era o lado dinâmico e ativo na batalha, o lado sempre na ofensiva: a força invasora, conquistadora e colonizadora. A velocidade do movimento e o acesso a meios mais rápidos de mobilidade chegaram nos tempos modernos à posição de principal ferramenta do poder e da dominação. (...) [Nas condições sociais da modernidade líquida] o poder pode se mover com a velocidade do sinal eletrônico – e assim o tempo requerido para o movimento de seus ingredientes essenciais se reduziu à instantaneidade. Em termos práticos, o poder se tornou verdadeiramente extraterritorial, não mais limitado, nem mesmo desacelerado, pela resistência do espaço (...). O que quer que a história da modernidade seja no estágio presente, ela é também, e talvez acima de tudo, pós-panóptica. O que importava no Panóptico era que os encarregados ‘estivessem lá’, próximos, na torre de controle. O que importa, nas relações de poder pós-panópticas é que as pessoas que operam as alavancas do poder de que depende o destino dos parceiros menos voláteis na relação podem fugir do alcance a qualquer momento – para a pura inacessibilidade”. (Bauman, Modernidade líquida, p. 16-18).

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Ironia, argúcia e provocação


Pode-se não gostar do que ela pensa, fala ou escreve, mas não há como negar que se trata de alguém diferenciado, que tem o que dizer e o diz com paixão e veio polêmico. Camille Paglia divide opiniões. Incomoda. Seduz platéias. Está sempre com o foco no presente, tentando decifrar posicionamentos, atitudes, comportamentos, correntes culturais. Também privilegia, evidentemente, os fatos políticos.

Camille é uma intelectual influente. Seu livro Personas sexuais, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, em que ela discute sexualidade, arte e civilização, é um show de ironia, argúcia e provocação. Uma peça a mais na briga histórica que Camille trava com o feminismo tradicional e contra muitas das verdades moralistas dos nossos tempos.

No domingo dia 1 de junho, o Estadão publicou uma interessantíssima entrevista com ela. Em meio a observações sobre a atual campanha eleitoral norte-americana, ela ataca o establishment, detona Hillary Clinton e explica porque vai votar em Barack Obama.

Posta diante da questão de saber qual a novidade e a contribuição da Internet, Camille não perdeu a oportunidade de falar para os jovens. Disparou:

”A Internet apresenta um mundo novo? Um pouco. Os jovens não estão assistindo à televisão e há uma miríade de pontos de vista diferentes na web. Mas a desvantagem da web e dos blogs é que tudo vem muito fragmentado, são só pedaços pequenos de informação. A antiga habilidade do argumento elegante de editorialistas e colunistas é uma arte em extinção, e lamento isso. As pessoas que sabiam construir um argumento e colocá-lo num texto conciso e bem estruturado estão envelhecendo. Hoje, estamos cercados por mídia. A geração atual está em constante contato entre si, mas eles não têm um espírito de rebeldia, de vontade de mudança, que minha geração teve. É claro que éramos ingênuos e talvez até arrogantes ao exigir do mundo que mudasse. Mas os jovens, hoje, não têm essa ousadia. Não encontro a moça com 20 e poucos que tenha esse projeto de escrever um longo livro que será a grande obra definidora de algum assunto. Os jovens querem publicidade, querem aparecer. Mas a verdade é que basta um artigo publicado em uma revista de grande circulação que já é suficiente para render um contrato lucrativo com uma editora. O livro baseado no artigo é escrito em oito meses e o que temos são livros superficiais saindo um após o outro. Jamais esqueço que não podemos julgar o futuro pelos paradigmas do passado. Estamos vivendo um momento de grande mudança na comunicação e, com toda grande mudança tecnológica do tipo, há ganhos e perdas. Estou chegando a uma idade em que começo a me sentir velha e talvez esteja olhando para os jovens como a geração de meus pais olhou para as pessoas com minha idade. Mas, veja, os filmes já não são como foram. E meus alunos não têm o interesse de ir ao cinema como eu tinha. Tivemos a sorte de viver um tempo em que o cinema europeu era exuberante. Nos habituamos a ir ao cinema ver aquelas obras tão profundas. Era um preto e branco de alto contraste, uma fotografia de imensa qualidade, a edição, a música. Entrei na faculdade em 1964 e foi lá que assisti a La Dolce Vita, que havia sido feito apenas cinco anos antes. Achávamos que o cinema seria assim para sempre. Mal resistiu aos anos 70, quando entrou num lento declínio. Do meu ponto de vista, Instinto Selvagem foi o último filme interessante jamais feito. Nada desde então merece ser revisto.”

Vale a pena ler a entrevista na íntegra.