sábado, 30 de abril de 2011

Bauman e a mudança como nossa única permanência


Laura Greenhalgh, editora executiva do caderno Sabático, do Estadão, fez uma ótima entrevista com Zigmunt Bauman na edição deste sábado. 

Muitos cientistas sociais torcem o nariz quando ouvem falar do sociólogo polonês radicado há décadas na Inglaterra. Dizem que ele é superficial, que suas teses valem para a Europa mas não para o mundo, que atira para todos os lados e que abusa de metáforas de fácil apelo popular mas baixa densidade analítica. Esnobam o autor de Modernidade Líquida, empurrando-o para aquela vala comum do que julgam ser a "pós-modernidade", conceito que ele não aceita.

Não faço parte dessa corrente. E continuo aprendendo muito com os livros de Bauman, que me mostram um modo de pensar o mundo atual sem modelos pré-concebidos e com espírito aberto. Além do mais, há sacadas geniais neles, metáforas reveladoras de coisas nem sempre percebidas. Há falhas, limites, imperfeições? Ora, falemos sério: em quem não há?

A entrevista foi feita por email. É extensa, minuciosa, criativa. Mostra um Bauman otimista, interessado em descobrir novos caminhos para que a humanidade siga em frente. É também um Bauman que bebe em muitas fontes, distante de qualquer ortodoxia.

Logo no primeiro parágrafo, ele se vale (sem dizê-lo explicitamente) de uma ideia que se tornou famosa graças aos textos de Antonio Gramsci: a crise nada mais seria do que um momento em que aquilo que está "velho" já não governa e em que o "novo" ainda não tem forças para fazê-lo. Bauman escreve: "Nós nos encontramos num momento de "interregno": velhas maneiras de fazer as coisas não funcionam mais, modos de vida aprendidos e herdados já não são adequados à conditio humana do presente, mas também novas maneiras de lidar com os desafios da contemporaneidade ainda não foram inventados, tampouco adotados". 

A entrevista pode ser lida nesse link.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

O sociólogo e as crianças


Conheço Ricardo Pimentel há muitos anos, desde quando ele estudou Ciências Sociais na UNESP de Araraquara. Lembro-me dele como um carinha compenetrado da missão do sociólogo mas sem perder a sensibilidade e o bom humor jamais. Isso deve ter sido lá pela segunda metade dos anos 1980.
Ricardo se formou, tornou-se cientista social, girou o mundo e foi prá Curitiba, onde se tornou professor da Universidade Positivo. Teve filhos, especialmente. Digo "especialmente" pelos motivos que seguem abaixo.
Voltei a saber dele via Facebook. E agora fico conhecendo uma sua iniciativa genial, que faço questão de divulgar porque me emocionou de verdade.
Durante anos prestou atenção e registrou as falas, as situações e as sacadas das crianças da sua família. Reuniu tudo com capricho e fez um livro. Um livro infantil, mas que todos adorarão ler.
Com ele, Ricardo demonstra que não somente gosta de crianças, mas que também sabe interagir com elas, levá-las a sério e respeitá-las como seres pensantes indiscutivelmente perspicazes e talentosos. Tanto que, modestamente, assinou o livro como "criação coletiva".
O livro está ao acesso de todos por via eletrônica. Vale a pena apreciar e sobretudo disseminar. Basta clicar nas letras do título bem no meio da capa abaixo. Puro show!

terça-feira, 26 de abril de 2011

O momento político nacional - entrevista


Conversei com o jornalista Alexandre Machado no programa Começando o dia, que ele dirige diariamente na Rádio Cultura FM 103,3 das 8 às 9 da manhã.

A conversa foi sobre política, tentando avaliar rapidamente o panorama atual e o comportamento de alguns protagonistas do jogo político nacional.

Dispobilizo abaixo o audio da conversa, com a intenção adicional de incentivar as pessoas a sintonizarem o programa do Alexandre, que sempre traz coisas interessantes e nos ajuda a compreender o mundo.



domingo, 24 de abril de 2011

Leituras enviesadas

Não houve quem não tenha lido, comentado ou tomado posição. Sinal de que havia ali algo incômodo: uma provocação eficiente, uma verdade finalmente revelada ou a confirmação cabal de algo conhecido mas que parecia esquecido.
O artigo publicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na revista Interesse Nacional levantou poeira por todos os lados. Pautou o processo político, embora tenha manifestado dificuldade de obter ressonância prática, a começar no terreiro mesmo de seu partido, o PSDB.
A efervescência por ele provocada foi tão intensa que ficou difícil realçar seu núcleo argumentativo. Quem tentou fazer isso foi estigmatizado como apoiador do ex-presidente, tucano enrustido ou antipetista visceral. Alguns foram tachados de prepotentes por quererem ensinar os demais a lerem um texto simples, claro como a luz do sol, que nada mais seria que a confissão do sobejamente conhecido elitismo de FHC.
Isso porque o ex-presidente escreveu que a oposição, se quiser voltar ao centro do palco, precisa dar mais atenção às emergentes classes médias que se descolam do “povão” e parecem estar em busca de quem as represente na política nacional. Foi uma frase contundente, mas muitos leitores, em vez de a interpretarem literalmente – como uma diretriz política e eleitoral –, preferiram desconstrui-la para salientar o propalado “horror de FHC ao povo”. Ejetaram o ex-presidente do campo democrático.
Foi desonesto, ainda que politicamente compreensível. Pior foi o que se seguiu. O líder petista Lula, instado a se manifestar, não perdeu a chance de soltar uma sentença que tem tanto de rusticidade quanto de malícia: “O povão é a razão de ser do Brasil”. Para emendar, aproximou FHC do ditador João Figueiredo, que “preferia o cheiro de cavalos ao cheiro do povo”. Tentou amenizar, observando que não conseguiu "entender o que FHC quis dizer", mas esse acesso de modéstia não diminuiu o peso da grosseria, que evidentemente repercutiu.
A discussão deixou de lado o bê-á-bá. Se um tucano, querendo vencer as próximas eleições, percebe que parte do eleitorado está sob controle do adversário, se percebe que o "povão" está com o PT, por exemplo, a atitude mais inteligente é ir atrás do restante. Essa a tese do artigo. Ao formulá-la, FHC também fez política. Autoelogiou-se, forçou a barra ao atacar a situação, não perdoou sequer seu próprio partido. Com isso, atraiu a fúria dos céus. Disse que o PSDB e seus aliados falarão sozinhos se persistirem em disputar com o PT a influência sobre “as massas carentes e pouco informadas”, dando margem a que se visse nisso um desprezo por elas. Acrescentou que o PT controla o “povão” porque seus governos “aparelham e cooptam com benesses e recursos” que são mais eficazes do que a palavra dos oposicionistas, permitindo que se o criticasse pela parcialidade, ou seja, por não reconhecer que os governos tucanos também se valem de benesses e cooptação quando gerenciam suas políticas públicas.
Foram frases cortantes, parciais, discutíveis, mas não propriamente falsas. Seu ponto era definir o público-alvo das oposições: todo o vasto segmento social integrado pela classe média, pelas novas classes possuidoras, pelos novos profissionais. Um segmento que, em sua visão, estaria ausente do jogo político-partidário, ainda que viva profundamente conectado nas redes sociais. Se as oposições forem ousadas e buscarem interpelá-lo, encontrarão um eixo e poderão voltar a sorrir. Delineou-se assim um ambicioso “programa” de ação: disputar a hegemonia na política, não somente o controle de recursos de poder. A mensagem deu destaque à retomada da circulação de ideias via rede de palestras, artigos e debates que “mergulhem na vida cotidiana e tenham ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades e anseios do homem comum”. Fixar um público e caprichar na explicitação do conteúdo da mensagem.
Acontece que o público definido pelo ex-presidente é objeto de desejo de todos os políticos: as classes médias, setor sabidamente informe e mal conhecido, cercado de desconfianças políticas e ideológicas, mas predestinado a crescer sempre mais. Inevitável que seja alvo de cobiça e atenção. Tanto que Lula, no vácuo aberto pelo artigo de FHC, não se fez de rogado e propôs aos petistas que façam concessões à direita para minar a prevalência do PSDB em São Paulo. Ir para a direita, nesse dialeto, significaria aliar-se a políticos conservadores e avançar sobre a nova classe média e os "órfãos do malufismo e do quercismo". Linguagem cifrada à parte, Lula copiou FHC.
O diálogo político com a classe média integra toda plataforma democrática e progressista. Promovê-lo não poderia significar “ir para a direita”, do mesmo modo que aqueles que estão ao lado do povo não são necessariamente de esquerda. Tanto quanto classe média, "povão" é termo genérico e impreciso. Pode significar o conjunto dos pobres, as massas carentes, os desorganizados ou mesmo aqueles que não têm uma classe definida. Qualquer posição política interessada de fato em construir uma sociedade melhor concebe esse segmento como algo a ser superado, não como objeto a ser conquistado eleitoralmente.
Entre classes, ideologias e votos não existem alinhamentos automáticos. Uma política progressista, de esquerda, que discrimine setores sociais correrá o risco de trair a própria causa, de praticar uma política “social” e não uma política de Estado voltada para a comunidade como um todo. Além do mais, a classe média é um fato da vida e cresce na medida mesma em que se mostram eficazes as políticas sociais destinadas a reduzir a pobreza. O pobre que deixa de ser pobre pode até ser agradecido ao governo que o libertou, mas estará disponível para novas aventuras políticas pelo fato mesmo de ter ingressado em outro universo social.
Ao abrir essa discussão, o artigo de FHC lançou um repto a todos. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/04/2011, p. A2]

terça-feira, 5 de abril de 2011

Fantasmas poderosos

Nightmares By Scott Garner
Fantasmas e pesadelos costumam atormentar todos os que tiveram poder um dia. O universo dos “ex” é heterogêneo, mas nenhum deles dorme inteiramente em paz depois de ter entrado em contato com os prazeres que integram o cotidiano de um poderoso. Mesmo suas agruras e seus aborrecimentos são de um tipo especial. Viciam, causam dependência.
A maldição não perdoa ninguém, ainda que nem todos reajam do mesmo modo. Há os que sofrem em público e os que se recolhem, os discretos e os escandalosos, aqueles que retomam a vida de antes e seguem em frente e aqueles que não se conformam e não sabem o que fazer. Quanto mais alto o grau de poder, mais o problema se acentua. Quem já foi presidente da República tem mais dificuldade para assimilar a perda súbita ou anunciada de poder do que um chefe de seção desalojado do cargo.
O filósofo inglês Thomas Hobbes escreveu no século XVII que a tendência geral dos humanos era “um perpétuo e irrequieto desejo de poder, que cessa apenas com a morte”. Segundo ele, isso acontecia não porque os homens buscassem um prazer sempre mais intenso, mas porque intuíam que a conservação e a ampliação constante do poder eram essenciais para que garantissem o que já possuíam.  Maquiavel, na Itália, se inquietava diante da dificuldade que tinha para “determinar com clareza que espécie de homem é mais nociva numa república, a dos que desejam adquirir o que não possuem ou a dos que só querem conservar as vantagens já alcançadas”. Não economizaria palavras: “a sede de poder é tão forte quanto a sede de vingança, se não for mais forte ainda”. Idêntica preocupação teria Max Weber, que dizia que quem mexe com o poder faz um “pacto com potências diabólicas” e vai descobrindo que o bem e o certo nem sempre têm significado unívoco. O poder tem razões que a razão desconhece.
Alguém que deixa o poder defronta-se antes de tudo com o fantasma daquilo que perde: os rituais, a vida distinta, os mimos e mesuras dos subordinados, o conforto do palácio. Precisa se acostumar com os ruídos alheios e esquecer o som da própria voz. Há quem diga que sente certo alívio ao voltar ao anonimato e se libertar da agenda carregada, das liturgias cansativas, do excesso de exposição. Mas a ausência disso tudo pode se assemelhar a uma crise de abstinência, que termina por levar o ex-poderoso à busca inglória de um lugar ao sol semelhante ao que desfrutava nos dias de fausto.
Talvez para compensar tais dissabores, mas também para dignificar personagens que tiveram um papel na história, a República brasileira concede regalias vitalícias aos ex-presidentes: automóveis, funcionários e homenagens, além dos salários. Algo semelhante ocorre nos Estados Unidos. Uma vez presidente, sempre presidente.
Um fantasma mais assustador é saber o que fazer com as longas horas do dia, dar rumo à vida, retomar a atividade anterior ou iniciar novo percurso.  O esforço para recuperar o que ficou para trás quase sempre é em vão. Muito tempo se passou, novos hábitos se cristalizaram, carreiras profissionais foram interrompidas. Aí mora o desejo de permanecer ativo na mesma área em que obteve fama e prestígio, falando e agindo como se ainda fosse o mandatário. É instigado a analisar falas e estilo de quem está no lugar que um dia foi seu. Chovem-lhe oportunidades para que atue como sombra ou alterego, alguém que pode ser conselheiro, ponderar, sugerir, auxiliar. Ex-presidentes costumam valer muito no mercado das palestras e conferências, por exemplo. Precisam se esforçar para não cair em tentação.
Nesse ponto, o ex-poderoso depara-se com seu pior pesadelo: o de sair perdendo ao ser comparado com o sucessor. As comparações são inevitáveis. Adversários e inimigos as incentivam, rasgam elogios ao rei posto para despertar o ciúme do rei morto e intrigar os dois.
Não é, portanto, acidental que o ex-presidente Lula esteja repetindo que “o sucesso da Dilma é o meu sucesso; seu fracasso é o meu fracasso”. Ele não pode correr o risco de ser visto como estando a ofuscar sua sucessora, nem deixar que sugiram que a nova presidente o supera em algum quesito. Tem razão em reclamar da malandragem de seus adversários, que depois de terem passado anos dizendo que ele dava continuidade ao governo FHC, agora não param de falar que a gestão Dilma – carne de sua carne – está rompendo com os oito anos da sua Presidência. Mas também é verdade que ele, ao fazer isso, procura se aproximar da imagem positiva que Dilma possa estar obtendo junto à opinião pública. Não se trata só de mágoa, há muito cálculo no gesto.
Amado e odiado indistintamente, o poder perturba, corrompe e alucina. Reprime, castiga e prejudica, mas também acalenta, protege e beneficia. Costuma ser utilizado para conservar e para transformar. É instrumento e objeto de desejo, encargo e meio de vida. Sua “face demoníaca” não perdoa os que com ela convivem, sejam eles presidentes da República, governadores de estado ou CEOs de uma multinacional. O poder sobe à cabeça, cega, embriaga. Pode ser letal. [Publicado no Caderno Aliás, O Estado de S. Paulo, 27/3/2011].