sábado, 13 de setembro de 2014

Desenvolvimento sustentável




Dias atrás, a partir de uma postagem no Facebook em que eu lamentava o baixo nível da campanha eleitoral e aproximava as táticas da esquerda e da direita, muitas pessoas intervieram, a maioria das quais em tom bastante crítico. A tendência prevalecente entre os que se opuseram à minha posição é que eu estava fazendo uma denúncia vazia e posando de vítima, ou vitimizando Marina Silva.
Alguns críticos foram particularmente incisivos. Disseram que mais importante do que discutir táticas de campanha seria discutir propostas programáticas. No primeiro momento, fiquei espantado com estas posições, que referendaram exatamente o que me motivara a escrever o post inicial. Depois, achei que o convite ao debate não poderia ser desprezado, ainda que o circuito facebookiano não forneça o ambiente mais adequado para discussões produtivas.
Apresentei então os dois últimos textos que pendurei aqui neste blog com o objetivo de discutir temas subjacentes ao debate eleitoral corrente.
Um deles, sobre o pré-sal, chamou atenção de Cláudio Guedes, que apresentou algumas objeções à defesa que fiz do programa de Marina sobre matriz energética e desenvolvimento sustentável.  Claudio, engajado que está na campanha de Dilma e contando com os conhecimentos que possui na área, não se deixou convencer pelos meus argumentos. Escreveu então: “a proposta de Marina de matriz energética é superficial, vaga. E acho que a opinião "clara" dela sobre o tema é apenas um apanhado de boas intenções. Nada mais do que isso. Dizer que é a favor de energias limpas? Eu também. E daí? Como fazer para atender à demanda reprimida por energia elétrica de 60 milhões de brasileiros? Com energia solar e eólica? Impossível. Vamos abrir mão do aproveitamento da energia hidrelétrica, renovável e barata, mas que implica consideráveis intervenções em ambientes naturais? Vai fazer ou não vai? Se não vai como vai atender à demanda crescente do país e da população por energia? Marina nada responde. E sua atuação no Ministério do MA foi muito fraca. Travar projetos é fácil. Difícil é buscar soluções que atendam ao crescimento do país, à sua população pobre e mitiguem os impactos ambientais. Esse é o desafio”.
Coerente com a minha posição de não entrar mais em discussões inflamadas no Facebook, deixei a crítica em banho-maria. Cobrado pelo jornalista Fernando Morais, que interviera no mural aplaudindo as objeções e reclamando do meu silêncio, esclareci que outros espaços de discussão existiriam e seriam mais adequados. No caso, o meu blog.
Por isso volto ao tema. As objeções de Claudio fazem sentido. Há um excesso de ideias genéricas e boas intenções nas propostas de Marina. As perguntas feitas por ele são boas, vão ao ponto certo.
A primeira questão importante a se reconhecer é que generalidade e boas intenções não são exclusividade de Marina. Todos os programas atuais são assim. A vantagem de Marina é que ela está afirmando posições e dando sinalizações doutrinárias importantes, ao passo que outros candidatos ou não fazem nada semelhante (caso de Aécio) ou simplesmente reiteram coisas feitas, e mesmo assim de maneira genérica e superficial, quando não com uma pitada de forçação de barra, como no caso do pré-sal (campanha de Dilma).
Entre o silêncio e a generalidade, fico com a segunda.
Claudio acha pouco que um candidato fale em “energia limpa”. Eu, ao contrário, acho isso um ato de coragem e uma diretriz política claramente aberta para o futuro. Ele vê com suspeita e banaliza a defesa dos ambientes naturais e da energia solar, contrapondo a isso a necessidade reprimida que os brasileiros têm de energia elétrica e, por extensão, o investimento pesado em usinas hidrelétricas, que forneceriam energia mais barata. Não parece se importar nem com o uso intensivo dos recursos hídricos (que não são renováveis), nem com os efeitos que isso tem sobre muitas terras e populações (o Movimento dos Atingidos por Barragens, por exemplo). Não penso assim.
Claudio é um desenvolvimentista à moda antiga, o que não é nenhum demérito. Para ele, o que conta é o progresso, o crescimento econômico, importando menos o custo disso. A maioria dos técnicos e gestores governamentais faz o mesmo, assim como a maioria dos que trabalham com energia ou petróleo, como é o caso do próprio Claudio. Há muita resistência na sociedade para que se abrace a questão ambiental e ecológica.
O desafio que ele aponta, e com o qual concordo, é comum a todos os brasileiros. Atende pelo nome de desenvolvimento sustentável e implica a proposição de outra ideia de desenvolvimento e progresso, que não seja submissa ao progresso posto em marcha pela modernidade capitalista. Trata-se de um desafio macro: “buscar soluções que atendam ao crescimento do país, à sua população pobre e mitiguem os impactos ambientais”.
Os governos brasileiros das últimas décadas não deram qualquer passo firme numa direção nova. Tentaram, quando muito, ser desenvolvimentistas, e não conseguiram, tanto que o país cresceu muito pouco durante este período.
Nesta área, portanto, não dá para fazer uma polarização que privilegie o governo atual como se ele tivesse uma proposta renovadora, pois ele não tem, nem Dilma tem. Mas dá, a meu ver, para aplaudir Marina por apresentar esta perspectiva nova, ainda que genérica. Ela pode funcionar como uma luz na escuridão. Não é pouca coisa.
Anos atrás, numa mesa-redonda de que participei no IPEA sobre desenvolvimento e Estado, argumentei em favor de uma perspectiva sustentável de desenvolvimento. Como não sou especialista no tema, fiz a defesa em termos genéricos, que penso serem importantes quando não se tem tradições muito consolidadas ou consensos fortes. Discuti a mesma questão diversas vezes e escrevi alguns textos a respeito do que considero ser o eixo do problema: a necessidade que temos de construir pactos de desenvolvimento e sustentabilidade.
Vou retomar a argumentação nos parágrafos abaixo, para encerrar esta postagem e deixar aberta a discussão, torcendo para que ela prossiga. [O texto apresentado no IPEA – “Desenvolvimento, Estado e sociedade: as relações necessárias, as coalizões possíveis e a institucionalidade requerida” -- pode ser acessado aqui no blog, na coluna da direita.]
Devemos querer desenvolvimento no Brasil, mas não podemos querer qualquer desenvolvimento.
Um desenvolvimento sustentável precisa ser proposto com firmeza. Não pode ser proclamado exclusivamente no plano doutrinário, como mera abstração, nem servir de base para que se bloqueiem projetos de crescimento econômico que se dediquem a melhorar as condições de vida da população. Mas a ideia de sustentabilidade não é em si mesma uma abstração. Surgiu como um grito de alerta e funciona tanto como parâmetro de moderação e regulação do crescimento, quanto como critério de preservação ambiental.
Uma perspectiva sustentável de desenvolvimento é indispensável para que se estabeleça uma sintonia fina entre expansão das forças de produção, apetites do mercado, necessidades coletivas e justiça social e, ao mesmo tempo, para que a economia interaja amigavelmente com a natureza. Não se trata, pois, de simples recurso preservacionista, mas de algo bem mais complexo e abrangente, que supera tanto a indiferença produtiva do ambientalismo tradicional quanto a volúpia do produtivismo incondicional.
Justamente por isso, trata-se de uma perspectiva exigente, bem mais complexa que qualquer outra do passado. Ela necessita tanto de ideias claras e arrojadas, que concebam o desenvolvimento de forma multidimensional e como projeto regulado politicamente, quanto de um pacto social que dê fundamento prático, moral e político às ideias.
O desenvolvimento desejável não pode ter as mesmas metas de antes (concentradas no econômico), nem muito menos partir dos atores de sempre – o Estado, os empresários, os trabalhadores. Precisa envolver o conjunto da sociedade e implicar uma série de ações que reformem, dinamizem e articulem os diferentes sistemas sociais (a educação, a saúde, os transportes, a infraestrutura, etc.) e alterem, portanto, a institucionalidade existente, a começar do próprio aparelho de Estado e atingindo os partidos políticos, a universidade e a comunidade científica.
O desenvolvimento hoje não depende somente do Estado, mas é inconcebível sem o Estado. Mas para coordenar o desenvolvimento, o Estado precisa ter capacidade de intervenção, ou seja, ser capaz de fazer política (econômica e social), regular o mercado, enfrentar a prevalência do sistema financeiro e liderar um pacto social substantivo.
O problema é que estes requisitos são de difícil obtenção nas circunstâncias atuais. Não porque faltem políticos dedicados ou operadores técnicos qualificados, as instituições não prestem ou o país não esteja preparado para vivenciar um novo ciclo de expansão sem ameaças à estabilidade e à segurança da população. Temos tudo isso, ainda que não em doses ideais. Temos até mesmo algumas folgas de caixa e continuamos a nos beneficiar de uma natureza pródiga e farta. Melhoramos muito em diferentes áreas – da gestão pública e privada à distribuição de renda, do conhecimento tecnológico à democracia eleitoral – e há no país uma poderosa base material para o desenvolvimento.
No entanto, carecemos do fundamental, ou seja, de boas condições para o estabelecimento de um pacto social que seja simultaneamente desenvolvimentista e aberto para a sustentabilidade, que olhe o país como um todo e dê ao mercado o peso relativo que a sociedade pode suportar, que impulsione e forneça balizes para uma reforma institucional integrada e sobretudo que condicione o avanço em termos de produtividade  a uma consistente agenda distributivista.
Pactos são produtos políticos e intelectuais. Não caem do céu. Dependem de sujeitos, atos de vontade, lideranças, batalhas de persuasão, convencimento e argumentação. Não avançam sem projetos socialmente referenciados, sem forças sociais minimamente mobilizadas, sem coalizões políticas inteligentes e generosas. Pactos são ferramentas de criação de vida coletiva, mas também são criaturas sociais, ou seja, necessitam pelo menos de uma disposição social para agir em conjunto e de atores constituídos para impulsioná-los.
Por não termos como produzir pactos deste tipo, corremos o risco de assistir a um ciclo expansionista muito mais propenso ao reforço unilateral do mercado que ao aumento da igualdade ou à democratização da sociedade. Se assim ocorrer, continuaremos sem desenvolvimento efetivo e entregues à progressiva colonização do futuro pela economia.
Se o desenvolvimento se apresenta inevitavelmente como uma proposição complexa em si mesma, então ele exige um pacto social igualmente complexo, que tenha não só algum tipo de vertebração, mas muita flexibilidade na sua agenda e muita generosidade ética e política.

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