terça-feira, 29 de março de 2011

Nascido para complicar

By Sergiones
O Partido Social Democrático anunciado pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, no último dia 21 de março nasceu com uma mácula difícil de ser apagada: ninguém o levou a sério ou tratou-o com algum respeito.
Veio à luz sob o signo da dúvida e da especulação. Afinal, o que pretendem seus criadores? Liberar o prefeito paulistano das asas protetoras do ex-governador José Serra, verdadeiro promotor da sua entrada no grande circuito da política nacional? Pavimentar o caminho para uma aproximação com a base governista no Congresso Nacional? Criar uma “terceira força” para combater a polarização PT-PSDB que domina a cena eleitoral? Ou tudo se limita a fazer poeira para cegar os transeuntes e colher alguns frutos mais à frente?
As interrogações poderiam se estender ao infinito. Se o plano for, por exemplo, estragar o pas des deux PT-PSDB, seria preciso esclarecer com que trunfos o partido acredita contar. Aqueles que o estão pondo de pé não são propriamente políticos carismáticos, não arrebatam multidões, não detém particulares atributos de liderança. Podem no máximo atrapalhar o jogo, a serviço de causas ainda mal esclarecidas, mas é discutível que consigam articular alguma opção que repercuta para elevar a qualidade do quadro partidário brasileiro. Tudo leva a crer que continuarão a flutuar numa zona pouco relevante, à espera de alguém que deles necessite e os promova.
A criação do PSD não se ajusta a nenhuma consideração criteriosa do sistema político brasileiro. O país voltou a falar em reforma política, e agora de modo mais sensato, menos apocalíptico. Cresceu o consenso de que algo pode ser feito para melhorar o sistema representativo e a maneira como as forças políticas disputam eleições, chegam ao poder e governam. Para o nascente PSD, nada disso merece consideração: ele se lança não para racionalizar o quadro, mas para complicá-lo um pouco mais. Funciona como uma câmara de eco: o que está ruim terá em mim sua mais perfeita tradução.
Não temos déficit de partidos. Eles existem aos montes, deprimidos ou eufóricos, em crise alguns, inexpressivos ou fisiológicos outros, quase todos manchados por algum tipo de imprecisão, vazio doutrinário ou incoerência. O excesso de partidos não é por si só um problema. Pode mesmo ser visto como uma virtude, expressão de um sistema aberto, democrático, competitivo. No Brasil, eles são muitos, mas só alguns poucos realmente contam. Com isso, a mixórdia de siglas acaba por confundir os eleitores e empurrá-los para a indiferença. Em sua maioria, os partidos representam pouco, não fornecem parâmetros valorativos para a cidadania, nem conseguem dizer o que pretendem e como farão para dar vida às suas pretensões. São organizações frágeis, sem magnetismo para manter agregados um punhado de seguidores e parlamentares que, em tese, se associaram por ter convicções parecidas e querer coisas parecidas. Não foram feitos para isso, e não há fidelidade partidária que possa corrigi-los.
Se há algo de que não se necessita no Brasil é de mais um partido tapa-buracos, sem caráter programático, concebido para acomodar pretensões eleitorais tópicas e estratégias políticas imprecisas.
Pois o PSD nasceu respingando isso por todos os poros. Nele cabe o mundo, exceção feita aos desafetos. Comunistas, ou quase, como o ex-delegado e deputado federal Protógenes Queiróz, socialistas do PSB, tratados como irmãos de estrada, liberais, conservadores, desenvolvimentistas, aliados ou companheiros da presidente Dilma, bem como apoiadores e assessores do governador Alckmim. O PSD nasce “independente”, mas sua independência é condicionada: está disposto a ajudar o governo federal e a honrar uma “aliança” com o governo de São Paulo, além de permanecer, firme como uma rocha, ao lado do ex-governador José Serra. Para ele, oposição e situação não são coisas para se levar a sério, deve-se mesmo transitar de uma a outra sem arrependimento. Idem com o programa partidário, que deve abarcar o que for mais útil, atraente e oportuno no momento, do direito de propriedade à modernização das leis trabalhistas, passando por outras tantas platitudes.
A flexibilidade do novo partido é radical, tanto quanto sua generosidade retórica: “Viemos para ajudar o Brasil a crescer. O PSD é um partido que nasce do povo, com o povo e para o povo brasileiro”.  Deseja ocupar um espaço etéreo, acima de diferenças entre esquerda e direita, coisas que nem existiriam mais. Seu interesse é ser “o partido que vai em frente”, ciente de que o país é “maior que as siglas partidárias”.
O lugar a ser ocupado pelo PSD, portanto, seria uma espécie de terra de ninguém que abrigaria a todos os que se sentem predestinados a ter relevo na política nacional. Um desaguadouro dos que querem manter equidistância de posições tidas como polares e antitéticas, uma plataforma de onde atrair trânsfugas e incomodados variados, flertar com os poderosos e jogar o jogo do poder. Se chamarem a isso de centro, devemos desconfiar. Não se trata de um centro, mas de um nada.
O ato de criação de um partido político deveria ser saudado como um movimento para emprestar clareza, dignidade e substância à representação política e às disputas eleitorais. O surgimento do PSD não vai nessa direção: é algo feito por políticos para políticos e em nome de conveniências políticas menores. Não diz respeito à sociedade e aos cidadãos. Sendo assim, destina-se a ter vida curta, ou marginal.
O prefeito Kassab não é dono exclusivo da iniciativa. Está acompanhado por políticos que com ele compartilham projetos de poder, interesses e trajetórias. São políticos que já vestiram muitas camisas e se vincularam a siglas, lideranças e projetos diversificados, nem sempre coerentes entre si.  Não devem ser condenados por isso, mas não há como converter o trajeto que seguiram e as opções que fizeram em exemplo de conduta. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/03/2011, p. A2).

domingo, 20 de março de 2011

Obama, o Brasil e o mundo

 Como escreveu meu amigo Luiz Mir num post que trocamos pelo Facebook, precisamos deglutir com vagar a visita de Barack Obama ao Brasil.
Mir observa com acerto que “o mais relevante dessa visita é que ao certificar publicamente a liderança do Brasil na parte sul do continente, Obama nos sobrecarrega de preocupações e custos -- quando o império elege, ele cobra”. É por aí mesmo. O Brasil se tornou um player importante, reconhecido e destinado a pesar cada vez mais no contexto internacional. Sairá de uma posição tutelada, e nessa medida, protegida e “sem responsabilidade”, para outra, impregnada de compromissos e exigências. A primeira consequência disso afeta a diplomacia, que terá de ser ainda mais qualificada. Estamos bem servidos nessa área. Outra consequência afeta a política interna: políticos, técnicos e governantes terão de levar mais a sério a política externa, rompendo definitivamente com a tradição de ignorar o que se passa além-fronteiras. Levar a sério significa, claro, estudar mais, pensar mais, ter maior competência intelectual para compreender a estrutura do mundo.
A viagem de Obama é importante pelo que representa em termos de reconhecimento do protagonismo brasileiro e de aceitação, pelos EUA, da realidade multilateral do mundo. Num de seus discursos na recepção a Obama, a presidente Dilma Roussef tocou no ponto: “Aqui não nos move o interesse menor da ocupação burocrática de espaços de representação. O que nos mobiliza é a certeza de que um mundo mais multilateral produzirá benefícios para a paz e a harmonia entre os povos”.
A viagem de Obama ao Brasil não trará grandes novidades em termos efetivos ou no curtíssimo prazo, mas deverá demarcar nova etapa nas relações entre os dois países e deles com os demais. Esse o tom, creio, do excelente artigo do professor Tullo Vigevani no Estadão: “A relação dos EUA com o Brasil tem essencialmente a ver com o novo que há no mundo contemporâneo”, escreveu (http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110320/not_imp694529,0.php). O que significa considerar um lote de questões e interesses complicados, no plano comercial e no estratégico geral. A China, que muitos acham ser a parceira preferencial do Brasil em diversos terrenos, é a bola da vez.  Mas a China, vista como o gigante que se projeta, pode não ser tão sustentável assim (seu “capitalismo comunista” é uma incógnita a toda prova) e há outros gigantes por aí. O capitalismo não corre perigos, embora seja a cada dia mais deletério e nefasto, e ao se reproduzir impõe regras de conduta e de relacionamento não propriamente favoráveis a um mundo melhor.
É impressionante a quantidade de bobagens que foram ditas, escritas e praticadas sobre a visita de Obama. Maria da Conceição Tavares detonou o cara dizendo que ele virou escravo do "bordel conservador". Outros, num acesso de furor antiimperialista, viram a visita como indício de que novos grilhões estão sendo ativados. Há os que escracham o estilo "soft power" de Obama sem saber do que se trata e os que atiram molotovs para protestar contra a situação líbia.
Isso prova que ainda patinamos no entendimento da nova estrutura do mundo. Prova, também, que a dialética social existe. Ao mesmo tempo em que Obama visita o Brasil no melhor estilo soft power, os EUA ajudam uma “coligação árabe-ocidental” a descarregar bombas e torpedos em Kadafi, ameaçando abrir uma frente de batalha na Líbia na velha linha do "big stick". São incoerências e paradoxos de um país imperial e de um mundo que, salvo melhor juízo, não comporta posturas muito “racionais” e exige, por isso mesmo, para ser compreendido, procedimentos intelectuais renovados e arejados.
Fernando Gabeira escreveu dias atrás no Estadão: "O século nos empurra para uma diplomacia preventiva. Qualquer passo nessa direção será bem-vindo, como bem-vindo é Obama". Teve gente que não gostou, achando que a frase faz excessivas concessões à diplomacia norte-americana. Da minha parte, digo que frases são frases e que essa permite que se preste atenção num traço que parece ter condições de se fixar no mundo contemporâneo. Pode-se chamar isso de soft power e dizer que Obama o encarna como poucos. Ou empregar outros valores e categorias. O que não dá é prá achar que as coisas continuam as mesmas como dantes e que Obama nada mais é que um Bush jovial e simpático.

sábado, 12 de março de 2011

Indiferentes - Antonio Gramsci


Depois de ter noticiado aqui (22/2) que Luca & Paolo, dois conhecidos humoristas da televisão italiana, leram no Festival de San Remo um longo trecho do artigo“Indifferenti”, que Gramsci escreveu em 1917, algumas pessoas me perguntaram como fazer para achar o texto. Em vez de somente passar a referência, pensei que seria melhor reproduzir o texto todo, que é belíssimo.

Segue abaixo, com o adendo de que a versão original dele pode ser acessada em

Indiferentes
Antonio Gramsci
La Città futura, 11/02/1917, pp. 1.

Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel, acredito que "viver significa tomar partido". Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão e de tomar partido. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes.
A indiferença é o peso morto da história. É a bola de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam frequentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor que as mais sólidas muralhas, melhor que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja e às vezes os leva a desistir de gesta heroica.
A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade e aquilo com que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que destrói até mesmo os planos mais bem construídos; é a matéria bruta que se revolta contra a inteligência e a sufoca. Aquilo que acontece, o mal que se abate sobre todos, o possível bem que um ato heroico (de valor universal) pode gerar, não se deve tanto à iniciativa dos poucos que atuam quanto à indiferença, ao absentismo dos outros que são muitos. O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa que se faça, deixa que se enrolem os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa que se promulguem leis que depois só a revolta fará anular, deixa que subam ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar.
A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absenteísmo. Os fatos amadurecem na sombra, poucas mãos, não submetidas a qualquer controle, tecem a teia da vida coletiva, e a massa ignora, porque não se preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de acordo com visões limitadas e fins imediatos, de acordo com ambições e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos homens ignora, porque não se preocupa com isso. Mas os fatos que amadureceram vêm à superfície; a teia tecida na sombra chega a seu fim, e então parece que é a fatalidade a arrastar tudo e todos, parece que a história não é mais do que um enorme fenômeno natural, uma erupção, um terremoto, de que todos se tornam vítimas, os que quiseram e os que não quiseram, quem sabia e quem não sabia, quem se mostrou ativo e quem foi indiferente. Estes então se zangam, gostariam de eximir-se às consequências, gostariam que ficasse claro que não deram o seu aval, que não são responsáveis. Alguns choramingam piedosamente, outros blasfemam obscenamente, mas nenhum ou poucos se perguntam: se eu tivesse também cumprido o meu dever, se tivesse procurado fazer valer a minha vontade, o meu parecer, teria sucedido o que sucedeu? Mas nenhum ou poucos se culpam pela sua indiferença, pelo seu ceticismo, por não terem dado o seu braço e a sua atividade àqueles grupos de cidadãos que, precisamente para evitar aquele mal, combatiam com o propósito de procurar o tal bem que pretendiam.
A maior parte deles, porém, perante fatos consumados, prefere falar de insucessos ideais, de programas definitivamente desmoronados e de outras brincadeiras semelhantes. Recomeçam assim a falta de qualquer responsabilidade. E não porque não vejam as coisas com clareza, e às vezes não sejam capazes de projetar belas soluções para os problemas mais urgentes ou para os problemas que, embora requerendo ampla preparação e tempo, são todavia igualmente urgentes. Mas essas soluções permanecem belissimamente infecundas, mas essa contribuição para a vida coletiva não é animada por nenhuma luz moral; é produto da curiosidade intelectual, não do pungente senso de responsabilidade histórica que quer que todos sejam ativos na vida, que não admite agnosticismos e indiferenças de nenhum gênero.
Odeio os indiferentes também porque suas lamúrias de eternos inocentes me dão tédio. Peço contas a cada um deles pela maneira como cumpriram a tarefa que a vida lhes impôs e impõe cotidianamente, pelo que fizeram e sobretudo pelo que não fizeram. E sinto que posso ser inexorável, que não devo desperdiçar minha compaixão, que não posso repartir com eles as minhas lágrimas. Sou partidário, vivo, sinto nas consciências viris dos que estão comigo pulsar a atividade da cidade futura que estamos a construir. Nessa cidade, a cadeia social não pesará sobre poucos, qualquer coisa que aconteça nela não será devido ao acaso, à fatalidade, mas sim à obra inteligente dos cidadãos. Ninguém estará à janela a olhar enquanto os poucos se sacrificam, se acabam no sacrifício. E não haverá quem esteja à janela, emboscado, com a pretensão de usufruir do pouco bem que a atividade de poucos tenta realizar e afogue a sua desilusão vituperando o sacrificado porque não ter conseguido seu intento.
Vivo, sou partidário. Por isso odeio quem não toma partido, odeio os indiferentes.

sábado, 5 de março de 2011

A Itália de Berlusconi, entre o passado e o futuro

A regra é sábia e deve ser usada com frequência: certos eventos políticos estranhos, por vezes escabrosos, somente podem ser compreendidos quando mergulhados na história das sociedades em que ocorrem. É nas águas profundas da vida social que se escondem as maiores verdades.
Não fosse assim, seria difícil compreender, por exemplo, o que leva um país como a Itália – terra de tradições grandiosas, de história e cultura riquíssimas, de pensadores, políticos e humanistas da estatura de Maquiavel, Gramsci e Bobbio, de partidos como o PCI – a ser governado por Silvio Berlusconi. A “grande Itália” parece paralisada pela “pequena Itália”, das máfias e do fascismo, que se move e mostra sua força.
Grosseiro, exibido, bufão, fascista de estilo e convicção, Berlusconi não é certamente um desconhecido. Preside desde 2008 o Conselho de Ministros, mas influi no Estado há pelo menos duas décadas. Megaempresário das telecomunicações, é um milionário poderoso. Controla boa parte da mídia italiana.
Fundou em 1993 o partido Forza Italia, que disseminou uma mixórdia de “teses” em defesa dos valores tradicionais, da liberdade pessoal, da identidade nacional contra os imigrantes, do combate à corrupção, da redução do déficit público, numa mistura oportunista de neoliberalismo e fascismo. Impulsionado pela televisão e abusando do imediatismo e da demagogia, ganhou espaço entre pequenos e médios empresários, profissionais liberais, gente das cidadezinhas e das classes médias urbanas. Venceu as eleições de 1994 e governou com uma aliança abertamente de direita (neofascistas do MSI, separatistas da Liga Norte, correntes cristãs). Demitiu-se sete meses depois, mas tornou-se líder e fator de unificação das forças mais direitistas e conservadoras do país.
Combateu encarniçadamente os governos Amato, D’Alema e Prodi, de centro-esquerda, entre 1996 e 2001. Começou então a acumular denúncias e processos legais: conluio com a máfia, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, participação em homicídio, corrupção e suborno de policiais, financiamento ilegal de partidos. Não chegou a ser condenado, mas as acusações foram compondo sua persona.
Voltou à presidência do Conselho de Ministros em 2001. Foi derrotado por Romano Prodi em 2006, mas retornou ao posto dois anos depois. Forza Italia já havia então virado Povo da Liberdade.
O populismo histriônico e autoritário de Berlusconi, seu poderio midiático, os interesses econômicos que representa e o sistemático desprezo que nutre pelos ritos, pela Constituição e pelas instituições políticas italianas são uma ameaça permanente à democracia. A Itália decaiu muito no período em que ele tem dado as cartas. A estagnação econômica, o desemprego, o empobrecimento dos trabalhadores são hoje evidentes. A política está corroída pela compra de parlamentares e magistrados, pelo cerceamento das oposições, pelo monopólio da informação. O sistema democrático sangra por todos os poros.
Berlusconi cresceu impulsionado pelo uomo qualunque, o italiano médio, fascinado pelo poder e com certo cafajestismo intrínseco, como observou Geraldo Di Giovanni, da Unicamp. A “pequena Itália” – com sua pequena política, seu localismo provinciano, sua resistência à vida cívica superior e ao Estado democrático – tem lhe fornecido bases e oxigênio. O Cavaliere é uma espécie de alterego desse universo de italianos, escreveu o professor José Claudio Berghella: “introduziu no Estado italiano um modo camorrístico de fazer política e estruturar instituições”.
Sua ascensão, porém, não teria acontecido sem o esfacelamento ético-político e cultural da esquerda italiana, em particular a de extração comunista, que hoje, desgastada intelectual e organizacionalmente, não é sequer sombra de seu passado. Tem baixa competência operacional, não consegue se unir nem definir um rumo programático. O Partido Democrático, seu maior subproduto, tem sido incapaz de atuar com vigor, coerência e credibilidade. Os diversos grupos que florescem à sua esquerda, menos ainda.
Berlusconi também foi auxiliado pela emergência da “vida líquida” na Itália, pelo capitalismo globalizado e pela disseminação da cultura do espetáculo, que contribuíram para desorganizar as forças do trabalho, minar os partidos políticos e embaralhar a relação entre representantes e representados.
Trata-se de um político pequeno, sem qualquer traço de estadista. Seria uma figura entre o folclórico e o patético, que passaria despercebida não fosse a irrupção em praça pública de suas taras e perversões privadas. Como escreveu Sérgio Augusto no Aliás (20/02/2011), o Cavaliere “abusou do poder, do fisco, da propriedade privada, da coisa pública, do sistema bancário, mas só depois que abusou do sexo virou um caso de polícia promissor”.
Acossado por denúncias e revelações sórdidas, Berlusconi está sendo mais uma vez levado aos tribunais, agora por abuso de poder, extorsão e prostituição de menor (a marroquina Karima “Ruby” El Mahrug). Declarou que não está preocupado, mas não pôde permanecer indiferente nem à fixação de seu julgamento para o dia 6 de abril, nem ao protesto de centenas de milhares de pessoas que saíram às ruas de todo o país, em 13 de fevereiro, para exigir sua renúncia e sua condenação em nome de "mais respeito pela liberdade e pelos direitos das mulheres". Acusou-as de subversivas a serviço da esquerda, valendo-se de um surradíssimo chavão antidemocrático.
Agora é saber como o futuro mostrará sua face. As reservas democráticas do país podem estar adormecidas e desorganizadas, mas pulsam a todo momento. A sociedade civil mostrou força nas manifestações de rua. Poderá crescer com isso e ajudar a que as oposições democráticas e de esquerda saiam do marasmo, acertem o passo e façam algo para projetar a “grande Itália” no lugar que merece ocupar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/02/2011, p. A2).