sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Marina, a “nova política” e a esquerda


Tela de Sergio Scatizzi

É justo, correto e necessário que se critique a “nova política” de que fala Marina Silva. Ela é efetivamente vaga e está mal explicada, gerando dúvidas, incertezas e desconfianças.
Mas a crítica prevalecente não está conseguindo acertar o foco e alcançar o alvo. Reduz a ideia a uma caricatura: a de que se resume aos “bons contra os maus”, aos “melhores e piores”, a de que é “contra os partidos” e faz “apologia da não política”.
Os críticos podem terminar por morrer pela boca.
Primeiro, porque todo pensamento progressista luta pela renovação da política. Fazer política de outro modo, mudar as regras do jogo, aproximar política e cultura, introduzir formas de democracia direta na democracia representativa, projetar as massas no Estado, radicalizar a democracia, são ideias que frequentam todas as melhores utopias, incluindo as dos críticos de Marina.
São ideias que estão no centro, por exemplo, da perspectiva da “democracia progressiva” de que falaram, entre outros, os comunistas italianos Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer e Pietro Ingrao. Inscrevendo-se com originalidade na tradição marxista que vinha de Gramsci, foram a força do eurocomunismo e ainda hoje servem para qualificar boa parte do debate político e teórico da esquerda.
A “democracia progressiva" partia da democracia política e aceitava a perspectiva de avanço processual mediante acúmulos, sedimentações e consolidações. Seu eixo era a ação coletiva de crítica, debate e proposição, de modo a promover uma dupla contestação: ao sistema e à oposição meramente negativa a ele. Contestava e construía instituições. Seu maior suposto era que qualquer processo de mudança efetiva precisaria articular diferentes temas, planos e problemas em uma sucessão de reformas concatenadas, distribuídas ao longo de um tempo que não se podia determinar.
Ela se voltava, por isso, para o tema da representação política, procurando consolidar uma reflexão que fosse crítica da ideia liberal de representação e estabelecesse uma representação entendida não de maneira corporativa e, portanto, não segundo o princípio que advoga que o representante deve se comportar e agir de acordo com instruções recebidas de quem o elegeu. Na “democracia de massas” que se concebia, a participação ocupava um papel central na formatação de um novo sistema representativo, que por ela seria “alargado” e revigorado.
A renovação da política foi insistentemente propagada por Berlinguer, por exemplo. Ele pensava que a ação progressista devia “libertar-se de uma visão redutiva da política e da luta política, que tende a avaliar a política somente em termos de votos para os partidos, de número de assentos obtidos nas assembleias legislativas, da conquista de cargos e posições de poder”. Era uma posição que tentava retirar a política do controle sufocante dos partidos, impedi-los de ocupar o Estado e as instituições a partir da chegada aos governos. Além disso, Berlinguer não aceitava que os partidos deixassem de lado “o caráter e o valor claramente políticos daqueles fatos que dão origem a movimentos e organismos que se afirmam na sociedade, por fora dos partidos, e que são indicador e consequência de questões novas que precisam ser resolvidas, de aspirações, ideias, costumes e comportamentos novos”. [Cfr. E. Berlinguer, Rinnovamento della politica e rinnovamento del Pci, in Rinascita, 4 dezembro 1981, agora in A. Tortorella, Berlinguer aveva ragione, 1994, p. 89]
A “nova política” pensada naqueles anos não adotava uma atitude “movimentista” ou contra os partidos, mas procurava estabelecer um novo modo de articular partidos e movimentos, partidos e sociedade, partidos e cidadãos, sociedade política e sociedade civil. Parece-me que algo assim faria um bem danado aos nossos tempos.
Política, além do mais, sempre é busca pelo novo e para isso precisa ser sempre nova. Se a esperança é sua razão de ser, como se repete sempre, ela não pode oferecer isso se não se apresentar como renovada e renovadora. O mais do mesmo nunca forneceu combustível para o embate político.
Em segundo lugar, propor uma “nova política” para combater o toma-lá-dá-cá usual não deveria desagradar aos que querem avanços políticos reais. Toda a esquerda, todos os democratas e progressistas têm falado isso nos últimos anos. Ou será que há, hoje, alguém que aplauda o atual padrão da política brasileira, seus personagens vetustos ou up to date, seus arranjos estapafúrdios, suas chantagens contra as medidas progressistas dos governos?
Renovar a política é quase um mantra em nossa história política recente. Tem sido manipulada pela direita. A esquerda se identifica fortemente com ela. Mas todas as oportunidades que se abriram para que se fizesse algo nessa direção foram desperdiçadas. A Nova República não teve fôlego para tanto. A Constituinte cedeu ao fisiologismo da época. Avançou muito, mas nem sequer tocou na institucionalidade política. FHC contornou o tema. Nem quando o PT – partido que cumpriu boa parte de sua trajetória com esse discurso – chegou ao governo federal e se tornou a mais importante força política do país foi dado qualquer passo na direção de uma “nova política”. O fisiologismo, as garras do sistema, a afoiteza com que se buscou a formação de alianças, a malandragem dos adversários, tudo amarrou o partido, impediu-o de atuar com desenvoltura e desidratou suas mais nobres intenções renovadoras.
Pode acontecer o mesmo com Marina Silva ou com Luciana Genro? Claro que pode. Mas isso não está dado de antemão.
Em terceiro lugar, na ideia de “nova política” (na de Marina inclusive) há um componente importante, que era claro para os comunistas italianos dos anos 1980 mas que está sendo deixado de lado: a política instituída – feita mediante partidos, regras e hierarquias – não é a única política, não esgota todo o campo da política e precisa, por isso mesmo, se encontrar com as demais formas de política. Assim como os partidos não deveriam ser os únicos protagonistas do jogo político: são os mais importantes, sem dúvida, mas isso nem sempre se deve a méritos deles e sim a injunções sistêmicas. Além do mais, por serem os protagonistas mais importantes, muitas vezes exacerbam seu poder e tendem a monopolizar o processo político.
Marina está dizendo que pretende governar com os “melhores de cada partido”. Pode ser vago, ilusório, mero estratagema de sedução e persuasão, mas não é um absurdo. Não é, na verdade, algo tão inovador assim, pois a convicção subjacente é que os “melhores” trarão consigo os respectivos partidos, ou ao menos parte deles, e nessa medida darão ao governo condições de dialogar com o Congresso.
Aécio diz que “o Brasil não é para principiantes, mas para gente competente e experiente”. Dilma, numa frase bastante contraditória, diz que “bons e maus é uma distinção muito simplista” e que, para ela, “os bons são os que têm compromisso com a inclusão social”.
São frases que podem soar como música suave para os ouvidos dos críticos de Marina, mas acrescentam pouco. Não têm a ver com “nova” ou “velha” política, mas com política feita com ou sem qualidade, com ou sem intenções sociais, com ou sem capacidade de gestão. Coisas que, de resto, não derivam automaticamente de um modo de fazer política que obedeça a partidos ou a alianças parlamentares.
Em suma, a “nova política” é uma perspectiva que está posta há tempo. Uma bandeira progressista que, como ideia, deve ser criticada, questionada, aperfeiçoada e esclarecida em termos práticos. Mas não se trata de uma bobagem, nem de conversa prá boi dormir. Se for abraçada de modo determinado, pode cumprir uma função. Num conjuntura que repõe a ideia, o melhor a fazer é contribuir para ela fique mais clara e progrida.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A subida, os riscos e o desafio de Marina




Não tenho competência para avaliar pesquisas eleitorais. Invejo os que sabem fazer isso. Sou mero leitor delas, das quais tiro algumas conclusões. Idem com debates.
Como todo mundo, fui olhar correndo os primeiros números da Pesquisa Ibope divulgada nesta terça-feira (26). Ela aponta Dilma Rousseff (PT) com 34% das intenções de voto para presidente da República e Marina Silva (PSB), com 29%. O candidato do PSDB, Aécio Neves, tem 19%, seguido de Pastor Everaldo (PSC) e Luciana Genro (PSOL), com 1% cada um. O levantamento indica que, num eventual segundo turno entre Dilma Rousseff e Marina Silva, a ex-senadora teria 45% e a atual presidente, 36%.
À primeira vista, é um cenário de horror para Dilma e sobretudo para Aécio. Era o que todos de certo modo esperavam. Marina tem peso próprio, seu recall de 20 milhões de votos em 2010 é expressivo e contou com bastante exposição nas últimas semanas. Tem pouca rejeição e parece ter conseguido sobreviver ao primeiro tiroteio contra ela. Está sabendo explorar com competência o cansaço da sociedade com a polarização PT-PSDB, atraindo o apoio de muitos refratários à política tradicional. Sua mensagem – reunir os melhores, atrair o que de há bom nos diversos campos, juntar desenvolvimento com sustentabilidade, mudar o modo de fazer política – é fácil e rapidamente assimilada pelas pessoas. Parece ser mais que uma “onda”.
Mas não diria que está tudo perdido para Dilma e Aécio. Não só porque há muitas nuvens passageiras na política, mas também porque a própria Pesquisa Ibope mostra alguns dados interessantes. Por exemplo, na modalidade espontânea da pesquisa (em que o pesquisador não apresenta a relação de candidatos), Dilma consegue boa margem: 27% contra 18% de - Marina Silva e 12% de Aécio. Para Aécio, o cenário é bem menos risonho e será o caso de perguntar de onde ele e o PSDB tirarão forças e oxigênio para perseguir Dilma e Marina. Necessitarão de um fato extraordinário, caso contrário empacarão.
Chamam muita atenção a dificuldade e a incapacidade que o PSDB está tendo para sacudir a poeira acumulada em seus armários e dialogar com a sociedade que está aí.
A pesquisa mostra também que a administração Dilma tem a aprovação de 34% dos eleitores. Eles consideraram o governo como "bom" ou "ótimo". Não é pouca coisa. No levantamento anterior, divulgado em 7/8, o índice era de 32%.
O grande gargalo de Dilma é a rejeição. Sua taxa (percentual dos que disseram que não votam nela de jeito nenhum) é alta demais: 36%, contra 18% de Aécio e somente 10% de Marina. Como alterar isso? Com números e demonstrações de sucessos obtidos até aqui não será possível. E Dilma não parece ter nenhuma carta na manga que aponte para o futuro. Ela busca um reconhecimento do que foi feito e a sociedade quer saber o que haverá de novo. Difícil.
Olhando somente para esta pesquisa, Marina tem motivos de sobra para comemorar e Aécio, para se preocupar intensamente. Por mais que tudo esteja em aberto e repleto de incógnitas, uma tendência parece ter se fixado.
O problema é saber se Marina sustentará esta subida. Cabos eleitorais adversários não têm aliviado contra ela. A grande mídia também joga pesado. Sua campanha ainda está cercada de incógnitas, causa desconfiança em alguns setores e  ressentimento em outros. Tudo isso deverá produzir efeito e caso os problemas operacionais de Marina não sejam contornados ela poderá perder fôlego.
Depois, caso se sustente, será o caso de ver que perspectivas se abrem para um governo conduzido por ela. Marina tem alguns pontos fracos, e eles são perceptíveis. Não tem um partido próprio, fracassou na fundação da Rede. Suas relações com o PSB são delicadas, e não é de se esperar que sua coligação forme uma bancada forte no Congresso. Ela terá dificuldades com os partidos majoritários. E há o problema da política econômica, que não vem sendo adequadamente esclarecido por ela.
Sua assessoria não se resume a Gianetti e Lara Rezende, e há muita gente que diz que não há ali um pensamento que prevaleça claramente. Os que estão com ela há mais tempo não pensam como Gianetti, o que me leva a crer que este está funcionando somente como um criador de balões de ensaio. Luiza Erundina, por exemplo, sua coordenadora de campanha, certamente pensa de outro modo. E deverá ter muito mais peso em um eventual governo do que Gianetti.
Se com o passar dos dias houver um esclarecimento a respeito disso, a campanha ganhará muito. Assim como ocorrerá caso ela consiga indicar que é de fato possível construir uma boa aliança política por fora das porteiras partidárias mas sem excluir os partidos, algo que dê sustentação efetiva a um governo e a um conjunto de políticas. A ideia de que a política é mais que PT vs. PSDB é boa, e pode e deve ser demonstrada.
Se tiver êxito nestes dois movimentos, Marina porá de pé seu programa: desenvolvimento com sustentabilidade, inclusão social e arejamento político. Talvez passe por aí boa parte da fórmula “democracia de alta intensidade”.
Há muita gente inflamada construindo cenários de pânico e horror no caso de uma vitória de Marina, como se ela estivesse de antemão despreparada para governar ou sem capacidade para articular apoios. Esta é uma posição que não vê o dinamismo da política e que não leva muito em conta o estado precário da institucionalidade política, a fragilidade dos partidos (incluindo PT e PSDB) e a distância que se estabeleceu entre eles e a sociedade. Além do mais, se existe algo semelhante a um “sistema” de dominação e se este “sistema” não tem poupado apoio aos governos das últimas décadas – ainda que de modo diferenciado e nem sempre de boa vontade –, por que é que deixará de apoiar Marina caso ela vença?
Em um quadro de revolução passiva como o que se prolonga desde o último quartel do século XX, não é de se prever abalos políticos abruptos, até porque se vive numa única e mesma crise sistêmica, geral, que parece paradoxalmente “estabilizada”. E porque os governos não ameaçam o “sistema”, ainda que assim o desejem.
Tudo a ser visto, pensado e bem discutido, evidentemente.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Dilma, Marina e a gestão




Tem pouco sentido o bate-boca entre Dilma e Marina – com uma casquinha de Aécio – sobre as relações entre Presidência e gestão, ou melhor, sobre o peso relativo que devem ter as funções gerenciais no exercício do cargo.
Marina acha que o papel do Presidente não é o de gerente: bons governantes são os que têm visão estratégica. Sua postura privilegia a função de liderança política. Dilma responde dizendo que o Presidente é sobretudo um administrador, um "executor" e não somente um "representante do poder". Em seu entender,  “só não se preocupa com gestão quem quer ser rainha”. No regime presidencial, o chefe do governo "tem de dar conta de tudo, de obra, aeroporto, ferrovia e Bolsa Família".
Como sabe qualquer pessoa sensata e atenta, o que se espera de um presidente, de um governador ou de um prefeito é que ele seja capaz de liderar e coordenar um projeto, um programa, um conjunto de políticas e ações. Fazer isso é bem mais do que administrar ou gerenciar. No ambiente público, estatal, a gestão administrativa é intrinsecamente política e aquele que rebaixá-la ao plano administrativo – do controle técnico, das planilhas, dos dados, do acompanhamento, da avaliação – estará rebaixando a própria função executiva que exerce. O que não significa, evidentemente, que um governante não deva se envolver na prática administrativa.
Esta visão de gestão governamental reúne em si a política dos políticos, a política dos técnicos e a política dos cidadãos, como escrevi anos atrás no livro Em Defesa da política (Editora Senac, 2ª edição, 2005). Acho interessante trazer a discussão para o momento atual.
Há, antes de tudo, a política que se concentra no poder e no usufruto por ele propiciado, na simulação e na dissimulação, no jogo do visível e do invisível, da coerção e da cooptação, naquela espécie de logro e ilusão em que prevalecem o mais forte e o mais esperto, a raposa e o leão. A política dos políticos pode ser definida como “política com pouca política” e muito poder.
Trata-se de algo revestido de uma dignidade específica, nem sempre bem compreendida e assimilada pelas pessoas. Afinal, agir tendo em vista o poder ― sua conquista, sua conservação, sua destruição  ― integra a essência da política, e não há porque condenar os que assim procedem, até porque não há nada de condenável no poder. Quando muito, podemos criticar (e tentar neutralizar) aqueles que se aproximam do poder como fim em si mesmo, que não sabem o que fazer com ele ou o empregam com finalidades escusas.
O realismo inerente à política dos políticos, porém, pode se tornar realista demais e lançar por terra projetos, valores e ideologias. Neste caso, converte-se em política dos politiqueiros, concentrada no truque, nas promessas, na luta entre facções e grupelhos, no eleitoralismo, em suma, na política miúda, parcial, corriqueira, nas “pequenas ambições” (Gramsci).
Quando pensada em chave democrática e republicana, a gestão governamental tem seu vetor na política dos cidadãos, concentrada na busca do bem comum, no aproveitamento civilizado do conflito e da diferença, na valorização do diálogo, do consenso e da comunicação, na defesa da crítica e da participação, da transparência e da integridade, numa operação que se volta para uma aposta na capacidade criativa dos homens.
A política dos cidadãos – a “política com muita política” – prevê uma entrega apaixonada e categórica às possibilidades da política: aceita a ideia de que a política nos ajuda a ir além com algum critério e sem muitos sofrimentos coletivos ou individuais. Seu protagonista é muito mais o grupo, o partido, o movimento, a massa, do que a personalidade talentosa: seu “príncipe” está despersonalizado, não se encarna num indivíduo que singularmente se destaque e nem em "multidões" indeterminadas. O “príncipe” ideal deste tipo de política é o partido político, “primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais” (Gramsci). Ele não recobre nem monopoliza todo o campo da subjetividade política, mas tem funções que até hoje não puderam ser cumpridas por outras instituições.
Nossa época – de sociedades fragmentadas, muita diferenciação e complexificação técnica – tende a abrir muitos espaços para a política dos políticos. Mas também está impactada pela crescente presença da política dos cidadãos, que aparece na disposição participativa dos cidadãos, na conquista progressiva de direitos, na ampliação dos espaços de debate público, na multiplicação dos mecanismos de controle social, na socialização da política como um todo.
O principal problema é que, paralelamente a estas duas formas de política, cresce uma terceira: a “política sem política”, ou contra a política. Ela se apoia numa hipervalorização da técnica, da gestão e da administração sobre o governar, o liderar, o discutir. É a política dos técnicos, dos executores, de algum modo associada à tecnocracia. Essa forma de política é tendencialmente centralizadora e pragmática. Delineia um protótipo de político: aquele que tem os pés no chão, que não alça voo, não se distingue por propostas ousadas nem interpela os governados. É o político que "faz coisas", maximiza a função gerencial e acredita que os membros da comunidade somente estão interessados em propostas realistas, focadas em resultados, não se deixando seduzir por ideologias, sonhos ou programas radicais.
A “política sem política” explora o imaginário inseguro e temeroso das pessoas. Acredita que elas estariam mais propensas a ficar com o óbvio, o conhecido, o previsível, do que a experimentar coisas novas, diferentes. Aceitariam mais facilmente alguém com capacidade de realizar coisas práticas e exibir honestidade, experiência e ponderação, do que alguém que as chame para aderir mais ativamente ou as convide para sonhar o futuro.
Isto tudo está no livro mencionado, especialmente no capítulo V, “As três políticas”.
De burocratas, de bons burocratas, daqueles que sabem exercer com critério, rigor técnico e postura pública as funções para as quais foram contratados, o Estado brasileiro está bem servido. Já de lideranças políticas, de estadistas e de políticos capazes de tratar o Estado como fato político, as lacunas são enormes.
FHC e Lula não eram gestores e terminaram bem, ou relativamente bem, seus governos. Fixaram-se no imaginário político como lideranças. Dilma, que se vangloria de ter aptidão administrativa, nem tanto.
O pior de tudo é que com esta polêmica superficial os candidatos vão emburrecendo politicamente a população.

sábado, 23 de agosto de 2014

Política e História


Three Studies of Lucian Freud

Os que viveram ou estudaram o fato hão de se lembrar. Quando Tancredo Neves, poucas horas antes de tomar posse como primeiro Presidente civil após o ciclo ditatorial, em março de 1985, deu entrada no hospital para dele sair morto 30 dias depois, o cenário político se turvou. O que aconteceria, naquele país habituado a golpes e expedientes autoritários? A ampla articulação política empreendida por Tancredo, costurando apoios complexos e minando resistências, parecia estar em jogo, e com ele a própria transição democrática. Nos primeiros dias, nem sequer se sabia se José Sarney poderia ou deveria substitui-lo, até porque se tratava de um vice com função acessória, destinado a facilitar a aliança com os dissidentes da ditadura.
Aos poucos, a situação se esclareceu e a crise foi debelada. A Virtù dos políticos soube enfrentar e vencer a armadilha da Fortuna. Naqueles dias, decidiu-se a sorte de um país que lutava para chegar à democracia. Tancredo, Ulysses Guimarães e o PMDB estavam, sem o saber, escrevendo a História.
Eduardo Campos não era Tancredo Neves e não estava, antes de sua trágica morte, a desempenhar o mesmo papel épico do político mineiro. Arava chão mais localizado, ainda que importante. Tancredo construía uma saída para um impasse que rebaixava toda uma sociedade. Eduardo agia em um cenário desprovido de impasses e sem a dramaticidade dos idos de 1984. Buscava protagonizar disputas presentes e futuras: desdobrava-se para que se chegasse a uma situação política polarizada de outro modo, sem a rotina vazia da contraposição PT x PSDB, que inflama o país há duas décadas mas não possibilita avanços mais rápidos e contundentes.
Se Tancredo frequentava a História, Eduardo Campos estava todo na política.
Sua morte prematura, porém, converteu a disputa presidencial num drama e num recomeço. Deslocou forças e expectativas, lançando incógnitas para o processo eleitoral. Que será feito de seu “capital político”, que tinha tudo para encorpar? Que acontecerá com sua coligação, que reúne partidos pequenos, empresários modernos, ambientalistas e descontentes com os rumos da política no país? Conseguirá Marina Silva desempenhar o mesmo papel catalisador e traduzir, em linguagem política, o projeto original, tornando-o vencedor?
Eduardo Campo era um articulador político competente, função que escasseia hoje. Conversava e falava bem, tinha domínio técnico dos assuntos, era simpático e sabia dosar projeto pessoal, interesses partidários, vida familiar e interesse público. Tinha suas falhas e limitações, é evidente. Mas não ia com sede excessiva ao pote. Preparava-se para 2018, compondo aliados para atuar como um desbravador de novas possibilidades políticas, administrando conflitos e diferenças. Forjou assim sua identidade. Marina tem outra trajetória e outro estilo, mas conviveu com ele e com ele misturou águas e ideias.
O projeto a que se dedicou era maior do que ele, precisamente porque respondia a uma exigência da realidade. Teria de ser encarnado e cedo ou tarde surgiria um personagem disposto a romper com o “script desgastado e sem vida” (Luiz Werneck Vianna) que vem organizando a disputa política no país há duas décadas. Os blocos de forças que têm dado sustentação ao PT e ao PSDB ficaram porosos demais, não podem fornecer base para avanços rápidos e consistentes.
Esta condição objetiva repele a santificação de Eduardo Campos.  Sua morte não estava prevista nem poderia ter sido controlada. Superpôs-se a planos e cálculos. Um desígnio da Fortuna. Seus desdobramentos e efeitos, sua eventual positividade, não cairão do céu. Para que colem na vida prática, terão de contar com a Virtù dos que abraçarem o próprio projeto.
Virtù significa muitas coisas, mas neste caso se confunde, sobretudo, com valorização da unidade política, eliminação de personalismos e construção de consensos. Trata-se da formação de um novo bloco de forças sociais. Exige disposição e sacrifício, boa dose de pragmatismo e uma pitada de fantasia. Pode encontrar personificação tanto no PSB quanto em Marina Silva, tanto nos socialistas quanto nos “sonháticos”, pois depende essencialmente de boa vontade e ponderação.
Marina tem uma boa base de onde arrancar, os votos obtidos em 2010. Sua biografia fascina. Sabe se posicionar. Tem pontes sólidas com setores importantes da população e muitas possibilidades de interagir com outros. Há os indecisos e os predispostos a anular o voto, que podem mudar de posição. Há os evangélicos que, por fidelidade religiosa, poderão apoiá-la. Há os que vêm nela – como faziam com Eduardo – uma alternativa à polarização PT x PSDB. E há os marinistas de primeira viagem, que a entendem como uma opção antissistêmica e de renovação política pela via do ambientalismo.
Neste universo, estão tanto os seguidores mais dogmáticos, a quem não incomoda o tom por vezes messiânico de Marina, quanto os que se sentem abandonados pelos partidos e querem algo diferente. Ou seja, os jovens, boa parte dos quais amadureceu nas ruas de junho de 2013. São eles que podem fornecer a Marina o principal combustível de campanha, potencializando o que ela já tem e o que lhe será concedido pela máquina do PSB, se essa a acompanhar com dedicação.
Como Marina e o PSB administrarão esse compósito de forças, interesses e expectativas é algo a ser visto nas próximas semanas. A política é sempre uma sucessão de teoremas, que somente podem ser demonstrados mediante o discernimento e o empenho dos protagonistas.
Chances consistentes de consolidação e crescimento de seu nome existem. Estão aí, soltas, prontas para serem processadas. Para isso, a campanha de Marina terá de se unificar e de esclarecer o que há de substantivo e factível em seu programa de governo, seja no que diz respeito ao desenvolvimento sustentável, seja no plano dos direitos e das políticas de igualdade e bem-estar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/08/2014, p. A2]