segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Por que falar em “esquerda democrática”?


Tarsila do Amaral, Operários. 1933

A época em que vivemos flerta o tempo todo com a ideia de que esquerda e direita seriam conceitos que já não teriam sentido. Não são poucos os que dizem que eles não servem mais para explicar os embates políticos e os alinhamentos ideológicos.
Em parte por causa disto e em parte porque o circuito político e intelectual está bastante confuso hoje em dia, o surgimento de um manifesto falando em apoio da “esquerda democrática” à candidatura de Aécio Neves provocou alguma celeuma. (O manifesto pode ser encontrado e endossado em www.esquerdademocratica.com.br).
A celeuma encontrou duas traduções típicas nas redes.
Uma diz que seria inapropriado (os adjetivos usados não foram bem este) entender Aécio como um político de esquerda, já que ele seria a quintessência do “neoliberalismo”. Os que assim falaram, confundiram apoio com identificação. O manifesto jamais tratou Aécio como sendo um político de esquerda, mas somente procurou expressar o apoio que a ele dão alguns democratas e pessoas de esquerda que não se sentem representadas pelo PT e que pensam que há outras esquerdas fora do circuito petista. São coisas bem diferentes.
Deixemos de lado, por ora, a questão de saber se se deve ou não definir o eventual futuro governo Aécio como “neoliberal”. Observo, porém, que um governo se define de dois modos: por seu programa, compromissos e aliados, e por seu desempenho efetivo. O governo Aécio não começou, sequer se sabe se será eleito; portanto, não dá de antemão para dizer que será "neoliberal". Nem mesmo se apelarmos para outros governos apoiados pelo PSDB, pois eles existiram há muito tempo (1995-2002) e o mundo e as circunstâncias mudaram demais. O próprio neoliberalismo já não é mais um horizonte razoável hoje.
Quanto ao programa, aos compromissos e às alianças feitas em torno de Aécio, não consigo ver em que elas possam ser definidas como "neoliberais". Com o perdão da simplificação: neoliberal hoje virou um chavão, usado para tentar desqualificar certas posições. Não houve nada mais "neoliberal" no Brasil do que o ciclo petista, que facilitou tudo para o grande capital financeiro e o mercado, por exemplo, ainda que não tenha feito somente isto.
A segunda tradução explorou a ideia de que esquerda e direita não fazem mais sentido, que seria melhor falar em “progressistas e conservadores”, por exemplo. A esta ponderação, com a qual não concordo, tenho respondido da seguinte maneira.
O conflito político que conta, hoje, entre nós no Brasil, é o conflito entre duas formas de esquerda. Uma delas, a do PT, precisa por a mão na consciência, se rever e se reformular, pois decaiu praticamente ao rés do chão. Hoje, é difícil dizer que o PT represente uma esquerda avançada. Não sabemos o que ele pensa, exceção feita à disposição de continuar distribuindo bolsas. Em seus governos e em seus documentos, as reformas estruturais são proclamadas, mas não são levadas à prática, nem desenvolvidas teoricamente. Nele, não há mais valores democráticos profundos, de que são feitas as esquerdas. Não há republicanismo, em que pese Dilma usar esta expressão ad nauseam, o que pode ser mais reflexo de uma carência do que de uma convicção.
A “outra” esquerda é na verdade um universo plural. Seria mais certo falar em “outras” esquerdas. Entre elas, a esquerda democrática é a que se contrapõe de forma mais típica à primeira esquerda. Pretende, na verdade, atuar para estimular o PT a rever procedimentos e a se reencontrar com sua própria história. Nesta segunda esquerda, portanto, há lugar para setores do PT, assim como para do PSDB, para comunistas, liberal-socialistas, democratas liberais, socialistas e democratas cristãos, entre outros integrantes do que se poderia ver como polo “progressista” da sociedade.
Não penso que PT e PSDB possam ser tratados pela dicotomia esquerda e direita. Um não está "mais à esquerda" ou à direita do outro, a não ser em termos de agitação e propaganda eleitoral. Os dois pertencem ao campo da socialdemocracia, portanto da “centro-esquerda” ou da esquerda democrática.
O que vem a ser isso?
Comecemos pela esquerda: “amplo e diversificado universo de homens e mulheres que defendem a democracia política, o pluralismo e a justiça social como base para uma sociedade mais igualitária, fraterna”. Trata-se, pois, de uma posição que pensa que o capitalismo precisa ser politicamente regulado, a renda precisa ser mais bem distribuída, a propriedade privada desconcentrada, as políticas sociais incrementadas e o Estado, democratizado e impregnado de participação de massa, e assim por diante.
Este universo, por ser plural, comporta diferentes gradações e tipos. A esquerda democrática é um deles. Ela seria a esquerda que não abre mão da democracia, não faz concessões neste terreno, trata a democracia como valor universal e valoriza suas regras procedimentais, seus valores e sua cultura. A revolução que esta esquerda democrática concebe é reformista, não "revolucionária": é um movimento progressivo de transformações estruturais. Precisamente por isso, ela é bem mais flexível nas alianças e mais abrangente na cultura política, área na qual admite, por exemplo, que os liberais democráticos têm um papel importante a desempenhar na construção da igualdade social. Norberto Bobbio, por exemplo, foi um deles. Alguns partidos integram esta corrente no Brasil: PSB, PSDB, PPS, PV, Rede e parte do próprio PT.
A esta esquerda democrática (que alguns preferem chamar de centro-esquerda, a meu ver equivocadamente), opõe-se aquilo que, por contraste, poderia ser chamado de “esquerda não democrática”, entendida não como posição "autoritária", mas como corrente que não valoriza a democracia em termos de cultura e sistema de regras e procedimentos e que acredita que a revolução deve ser feita "revolucionariamente", mediante manifestações de força, lutas encarniçadas de classes e críticas frontais ao capitalismo. Seria algo que, no Brasil, teria abrigo em partidos como PSTU e PCO, em movimentos como o MST e em setores minoritários do PT. Haveria também o PSol, que se apresenta como "esquerda coerente" mas que ainda não deixou muito claro o que entende precisamente por isto.
Um traço comum a estas várias expressões da esquerda revolucionária – que são, diga-se de passagem, inteiramente dignas e legítimas –, é a convicção que cada uma delas tem de que seria a única esquerda verdadeira e de que todas as demais seriam farsas pequeno-burguesas ou expedientes de capitulação. Neste traço comum há, evidentemente, um componente de arrogância e autossuficiência, que aparece quase sempre de forma verborrágica e histriônica. Este componente, em vez de ajudar, atrapalha a afirmação das esquerdas, pois funciona como usina de disseminação de uma mentalidade, de uma cultura política, de um modo de expressão que opera em favor da diferenciação radical, da separação e da oposição entre os democratas, contribuindo para aumentar a fragmentação política e luta entre as esquerdas.
O PT tem uma história socialdemocrática, mas se desencontrou dela nos últimos anos. Em vez de fortalecer seus laços com a esquerda como um todo, preferiu se entregar ao PMDB. Em vez de valorizar a cultura comum das esquerdas (democracia, reforma social, tolerância, busca de direção intelectual, esforço para educar politicamente a população, atitude republicana na condução do Estado), optou por se dedicar à conservação do poder. Afastou-se assim da sociedade e da esquerda, perdendo autenticidade. Talvez por isso a militância petista tenha desaparecido, só voltando a ressurgir em períodos eleitorais.
O PSDB, hoje, mais por desejos da Fortuna do que por virtù própria, ressurgiu no bojo de uma aliança democrática que poderá dar a ele o norte reformador que andou meio adormecido nos últimos anos. Esta aliança esboça hoje a formação de um polo recomposto e alargado, no qual podem ser depositadas algumas importantes fichas democrático-sociais. Se esta aliança crescer e se reforçar, a trajetória da esquerda no Brasil tenderá a ser mais equilibrada e produtiva.

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