sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Os governos partidários e a dupla face do poder


Ilustração de Américo Gobbo

A fórmula seguida pelo PT para governar encontra-se hoje saturada e em fase de esgotamento. O partido errou demais nos últimos dois ou três anos, seja em suas alianças, seja na opção que fez por ter presença mais forte nos gabinetes executivos do que nas ruas.
Foram opções ruins, mas não derivaram exclusivamente de escolhas feitas por seus dirigentes. Ganharam condições de possibilidade graças às modificações que vêm afetando, em todos os países, o modo de vida moderno. Hoje, as sociedades em que vivemos já não reproduzem as antigas estruturas de classes e nem a tradicional escala de valores sociais. Nelas, a economia tem outro padrão e o capitalismo se tornou mais sólido, selvagem e desumano do que antes, impondo-se como sistema global a todos os Estados-nação. A individualidade se expandiu,  grupos e instituições já não organizam os indivíduos como antes. Há uma nova cultura em plena expansão, novas demandas e novos modos de ver o mundo crescem sem cessar. Tudo isso redefiniu o lugar, o peso e as formas da política na vida do Estado e da cidadania. Deslocou os partidos políticos e mudou a posição deles no imaginário coletivo.
Tanto quanto os demais partidos, especialmente os de esquerda, o PT vem pagando alto preço por ter de se haver com esta vida que se reorganiza em alta velocidade e a partir de um nítido vetor “desorganizador”. A renovação partidária tornou-se uma exigência tão veemente e estratégica quanto difícil de ser praticada.
O uso prolongado do poder cria hábitos conservadores: conservar o poder implica ter de por em curso mecanismos de cooptação de adversários e de ampliação de bases políticas que terminam invariavelmente por refrear planos de renovação procedimental, de formação de novos quadros e novas lideranças e de progressão política e cultural. O poder atrai e em boa medida convida à acumulação de mais poder e à acomodação. Força à sua própria reprodução em escala sempre mais ampliada. É a dupla face do poder: ele faz e pode muito, mas também fascina em excesso, vicia e sobrecarrega seu detentor.
Ao menos até os tempos atuais, tem-se confirmado a “maldição” hobbesiana: “É tendência geral de todos os homens um perpétuo e irrequieto desejo de poder, que cessa apenas com a morte. E a causa disto nem sempre é que se espere um prazer mais intenso do que aquele que já se alcançou, ou que cada um não possa contentar-se com um poder moderado, mas sim o fato de não se poder garantir o poder e os meios para viver bem que atualmente se possuem sem adquirir mais ainda». (Hobbes, Leviatã, 1651).
Trocas de comando ajudam a reanimar a tropa, poder-se-ia dizer, mesmo quando operadas a partir do interior de um mesmo partido no poder. É como periodicamente trocar o ar dos ambientes. Quando, porém, este partido não se mostra particularmente profícuo na produção de quadros, as trocas de comando se tornam dilemáticas, dolorosas, a inserção de novas ideias não avança e a ação governamental tende à rotina e à mesmice.
Não é verdade que partidos de esquerda ou progressistas sempre pratiquem políticas progressistas e tenham sucesso garantido somente por serem progressistas. Falhas acontecem, preços precisam ser pagos por alianças “à direita” e a fadiga de material sempre pode terminar por se fazer sentir. Aconteceu isto, por exemplo, no final do governo FHC, que culminou na ascensão do PT ao primeiro plano da política nacional. Passou-se algo semelhante no ocaso da ditadura militar, que viu quase passivamente o processo político ultrapassar o ritmo e a cadência do projeto de abertura.
Também não é verdade que partidos conservadores, elitistas ou que “não ligam para os pobres” sigam sempre políticas conservadoras ou não possam adotar medidas progressistas que mudem para melhor a face de uma sociedade. Partidos de esquerda são indispensáveis como fatores de avanço, mas não podem garantir tudo, nem muito menos fazê-lo sozinhos. E não são imunes a erros. A dinâmica mais geral das sociedades também são fontes geradoras de avanços sociais, especialmente quando apontam para a modernização e a democratização social, como ocorre em linhas gerais desde a segunda metade do século XX. Tem sido esta dinâmica a maior responsável pelos avanços sociais que vêm ocorrendo no Brasil. Direitos sociais importantes (Previdência, Saúde e Educação) se fixaram no Brasil durante a Era Vargas e, mais tarde, durante a ditadura militar, seja porque eram funcionais à expansão do capitalismo, seja porque se ajustavam às orientações trabalhistas que apoiavam Getúlio. O Estatuto do Trabalhador Rural foi legalizado, no Brasil, em 1966, em plena ditadura militar. Medidas de avanço podem ser garantidas – às vezes até com maiores chances de sucesso e sustentabilidade – por pactos políticos e por movimentos da sociedade civil que tenham força para condicionar as ações e as opções governamentais. Para fazer com que o Bolsa Família avançasse, os governos Lula e Dilma precisaram recorrer a partidos não propriamente progressistas, como o PMDB.
No famoso Política como vocação, Max Weber escreveu: “Os primeiros cristãos sabiam perfeitamente que o mundo estava dominado por demônios e que o indivíduo que se comprometesse com a política, isto é, com os instrumentos do poder e da violência, estava concluindo um pacto com potências diabólicas; sabiam aqueles cristãos não ser verdade que o bem gerasse unicamente o bem, e o mal unicamente o mal: de fato, constata-se, antes e com muita frequência, o fenômeno inverso. Quem não conseguir entender isto é, politicamente falando, uma criança”.
Do mesmo modo se poderia acrescentar, seguindo aos filósofos da política: o “bom governante” não se confunde com a pessoa caridosa que jamais peca e segue sempre os caminhos da justiça e da bondade. Talvez ele seja bem mais o político realista e pragmático do que o ideólogo que se orienta por princípios rígidos, já que, por atuar nas esferas amplas do poder, sua virtude repousa na capacidade que tiver de operar, com prudência, flexibilidade e racionalidade, sistemas, interesses, apoios e adversários complicados. Em algum momento, poderá resvalar para o lado negro da Força, contrariar a moral vigente ou desmentir a si próprio. Além do mais, os atos do “bom político” podem gerar efeitos colaterais negativos ou exigir o emprego de métodos condenáveis.
Pode ocorrer o inverso com o “mau governante”, ou com aquele que governa de modo politicamente conservador. Efeitos inesperados podem derivar de sua atuação e ajudarem a civilizar a sociedade e o Estado.
Não há, por isso, que temer trocas presidenciais. Presidentes são importantes, mas não são tudo. Exercem seus mandatos em conjunto com outros e conforme regras e possibilidades que não são por eles estabelecidas segundo sua vontade. Tanto quanto o leque de forças que os acompanham, o que decide mesmo, em última instância, é o estado de ânimo da sociedade civil, sua capacidade de ação e sua disposição para impor pautas avançadas e controlar os governos.

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