domingo, 7 de julho de 2013

A vida em posição de combate



Hoje, 7 de julho, David Capistrano da Costa Filho faria 65 anos. Há 13 anos sua ausência faz-se sentir, no plano íntimo de seus inúmeros amigos e no plano político, no qual ele viveu intensamente e ocupou posição de destaque.
Não passa dia sem que eu me lembre dele. O que estaria pensando da situação política nacional, do governo Dilma, do que sobrou do movimento comunista a que se dedicou durante toda a vida?
Fomos companheiros de partido (o Partidão velho de guerra) entre 1978 e 1983, e amigos muito próximos. Nos anos de militância e atuação política conjunta, nos víamos ou nos falávamos praticamente todos os dias. Compartilhamos ideias, compromissos, textos, utopias, longas conversas, muitas reuniões. David foi o principal animador do processo de reorganização do Partidão em São Paulo, um polo magnético de enorme importância. Juntamente com o saudoso Gildo Marçal Brandão (1949-2010), que me apresentou a ele, e com outros companheiros, fizemos o jornal Voz da Unidade em seus dois primeiros anos de vida. Tínhamos praticamente a mesma idade, mas experiências completamente distintas. David nascera em casa comunista, crescera respirando e fazendo política. Eu não. Seu pai (assassinado em 1974) e sua mãe são lendas da esquerda brasileira. Ele também.
Médico sanitarista de origem, comunista por vocação e escolha, político sensível às causas democráticas e sociais, David foi um personagem raro na vida política brasileira. Foi um “idealista em estado puro” e um “rebelde com causa”, como se disse certa vez. Prefeito de Santos, gestor de saúde inovador e audacioso, David olhava para o futuro, pensava grande. Humanista radical, político com P maiúsculo e em tempo integral. Merece ser lembrado e ter seu legado conhecido.
Ter podido conviver intensamente com ele foi uma das coisas que me fizeram crescer.
Por ocasião de sua morte, em novembro de 2000, escrevi o texto abaixo, que reproduzo aqui com o intuito de recordar sua memória e contribuir para que se conheça melhor sua trajetória. Hoje, ele estaria nos ajudando a pensar a crise política nacional. Em posição de combate, como sempre.
Gostava de repetir uma frase: “Não podemos ser escravos de nada, nem mesmo de nossas próprias ideias”. Tradução perfeita de seu espírito inconformista, não dogmático e aberto ao novo.

Segunda metade da década dos 70. Estávamos em pleno combate à ditadura. Uma brisa de liberdade e democracia teimava em perturbar a abertura lenta, gradual e segura imaginada pelo regime militar. Avançava-se, mas ainda era viva a lembrança da violência de 1975, de Herzog e Manoel Fiel, da carnificina policial na Lapa.
Por um momento, naqueles anos, em certos ambientes da esquerda, alguns chegaram a arquivar a combatividade, convencidos de que se impunha uma conduta prudente, pragmática, de algum modo dissimulada. Outros se aferraram a dogmas. Não eram muitos os que aliavam inteligência política – dedicada a solucionar problemas, superar impasses, desatar laços, construir a unidade dos democratas –, luta de massas e disposição para sair à luz do dia com cara própria.
Dentre os que souberam promover esta aliança, um se destacou.
David Capistrano da Costa Filho vivia em São Paulo, depois de ter saído de Recife ainda jovem, cursado medicina no Rio e amargado sucessivas prisões. Comunista de família, linhagem e tradição, mostrava-se tão hábil, generoso e competente como sanitarista quanto como dirigente político. Era um organizador nato, um dínamo: alguém que reunia, aproximava e animava, certo de que “teriam futuro os que soubessem trabalhar o presente e valorizar o passado”. Possuía uma energia inabalável, montes de ideias, tantos sonhos e projetos. No horizonte, estavam sempre os mais pobres, os trabalhadores, a grande nação brasileira.
Aquele médico era um intelectual. Tinha prazer em pensar, escrever, estudar. Não se tratava de um mero quadro partidário, mas de um homem público, para quem saúde, educação, saneamento, habitação, eram temas pertencentes ao campo do Estado democrático. Dedicava à saúde do brasileiro horas seguidas de trabalho criativo, empenho cívico e técnico.
Tínhamos ali, enfim, um político com todas as letras e em tempo integral, para quem a política não era jogo frívolo e calculista dedicado ao poder, mas paixão, entrega, imaginação, combate por princípios, esforço de renovação e agregação.
Foi dele a iniciativa de organizar e animar a Comissão Paulista pela Legalidade do PCB, que agregaria tantas pessoas até o início dos anos 80. Por sua inspiração, desenhou-se e ganhou corpo a política engenhosa, aberta e aguerrida dos comunistas de São Paulo, firmemente ligada ao movimento social e inserida com vigor no movimento democrático.
Em 1982, no auge da campanha que levaria Franco Montoro ao governo de São Paulo, David foi hospitalizado: leucemia mielóide aguda. Lutou como um leão. Em 1985, submeteu-se a um transplante endógeno de medula, em Houston, no Texas. Ficou meses por lá, isolado. Renasceu, aprendendo a conviver com as seqüelas do longo e duro tratamento.
Retornou com tudo à política. Filiou-se ao PT, outro modo de ficar à esquerda. Foi trabalhar como secretário da Saúde em Santos. Elegeu-se prefeito da cidade em 1993, realizando uma ampla, democrática e bem-sucedida gestão.
Terminado o mandato, David voltou a atuar como médico sanitarista. Continuou procurando novas formas de cuidar da saúde e organizar serviços de saúde. Brigaria muito pela idéia do “médico de família” e não mediu esforços para coordenar o Programa Qualis (Qualidade Integral em Saúde), da Secretaria de Estado da Saúde. Mais tarde, passou a atuar como consultor do Ministério da Saúde. Permaneceria incansável.
A quimioterapia e as inúmeras transfusões, porém, haviam abalado seu organismo. O fígado seria comido por uma cirrose. De novo a luta pela vida. Os amigos, que ele sempre aproximara e reunira, reuniram-se agora em volta dele. Vários se ofereceram para doar parte do fígado. Definiram-se enfim o doador (o médico David Rummel) e a data da cirurgia. Centenas de pessoas começaram a levantar fundos para o novo transplante.
David acompanhava tudo de perto, reconhecido, emocionado. Jamais perderia, porém, o espírito público. Não se tratava de organizar uma campanha qualquer, mas de dar completo aproveitamento ao esforço dos amigos. Seria dele a idéia de transferir o eventual excedente para uma causa que fosse maior e beneficiasse os mais necessitados.
No meio de setembro, David Capistrano fez circular uma mensagem pela Internet. “É com alegria que escrevo aos amigos, companheiros e colegas, para agradecer o empenho e a solidariedade de cada um de vocês e de todos, que permitiram o êxito da campanha, em tão curto tempo. A meta foi superada. Peço que encerrem a campanha e reafirmo: o excedente será doado à Associação Saúde da Família, entidade das mais ativas e idôneas no campo da prevenção da AIDS, das doenças sexualmente transmissíveis e da gravidez precoce das adolescentes brasileiras”.
Sua morte, no dia 10 de novembro de 2000, aos 52 anos, deixou um vazio difícil de ser preenchido. De David ficou, porém, a certeza de que a vida vale sempre a pena e merece ser vivida em posição de combate.  

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