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| Ismail Shammout. A Glass of Water, 1976 |
Enquanto não ficar bem claro, para todos e no mundo todo, que judeus e judaísmo são uma coisa e o Estado de Israel é outra, bem diferente, não haverá como se formar uma opinião democrática que se oponha ao morticínio exterminador dos israelenses na Faixa de Gaza, que não para de recrudescer.A barbárie e a desumanidade desabam sobre os moradores, sob a justificativa de que é preciso responder às agressões do Hamas que estariam a ameaçar a segurança de Israel.Chega a doer a constatação de que a cultura judaica – construída ao longo de tantas perseguições e de tanta resistência heroica, berço de muitas referências políticas e intelectuais que ajudaram a civilizar e a tornar melhor o mundo – não tenha ainda conseguido erguer uma barreira ética e moral que obrigue o Estado de Israel a agir de acordo com os valores do judaísmo.Estados são Estados, sabe-se bem disso: seguem regras próprias, forjadas com o ferro frio do cálculo e do interesse de potência. São muitas vezes controlados por grupos e pessoas que se deixam guiar por critérios autocentrados, distantes de considerações humanistas ou do respeito ao próximo. Seus excessos, quando não são contidos e revertidos, provocam dor e sofrimento generalizados e reverberam internamente, afetando até os que em tese seriam seus maiores beneficiários.Para tudo é preciso existir um limite. Um limite ético, que vem da cultura, e um limite político, que vem da força das urnas e das mobilizações democráticas. Fora disso, sobra apenas o limite físico, militar. Que, a rigor, não deveria interessar a ninguém.Ações estatais tendem ao pragmatismo e ao realismo, mas nem sempre são pragmáticas e realistas. Podem se deixar levar pelo irracionalismo, pelo erro de cálculo, pela obsessão. Algo assim está entranhado na lógica da atual conduta israelense em Gaza. Quanto mais ataca e bombardeia os palestinos, mais Israel se isola e fica longe da paz. Mais rouba a esperança dos palestinos, incentivando-os à guerra e à hostilidade.Foi mais ou menos isso o que disse, entre outras coisas, Yuval Diskin, ex-diretor do Shin Bet, serviço de inteligência interna de Israel, entre 2005 e 2011. Para ele, hoje um crítico das políticas do premiê israelense Binyamin Netanyahu, se Israel não parar a construção de assentamentos em território palestino, manterá Gaza em polvorosa e impedirá que o conflito possa ser manejado com a criação de dois Estados na região. (Ler aqui.)Em Gaza, há 2 milhões de mortos-vivos, “o lugar mais trágico da Terra”, como escreveu a rainha Rania Al-Abdullah da Jordânia. Num texto publicado no Brasil pelo Estadão de hoje (Ver aqui), ela lembra que lá “as pessoas lutam contra a pobreza, a violência, o preconceito, a intimidação, a fome, a falta de assistência médica, uma vigilância constante, insegurança, privação de artigos de primeira necessidade, desesperança, educação precária, isolamento forçado, desrespeito aos direitos humanos e a dor de perder entes queridos”. Gaza é uma das mais pungentes e perturbadoras “distopias modernas”: um lugar onde pessoas são infelizes e têm medo, onde o futuro está condenado e é vivido como pesadelo e opressão.Rania reproduz a emblemática e poética frase de um jovem palestino sobre o cotidiano dos moradores de Gaza: “É como ser uma sombra de seu próprio corpo, presa no chão, incapaz de se desprender dele. Você se vê ali deitado, mas não pode insuflar vida na sombra”.É preciso “devolver vida às sombras”, enfatiza a rainha. A imagem é bela e poderosa. Não se trata somente de cessar-fogo, mas de eliminar os efeitos desastrosos do fogo: reconstruir a região e trazer seus habitantes de volta à vida.O alcance deste objetivo depende em boa medida da comunidade global. Não só dos Estados e organismos multilaterais, mas de todos. Passa pela formação de uma consciência ética e de uma opinião democrática que integre os grandiosos valores do judaísmo e dos povos palestinos, demarque claramente uma posição e se imponha sobre a frieza e a indiferença que são inerentes aos cálculos estatais.

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