terça-feira, 26 de agosto de 2014

Dilma, Marina e a gestão




Tem pouco sentido o bate-boca entre Dilma e Marina – com uma casquinha de Aécio – sobre as relações entre Presidência e gestão, ou melhor, sobre o peso relativo que devem ter as funções gerenciais no exercício do cargo.
Marina acha que o papel do Presidente não é o de gerente: bons governantes são os que têm visão estratégica. Sua postura privilegia a função de liderança política. Dilma responde dizendo que o Presidente é sobretudo um administrador, um "executor" e não somente um "representante do poder". Em seu entender,  “só não se preocupa com gestão quem quer ser rainha”. No regime presidencial, o chefe do governo "tem de dar conta de tudo, de obra, aeroporto, ferrovia e Bolsa Família".
Como sabe qualquer pessoa sensata e atenta, o que se espera de um presidente, de um governador ou de um prefeito é que ele seja capaz de liderar e coordenar um projeto, um programa, um conjunto de políticas e ações. Fazer isso é bem mais do que administrar ou gerenciar. No ambiente público, estatal, a gestão administrativa é intrinsecamente política e aquele que rebaixá-la ao plano administrativo – do controle técnico, das planilhas, dos dados, do acompanhamento, da avaliação – estará rebaixando a própria função executiva que exerce. O que não significa, evidentemente, que um governante não deva se envolver na prática administrativa.
Esta visão de gestão governamental reúne em si a política dos políticos, a política dos técnicos e a política dos cidadãos, como escrevi anos atrás no livro Em Defesa da política (Editora Senac, 2ª edição, 2005). Acho interessante trazer a discussão para o momento atual.
Há, antes de tudo, a política que se concentra no poder e no usufruto por ele propiciado, na simulação e na dissimulação, no jogo do visível e do invisível, da coerção e da cooptação, naquela espécie de logro e ilusão em que prevalecem o mais forte e o mais esperto, a raposa e o leão. A política dos políticos pode ser definida como “política com pouca política” e muito poder.
Trata-se de algo revestido de uma dignidade específica, nem sempre bem compreendida e assimilada pelas pessoas. Afinal, agir tendo em vista o poder ― sua conquista, sua conservação, sua destruição  ― integra a essência da política, e não há porque condenar os que assim procedem, até porque não há nada de condenável no poder. Quando muito, podemos criticar (e tentar neutralizar) aqueles que se aproximam do poder como fim em si mesmo, que não sabem o que fazer com ele ou o empregam com finalidades escusas.
O realismo inerente à política dos políticos, porém, pode se tornar realista demais e lançar por terra projetos, valores e ideologias. Neste caso, converte-se em política dos politiqueiros, concentrada no truque, nas promessas, na luta entre facções e grupelhos, no eleitoralismo, em suma, na política miúda, parcial, corriqueira, nas “pequenas ambições” (Gramsci).
Quando pensada em chave democrática e republicana, a gestão governamental tem seu vetor na política dos cidadãos, concentrada na busca do bem comum, no aproveitamento civilizado do conflito e da diferença, na valorização do diálogo, do consenso e da comunicação, na defesa da crítica e da participação, da transparência e da integridade, numa operação que se volta para uma aposta na capacidade criativa dos homens.
A política dos cidadãos – a “política com muita política” – prevê uma entrega apaixonada e categórica às possibilidades da política: aceita a ideia de que a política nos ajuda a ir além com algum critério e sem muitos sofrimentos coletivos ou individuais. Seu protagonista é muito mais o grupo, o partido, o movimento, a massa, do que a personalidade talentosa: seu “príncipe” está despersonalizado, não se encarna num indivíduo que singularmente se destaque e nem em "multidões" indeterminadas. O “príncipe” ideal deste tipo de política é o partido político, “primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais” (Gramsci). Ele não recobre nem monopoliza todo o campo da subjetividade política, mas tem funções que até hoje não puderam ser cumpridas por outras instituições.
Nossa época – de sociedades fragmentadas, muita diferenciação e complexificação técnica – tende a abrir muitos espaços para a política dos políticos. Mas também está impactada pela crescente presença da política dos cidadãos, que aparece na disposição participativa dos cidadãos, na conquista progressiva de direitos, na ampliação dos espaços de debate público, na multiplicação dos mecanismos de controle social, na socialização da política como um todo.
O principal problema é que, paralelamente a estas duas formas de política, cresce uma terceira: a “política sem política”, ou contra a política. Ela se apoia numa hipervalorização da técnica, da gestão e da administração sobre o governar, o liderar, o discutir. É a política dos técnicos, dos executores, de algum modo associada à tecnocracia. Essa forma de política é tendencialmente centralizadora e pragmática. Delineia um protótipo de político: aquele que tem os pés no chão, que não alça voo, não se distingue por propostas ousadas nem interpela os governados. É o político que "faz coisas", maximiza a função gerencial e acredita que os membros da comunidade somente estão interessados em propostas realistas, focadas em resultados, não se deixando seduzir por ideologias, sonhos ou programas radicais.
A “política sem política” explora o imaginário inseguro e temeroso das pessoas. Acredita que elas estariam mais propensas a ficar com o óbvio, o conhecido, o previsível, do que a experimentar coisas novas, diferentes. Aceitariam mais facilmente alguém com capacidade de realizar coisas práticas e exibir honestidade, experiência e ponderação, do que alguém que as chame para aderir mais ativamente ou as convide para sonhar o futuro.
Isto tudo está no livro mencionado, especialmente no capítulo V, “As três políticas”.
De burocratas, de bons burocratas, daqueles que sabem exercer com critério, rigor técnico e postura pública as funções para as quais foram contratados, o Estado brasileiro está bem servido. Já de lideranças políticas, de estadistas e de políticos capazes de tratar o Estado como fato político, as lacunas são enormes.
FHC e Lula não eram gestores e terminaram bem, ou relativamente bem, seus governos. Fixaram-se no imaginário político como lideranças. Dilma, que se vangloria de ter aptidão administrativa, nem tanto.
O pior de tudo é que com esta polêmica superficial os candidatos vão emburrecendo politicamente a população.

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