domingo, 5 de dezembro de 2010

Morros, guerras e paradigmas

A operação militar no Complexo do Alemão continua causando perplexidade, atenção crítica e repercussões variadas. Não poderia ser diferente. Há muita coisa inédita nela, a começar do esboço de um novo tipo de vínculo entre forças armadas e população, parte importante do que veio a ser considerado o sucesso da operação. Efeito colateral disso foi a recuperação, por parte dos militares, de uma imagem positiva deles próprios perante a sociedade e o Estado. Saídos manchados de sangue dos anos de chumbo da ditadura de 1964, os militares estão agora em condições de repor de forma plena o papel que desempenharam em muitos momentos da história, um papel muito mais de construtor da nacionalidade e de defesa do território do que de fiador da autoridade e do arbítrio estatais. É uma oportunidade e tanto, pronta para ser efetivamente aproveitada.

Um saudável e importante debate seguiu-se aos momentos mais dramáticos da ocupação, quando prevaleceu a passionalidade imagética da cobertura televisiva, em especial daquela modelada pelo padrão Globo. Estudiosos e especialistas estão hoje em atividade, apurando o foco de uma crítica particularmente fundamental, sem a qual os avanços terão muito mais dificuldade para ocorrer.

Luiz Eduardo Soares, um dos principais analistas da questão da segurança pública e da violência urbana, postou em seu blog um excelente texto sobre o tema, que é de leitura indispensável. "A crise do Rio e o pastiche midiático" (veja aqui) reitera a profundidade e as hipóteses com que aborda a questão, sobretudo aquela que insiste no intrincado e espúrio relacionamento de cumplicidade entre traficantes, criminosos e policiais: "O tráfico que ora perde poder e capacidade de reprodução só se impôs, no Rio, no modelo territorializado e sedentário em que se estabeleceu, porque sempre contou com a sociedade da polícia", observa. É algo para se destacar como plataforma de reflexão e de intervenção pública. Foi esse, aliás, o centro da excelente entrevista que Luiz Eduardo concedeu ao programa Roda Viva, no último dia 29/11, igualmente disponível no blog.

A edição de hoje, domingo, do Estadão, repercute com riqueza e competência toda a operação. Fernando Henrique Cardoso, num interessante texto publicado na página 2, defende a necessidade de uma integração positiva entre sociedade e Estado para que se possa seguir em frente: "Se agora no Rio de Janeiro as ações combinadas das autoridades políticas e militares abriram espaço para um avanço importante, é preciso consolidá-lo. Isso não será feito apenas com a presença militar, a da Justiça e a do Estado. Este está começando a fazer o que lhe corresponde. Cabe à sociedade complementar o trabalho libertador". A sua é uma posição polêmica, mas precisamente por isso corajosa e estimulante: "Enquanto houver incremento do consumo de drogas, enquanto os usuários forem tratados como criminosos, e não como dependentes químicos ou propensos a isso, enquanto não forem atendidos pelos sistemas de saúde pública e, principalmente, enquanto a sociedade glamourizar a droga e anuir com seu uso secreto indiscriminadamente, ao invés de regulá-lo, será impossível eliminar o tráfico e sua coorte de violência". Vale muito a leitura (veja aqui).

Na mesma edição, o caderno Aliás publica dois excelentes textos de Francisco de Oliveira ("A surda guerra oculta") e de Renato Lessa ("Paradigma do voo rasante", reproduzido do seu blog). Ao passo que o primeiro lembra, com propriedade, que "sob o mantra do combate ao crime organizado, o que se oculta é uma surda guerra de classes", Lessa joga luz sobre a "adrenalina cognitiva" despejada sobre os cidadãos pelo "paradigma Globocop", composto de "um narrador onipresente, dotado da capacidade de tudo prescrutar, e de uma rede de intérpretes fiéis e fidelizados". Trata-se de um paradigma que "opera no vácuo e na ausência de instituições de controle social sobre os agentes do poder executivo, para não falar da rarefação do mundo da representação política". Muito bem sacado.

No Aliás, há ainda uma entrevista muito esclarecedora com a antropóloga Mariana Cavalcanti ("Um espelho no morro").

Em suma, não falta material para que se trate a questão com seriedade e se a insira de modo sustentável na agenda democrática do país.

3 comentários:

André Henrique disse...

Boa sinopse, professor. Honrou o bom nível dos artigos.
O problema do RJ entristece a todos. Pena que tem gente argumentando na base do "bairrismo", como se houvesse uma guerra entre Estados. Infelizmente, gente que, pela idade e experiência, deveria ter mais responsabilidade, não está tendo. As idéias de FHC são polêmicas, ele as adotou depois de abandonar, como candidato, a política eleitoral, por isso, sente-se mais confortável em defendê-las. Admito que tenho dificuldade em imaginar que num país destas dimensões, de indivíduos pouco preocupados com o coletivo, a descriminação das drogas vá gerar um ambiente de paz. Certa feita, no twitter, o Luis Eduardo Soarez concordou comigo que um dos principais problemas é o tráfico de armas, até hoje, não combatido a sério. Falam tanto dos limites e dos problemas do combate bélico. Mas, até hoje, não vi combate bélico sério e entrosado com a sociedade. Talvez, desta feita, aconteça diferente. Ainda é cedo para afirmar que realmente mudou a relação polícia e cidadão.
Não há dúvida de que usuário tem de ser tratado como problema de saúde pública. E preparem os orçamentos públicos. Pois, o número de pobres que usa drogas é enorme - as famílias não podem pagar clínicas particulares. Todavia, o Estado brasileiro ainda não avançou o tanto que deveria na questão urbana e nem na expansão dos direitos sociais. O que temos visto é aumento do acesso ao mercado. Será que isto basta? Creio que não. O narcotráfico adora economia em crescimento. E, filhos drogados que assolam as famílias, não sendo eles criminosos, como ficará?
O bom do FHC é que ele é propositivo, não joga pra torcida como muitos vem fazendo quando o assunto é descriminação de drogas.

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

É um assunto complexo, aliás, uma teia de temas que formam um assunto complexo. Sempre é melhor ideias polêmicas e ensaios do que afirmações categóricas.

André Henrique disse...

Sim, o pessoal tem medo de expor o que pensa, principalmente, os políticos. Compreensível. Porque tem gente que associa a defesa da descriminação das drogas à defesa da droga. Se as visões, embora polêmicas, forem sendo debatidas na imprensa, nas universidades, de forma séria e objetiva, aos poucos, o tema mais se tornando mais digerível para os cidadãos. Mas repito, tenho resitência a idéia de liberação. Uma coisa é o médico me operar (espero que não precise nos próximos 80 anos) sob o efeito da cafeína, outra da cocaína. Agora, não liberar a tal erva da maconha para fins medicinais e de pesquisa - se é que não tá liberado - soa estranho de tão "reacionário"!