domingo, 24 de fevereiro de 2008

Ritos acadêmicos



Concursos de provas e títulos, de acesso e de defesa de teses de pós-graduação compõem boa parte do cotidiano das universidades brasileiras. É por meio deles que a academia seleciona seus quadros, diploma seus especialistas e reconhece o mérito de seus professores, possibilitando-lhes uma carreira de longo prazo.

Ao menos naqueles que dizem respeito ao corpo docente, a questão intelectual ocupa o posto de honra. Ou deveria ocupar. Os concursos para livre-docência, por exemplo, têm no mérito científico a sua peça de resistência. Também é assim com as bancas de defesa de tese. Já os concursos para prover cargos de Professor Titular são mais amplos, pois coroam a carreira docente, configurando seu último degrau e dando, a seus ocupantes, a condição de cidadãos plenos da universidade. Os Titulares foram concebidos para figurar como reservas políticas, científicas e morais das instituições acadêmicas. Somente eles, por exemplo, podem ser candidatos a reitor ou a pró-reitor nas grandes universidades de ensino e pesquisa.

Justamente por isso, concursos deste último tipo são cercados de rigorosos pré-requisitos: longa trajetória docente, expressiva produção científica na área em questão, envolvimento efetivo com as diversas atividades acadêmicas, experiência comprovada de orientação e formação de pesquisadores, estágios e estudos complementares no exterior, obtenção de bolsas de pesquisa, e assim por diante. As bancas, formadas por reconhecidas autoridades intelectuais, devem submeter os candidatos a provas substantivas e duras, no correr das quais são revistos diversos temas estratégicos, é contada uma história institucional e passada a limpo uma biografia intelectual. Até bem pouco tempo atrás, tais eventos costumavam ser cercados de grande expectativa, ensejavam uma saudável competição intelectual entre os pares e eram acompanhados com interesse e alguma vibração por alunos e professores.

Tudo isso está hoje suspenso no ar. Salvo casos isolados, os concursos perderam boa parte de sua dignidade. Há bem menos rigor neles, especialmente nos de maior relevância, que estão condicionados por muitas conveniências e acomodações. Também por isso, produzem pouco impacto na instituição universitária e não sensibilizam seu povo. Tornaram-se eventos pequenos, acompanhados por familiares e amigos e ignorados por aqueles que circulam pelas faculdades. Sequer as defesas de tese têm força para despertar a disposição comunitária que deveria estar entranhada nos estudantes. Ninguém mais se mobiliza por elas ou para elas.

Passa-se o mesmo com os concursos para Titulares, que carregam consigo as maiores honrarias e tradições acadêmicas. Concorrem a eles professores com carreiras consolidadas, normalmente veteranos em suas instituições e as provas incluem em lugar de destaque a avaliação de memoriais de atividades, concebidos para ser relatos analíticos e circunstanciados de uma trajetória intelectual. Deveriam, portanto, gerar amplo interesse institucional, agitar minimamente o corpo docente e discente, despertar polêmicas, torcidas contra e a favor. Quem não gostaria, por exemplo, de ver incensado seu mestre preferido ou desmascarado o professor pretensioso?

Nada disso, porém, acontece hoje. Sobre tais eventos, pesa o silêncio da irrelevância. Os ritos e procedimentos típicos da vida acadêmica estão sendo sufocados pelas agendas universitárias, pelo pragmatismo contábil das reitorias, pelo corporativismo de professores, funcionários e estudantes, pela massificação, pelo afã produtivista e meio predatório que contamina o dia-a-dia da universidade, pela horizontalidade que quebra as hierarquias e os atributos intelectuais.

Concursos de provas e títulos nunca foram, e jamais poderão ser, o capítulo mais importante do cotidiano universitário. Tinham o mérito, porém, de indicar caminhos e facilitar o autoconhecimento institucional, retendo e renovando tradições intelectuais. Por meio deles, professores e estudantes eram incentivados a se apropriar da história mais profunda da universidade, fortalecendo assim os laços comunitários de identidade e projeto.

Os concursos converteram-se em procedimentos burocráticos, ritos esvaziados de densidade ética. Exceções à parte, destinam-se a distribuir cargos e diplomas, não a selecionar quadros ou a premiar méritos. São precedidos e seguidos por disputas mesquinhas, de bastidores, muitas vezes alheias a critérios de competência e merecimento. São acompanhados sem maior interesse institucional. Estão a correr o risco de se transformar em pastiche, imitação grosseira de estilos antigos, que já não mais respiram livremente.

Na universidade dos nossos dias, há muito mais que crise financeira e de gestão, muito mais que dificuldade para entrar em sintonia com o mundo. A crise se aprofundou tanto que passou a afetar o cerne da vida acadêmica, pulverizando suas rotinas, hierarquias e medidas. Nada que ocorre nas faculdades parece ter força para impactá-las como instituição, sequer os atos mais heróicos e rebeldes periodicamente praticados. Há alguns aplausos e certa torcida para que direitos se cristalizem, espaços se ampliem e certas reivindicações sejam vitoriosas, mas nada subsiste ao dia seguinte, nem se acumula e produz novas qualidades.

Não há como pensar que os ritos acadêmicos possam permanecer imunes ao tempo e não sofrer o efeito das transformações sócio-culturais. Brigar para que tudo volte a ser como antes seria uma batalha insensata, condenada à derrota. Mas é de se esperar que uma instituição preciosa como a universidade, por cujos espaços e estruturas correm os rios profundos da inteligência, seja capaz de reinventar a si própria, encontrando novas formas de fazer com que prevaleçam, em seu interior, as melhores práticas intelectuais e aqueles valores que ao longo do tempo a fizeram ser o que é. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/02/2007, p. A2]

2 comentários:

Anônimo disse...

Olha professor, talvez eu peque por um certo idealismo juvenil (ainda que eu não me considere idealista), mas, para a minha angústia, eu não consigo enxergar uma luz no fim do túnel para a atual situação das Universidades, especificamente as paulistas. Concordo plenamente com tudo o que você escreveu sobre a Universidade e as suas crises, mas sou muito mais pessimista do que você, talvez por ser mais fácil ser pessimista do que otimista, como eu li outro dia em um livro do Beck, por influência sua. Ou talvez por eu ainda não conhecer Gramsci a fundo e não levar como lema a bela e inteligente máxima de que "sejamos pessimistas no diagnóstico mas otimistas na ação". O fato é que pra mim parece que o caminho trilhado pela Universidade nos últimos anos é sem volta e, o que é pior, é sem rumo também. Outro dia eu estava conversando com o Milton e ele estava indignado com a indolência e apatia dos alunos, que não querem saber de nada, além das baladas e coisas do genêro. Mas eu acho que tenho a resposta - ao menos uma delas - para essa sensível queda de rendimento e de interesse dos alunos na vida acadêmica: é que, em sua grande maioria, os alunos que estão ingressando na faculdade nestes anos, marcadamente a partir de 2004, ano do meu ingresso, fazem parte da geração progressão continuada, ou seja, nós não fomos acostumados e educados para estudar em casa. Antes de chegar na faculdade eu nunca tinha estudado em casa e sempre passava de ano tranqüilamente. Existem as exceções - e eu me considero uma delas - de alunos que ainda assim chegam na Universidade querendo algo além de diversão e baladas. Mas é muito raro, como posso comprovar todos os dias aqui na faculdade. Então me parece que uma categoria essencial do mundo acadêmico, os alunos, estão muito aquém intelectualmente, emocionalmente e não estão maduros o suficientes para cursar com um minimo de seriedade uma Universidade. E, espero que eu esteja errado, mas eu não vejo sinais que isso vá mudar. E também não sei o que a Universidade pode fazer para lidar com essa situação absurda: alunos que se reusam a estudar. Para ajudar, a universidade enfrenta inúmeros outros problemas. Mas este me parece ser um dos centrais.
Sei lá se faz sentido o que eu escrevi, ou se você concorda, mas este é um problema muito sério aqui nas universidade paulistas, pelo menos para mim. Os desdobramentos disso - o ingresso da geração progressão continuada - na vida acadêmica, como o desinteresse pelos ritos da Universidade, são inevitáveis.
Um abraço
Leonardo

Anônimo disse...

Marco

Achei o tema fundamental, mas sua colocação ainda muito tímida. Quanto ao comentário do estudante, gostei do desabafo, mas é essencial que não se veja o problema só pelo lado do aluno - são duas questões postas, interligadas, mas completamente diferentes. A questão dos concursos da politicagem já caducou sem que se levantassem vozes de protesto. A questão educacional, da formação básica, há muitos gritos e pouca atitude. Talvez a parte mais interessante seja o pessimismo do garoto. Ainda assim, é nossa obrigação botar a boca no trombone. É o mínimo que um pequeno burguês dito esclarecido pode fazer. Além de agir concretamente sempre que for possível.
abraço, Cida