segunda-feira, 9 de junho de 2014

Decálogo sobre a Copa e o futebol




Faltam três dias para o início da Copa do Mundo de futebol. Expectativas esportivas, políticas e sociais cruzam-se no ar. Como iremos certamente falar muito do tema, pensei em fazer aqui, por escrito, uma reflexão, dizendo o que penso sobre o evento. Com isso, tento me blindar um pouco dos chatos e dos patrulheiros de plantão, que não conseguem ler ou ouvir qualquer palavra sobre a Copa sem imediatamente estigmatizarem quem fala. Para eles, hoje, torcer ou não, aplaudir ou vaiar um jogo de futebol, virou atitude política e ideológica.
1.      Não torço pela seleção brasileira de futebol. Nunca torci. Quer dizer: torci em 1970 porque eu e meus amigos – e a maioria do povo de esquerda – achamos que era preciso “disputar o evento com a ditadura”. Naquele ano, a propaganda juntava conquistas esportivas com “milagre brasileiro“, uma estratégia de legitimação. Era época dos “noventa milhões em ação, pra frente Brasil”. Não dava prá aceitar, e fomos para a rua. Também torci em 1982, porque naquele ano a seleção jogou futebol de verdade e porque havia Sócrates, Zico e Falcão. Tirando esses dois momentos, nunca me identifiquei com a seleção. Sempre me deu tédio assistir às suas apresentações e sempre deplorei o excesso de marketing, de firula, de nacionalismo fake e de oba-oba que cercaram e continuam a cercá-la, algo que me pareceu sempre desproporcional ao que jogavam e jogam de fato os jogadores. O jeito brasileiro de jogar nunca se me afigurou como uma escola de futebol.
2.   Rejeito o “patriotismo” de circunstância dos que torcem pela seleção. Com sangue verde-e-amarelo nas veias, mostram-se incapazes de respeitar as demais seleções e de reconhecer a alta qualidade do jogo em outros países.  Entendo a paixão futebolística, mas nesse caso não é disso que se trata. É uma espécie de postura de resgate do orgulho pátrio – afinal, temos de ser “melhores em alguma coisa” –, que não me diz respeito. Não somos o “país do futebol”: somos muito mais do que isso. No caso da seleção, o povo gosta mesmo é de fazer festa e zoar; não derrama lágrimas à toa.
3.   O brasileiro acha que futebol é um esporte que depende do estalo de genialidade de um ou outro Garrincha, de um novo “rei do futebol”. Não valoriza esquemas táticos, disciplina, preparo técnico, estudo e espírito coletivo, debochando das escolas que primam por isso, como é o caso da Argentina, da Espanha e da Alemanha. Nossos atletas são predominantemente simplórios em qualquer quesito que se queira. Toscos. Alguns poucos se distinguem, mas no conjunto não passam de boleiros. Futebol, em minha opinião, deveria ser praticado por times que reúnam talentos individuais, disposição tática, transpiração e entrega coletiva. Raramente temos isso no Brasil. O componente de “azar” que existe no jogo em si é ineliminável, e ajuda a fazer a graça da coisa.  Mas não pode servir de base para que se avalie a qualidade dos times ou se justifique o resultado das partidas. Pode-se dizer o mesmo dos fatores imponderáveis ou externos ao jogo (clima, temperatura, fuso horário, altitude, árbitros).   
O brasileiro gosta da beleza do jogo, até mais que do placar final. E quanto mais a seleção foi praticando um futebol de resultados, mais o povo foi-se desinteressando dela. Paulo Calçade, cronista do Estadão, escreveu hoje: “Desenvolvemos uma relação antropofágica com a seleção, bem diferente da maneira como vemos e percebemos os clubes. Pode ser em função do distanciamento dela em relação ao povo, da péssima imagem de seus cartolas ou até da carência de conteúdo no jogo nosso de cada dia. Quando o Brasil entra em campo, então, é para exibir o suprassumo da beleza”. Bem escrito e bem posto.
4.   Para mim, paixão futebolística se tem pelo clube do coração. E basta. No futebol, sou corintiano, não brasileiro.
5.    A seleção brasileira atual é medíocre, no sentido exato da palavra: não é nem muito boa, nem muito ruim. Média. Tem bons jogadores, mas nenhum gênio, por mais que busquem apresentar Neymar como tal. Joga para não perder, não para encantar. Não tem ousadia. Seus armadores são burocráticos. Privilegia brucutus e gente que abaixa a cabeça para o técnico e gosta de simular faltas em nome da malandragem. Felipão é um técnico medíocre, que se segura no fato de ser um “motivador” e de compor com os jogadores uma “família” de atletas obedientes e bem-comportados. Como disse o Luís Fernando Veríssimo na sua crônica de 08/06/2014 (Estadão e Globo), “o segredo do sucesso do Felipão é que ele é um jogador de damas. Não é um estrategista. Não tem esquemas brilhantes nem manobras com nomes de gênios russos. Em suma, não é um jogador de xadrez. É um simples no melhor sentido”. Veríssimo acha que precisamente por isso ganhará a Copa. Pode até ser. Espero que não, pois isso terminaria por consagrar um estilo que não leva ninguém muito longe estraga o jogo.
6.   Penso que foi uma decisão ruim trazer a Copa para o Brasil. Desperdício de grana e de energia, com pouco retorno efetivo. Mas não acho que se deva, em nome disso, usar o evento para criticar o governo federal, o PT ou os governos estaduais e municipais que se envolveram. Além de ser meio ridícula, pois postula algo impraticável, a campanha “não vai ter Copa” é oportunista. Assim como são oportunistas os movimentos que tentam pegar carona na visibilidade do evento. Nada contra, que todos se manifestem. Nosso problema não é certamente ter a Copa no Brasil, mas sim o modo como ela foi aqui organizada. Devemos separar bem as coisas.
7.    No que me diz respeito, torço para que tudo funcione. Ninguém ganhará se as coisas falharem, se os estádios caírem, se seus entornos ficarem sem a devida urbanização ou se os transportes entrarem em colapso. Seria péssimo, para o futebol, e sobretudo para a política e a democracia, se se trabalhasse para criar uma crise por causa da Copa. Nada contra que se apurem responsabilidades, que se critique o modo como se organizou o evento, o desperdício, o que seja. Mas qualquer governante, de qualquer partido ou época, teria feito mais ou menos o mesmo. Lá atrás, Lula fez uma aposta razoável, calculando que o país se projetaria, ganharia uma vitrine importante, mostraria sua força e seu engenho organizacional. Fosse outro o presidente, provavelmente teria pensado do mesmo modo. (Na cerimônia da FIFA que anunciou a sede da Copa, a delegação brasileira incluía políticos de todos os partidos, e todos eles vibraram com a decisão.). Houve erros de cálculo e de encaminhamento depois, porque o evento escapou do razoável e foi transformado em fato político e geopolítico pelo próprio governo e pelas oposições. Aí muitas coisas saíram dos eixos. Estádios em locais que não conhecem o futebol, improvisação por todo lado, atrasos absurdos, muito dinheiro saindo pelo ralo, exigências descabidas, uma lógica complicada e desnecessária para o certame, com 12 estádios e muitas viagens pelo país todo. As próprias expectativas ficaram artificialmente inflacionadas. E como tudo foi indevidamente politizado, a sociedade refluiu e se desinteressou. Tentou-se fazer da Copa uma espécie de guerra: aqui não se poderá mais perder. As pessoas não se engajaram nessa filosofia.
Espanta que não se entenda “como isso foi acontecer” e se prefira atribuir o fato ao “mau humor reinante” ou ao hábito brasileiro de “falar mal de tudo”. A verdade é que as pessoas perceberam que a Copa simplesmente não é a salvação da lavoura. Irão assistir aos jogos e até mesmo torcer, mas sem muita empolgação. Hoje, o povo brasileiro tem mais motivos para se orgulhar do que a seleção brasileira: aprendeu a se ver como maior do que ela, até porque a vida ficou mais complexa e passou a ter elementos de mobilização e identificação. Como haverá festa geral, feriados à mancheia e torcidas organizadas pelos patrocinadores, um clima acabará surgindo. Muita gente vestirá uma camisa amarela e sairá por aí. Ficará a sensação de que “finalmente o brasileiro acordou”, mas será uma sensação superficial. Independentemente disso, haverá bons jogos e poderemos nos divertir um pouco.
8.   Seja como for, a Copa continua a ser basicamente um evento esportivo. Não beneficiará nem prejudicará governo ou oposição. Não terá efeito eleitoral. É neutra, deste ponto de vista, por mais poeira que se queira levantar. O máximo que poderá produzir será um pouco mais de caos no já gigantesco caos nosso de cada dia. Se o fiasco for enorme, o que não parece provável, haverá um tribunal ou uma CPI para apontar os culpados. Por sorte, a FIFA estará pronta para funcionar como bode expiatório. No plano esportivo stricto senso, não será nenhuma desgraça se a seleção perder a Copa em casa. Será, ao contrário, o reconhecimento de que existem hierarquias no futebol e que campo, dinheiro e torcida não bastam para fazer um campeão.
9.     Há, porém, uma dimensão política na Copa que me atrai. Ela diz respeito ao futebol brasileiro e ao modo como ele é jogado, organizado e dirigido. Tem a ver, portanto, com clubes, cartolas, jogadores e CBF. Nunca estivemos tão ruins. O jogo é de baixíssima qualidade, o nível, o profissionalismo e o preparo dos jogadores são precários, os cartolas são patéticos e corruptos, a CBF é tão ruim que sequer dá para descrever.  O sistema é organizado de modo sofrível, contra a população e a serviço exclusivo do mercado da bola. As partidas são tristes, há excesso de faltas, poucos gols, os campeonatos são pessimamente organizados, as torcidas se afastam dos estádios. Um espetáculo de horror. Se a seleção ganhar a Copa, toda essa situação (com a corja que a põe em movimento) ganhará fôlego, um padrão de jogo será legitimado, os cartolas continuarão intocáveis. Se perder, algo poderá mudar, ainda que não seja certo que mude. O declínio da arrogância, de qualquer modo, ajudará a que se aceite o futebol como ele é. Será uma glória ver a cara de tacho de alguns cartolas e dos chefões da CBF, o tatibitate de treinadores e boleiros tentando explicar o acontecido.
10.  Ainda que não vá torcer por ninguém – mas somente para que a seleção brasileira não ganhe –, tenho minhas preferências. A sempre simpática Holanda é a maior de todas as injustiçadas. Já deveria ter sido campeã em 1974 e 1978. A Espanha resgatou o encanto do futebol. A Argentina é admirável pela raça e pela qualidade. A Alemanha aprendeu a unir força, talento e criatividade. Essas quatro jogam muito mais do que a seleção brasileira atual. Em boa medida, fornecem a ela um modelo de jogo para o futuro. Mas não descarto que o Brasil chegue à final e conquiste o hexa. Só não acho provável e torço para que isso não aconteça. Se acontecer, paciência. Não ficarei triste nem decepcionado.
Gosto muito de Copas. Assistirei a todos os jogos que puder, discutirei com amigos brasileiros, espanhóis, mexicanos e italianos, como tenho feito em todos os últimos Mundiais. Por puro deleite e também por interesse sincero em um esporte que está entre os mais belos e emocionantes.
E que vença o melhor.

2 comentários:

Diego Rosberg disse...

Professor, mas vc não acha que os movimentos sociais devam aproveitar o momento e tentar lutar para obter alguma coisa?Afinal, a política no Brasil é oportunista e feita de escambos...

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

Acho sim. Está escrito: "Nada contra, que todos se manifestem".