sábado, 10 de maio de 2014

Está tudo dominado. Porém ...




Não há lado bom e lado mau. Nem na vida, nem na política. Sobretudo na política atual: está tudo dominado. 
Bobagem a gente achar que em Brasília as coisas são feitas de um jeito, no Espírito Santo de outro, em São Paulo de outro, que o partido A é puro e bem intencionado ao passo que o partido B é a encarnação viva do demônio, que aquele ali é sincero e o outro acolá é hipócrita, e assim por diante.Há um padrão em vigor. Um angu só, como falou Claudio Capitão.
O que se tem no Brasil de hoje não é luta de classes na política, ou confrontos esquerda vs. direita em termos programáticos ou doutrinários. É baixaria e irresponsabilidade política mesmo, descarada, de todos para com todos. Há excesso de tudo o que desagrega: adjetivos, ofensas, boatos, artimanhas geradoras de medo e insegurança, táticas de marketing, fogo amigo, pegadinhas. O campo está aberto para os que desejam por lenha na fogueira sem se preocupar em saber quem sairá queimado. Ou achando que o fogo obedecerá a seus comandos e desejos. A luta de classes não chegou à política.
Onde estão as lideranças, os estadistas, os partidos, os intelectuais, o debate democrático? 
Mas... sempre há um “mas”. Reconhecer isso é somente o primeiro passo, o mais fácil de ser dado. Temos de ir além, considerar outros aspectos, valorizar as múltiplas dimensões. Para sobreviver.
Meu roteiro de sobrevivência inclui os seguintes pontos.
1. A mediocridade afeta “eles” e “nós”: não só os políticos, mas também os cidadãos. É prova de analfabetismo político (Brecht) ficar dizendo que “eles”, os políticos, são os bandidos que nos ameaçam a “nós”, os bons cidadãos, misto de mocinhos e vítimas. A responsabilidade, aqui, se distribui.
2. A mediocridade não é um problema de pessoas: tem a ver com a estrutura da vida. O capitalismo global, turbinado pelas finanças e pelos monopólios, pela obsessão do desenvolvimento e da produtividade, está triturando tudo. Há uma obra de demolição acontecendo. Até a vida tecnológica, em redes, contribui para isso. Por que a política escaparia? Como ela também precisa ser submetida, a máquina estrutural opta por desqualificá-la. É uma forma de retirar potência da política. Na desqualificação, políticos, partidos e instituições são esmagados como folhas usadas de papel. Os partidos ficam impossibilitados de funcionar como usinas de novas propostas. Cresce o número de “movimentos”, que também pouco funcionam. Os cidadãos se agitam como podem e sabem: gritando e esperneando uns, refugiando-se na vida privada outros. No meio, abandonados, ficam os políticos, os partidos, as instituições.
3. Não há bons e maus, mas há evidentemente melhores e piores. Eduardo Graeff comentou com acerto: “entre o puro e o capeta há vários tons de cinza e ignorar as gradações, achar que tudo é a mesma baixaria, é um bom argumento para não fazer nada, deixar tudo como está para ver como é que fica”. Juliana Ruiz lembrou que “os partidos, embora sofram de males muito parecidos, não são todos iguais, e votar em um ou em outro não dá na mesma”. São observações bem postas, corretas e verdadeiras. A força do cidadão consciente, nesta hora esquisita da democracia política, depende da sua capacidade de saber escolher. De reconhecer as diferenças e os detalhes. Nem tudo é igual sob o sol. Na política sobretudo, terreno por excelência da luta e do agonismo.  Mas diferenças precisam ser explicitadas, apresentadas de modo digno, traduzidas com seriedade. Os que se julgam diferentes devem mostrar suas diferenças. E elas não podem aparecer em clima de maniqueísmo grosseiro.
4. Melhores e piores não podem ser selos retóricos. Os “melhores” só poderão ser assim vistos se se qualificarem e ganharem musculatura, se seguirem uma estrada que supere polarizações artificiais, eleitoreiras, empurradas por operações de marketing, moralismo e ressentimento. Sem despolarização, não haverá polarização real: entrechoque de projetos. E os que são efetivamente “piores” tenderão a assumir o primeiro plano e aí todos perderão.
5. Uma postura crítica básica, ao alcance de qualquer cidadão, passa pelo esforço de entender o que está rolando, considerar o processo em curso, a estrutura da vida, com suas determinações, seus entraves, suas contradições e suas possibilidades. Se está tudo dominado, a melhor opção é tomar de uma lupa e de uma lanterna com luz alta e tentar descobrir os focos de vida ativa, os melhores dentre os piores, os menos ruins, aquilo que realmente importa, as molas que podem nos projetar para frente. Tal atitude, porém, passa pelo abandono de demonizações, ressentimentos e acertos de contas. Requer algum “sacrifício”, no mínimo o de sair de si e ser socialmente generoso, modulando os interesses pessoais, privados, a partir dos interesses coletivos, públicos.
6. O analfabeto político (Brecht) acha que detonar os políticos, virar as costas para a política, para o que acha ser “antiético" e “sem esperança”, fará com que ele, analfabeto, possa tocar a vida na tranquilidade de seu casulo. Lamento informar, mas não poderá. A felicidade de cada um depende em boa medida da felicidade de todos.  Ficar num canto chorando, amaldiçoando a "sociedade doente" e “o lixo que se acumula”, vaiando à direita ou à esquerda, é tão ruim que chega a ser até pior do que as atitudes predatórias dos políticos.
7. Hoje, a critica política – base do debate público democrático – está reduzida a um bate-boca cheio de ódio, sangue e “paixão” mas vazio de substância, rigor técnico e polidez. Todos agem assim. Há mais torcida e “terrorismo” que reflexão ou ponderação. Nesta modalidade de postura “crítica”, o deboche, a mentira, o exagero e a provocação se tornam motivo de vanglória e aplauso. Há muito dispêndio de energia para alimentar um jogo de esgrima sem regras. O Brasil atual é um reino onde a polarização artificial e histriônica tornou-se a praia dominante e ameaça virar cultura.
8. Está tudo dominado, mas não porque os deuses queiram. Não se trata de fatalidade, mas de coisa dos homens. Além do mais, há frestas e clareiras, onde se pode respirar, transgredir e sonhar. Nelas germinam roteiros alternativos, criadores de antagonismos produtivos e polarizações substantivas.
9. Verdade universal é que sem política (e sem políticos) o futuro não tem chances. Boa ou ruim, dominada ou não, a política continua a ser nossa principal (única, talvez) válvula de escape. Na ausência dela, cresce o autoritarismo, aumenta o poder dos poderosos, do dinheiro, das hierarquias. Multiplicam-se os linchamentos, o uso da força, a violência, a justiça com as próprias mãos.
10. Mas não nos serve qualquer política. Não basta a política dos políticos, é insuficiente a política dos técnicos. A virtude está na política dos cidadãos: na política democrática, encharcada de cidadania ativa. Escrevi isso 13 anos atrás, no livro Em defesa da política. Penso que a ideia permanece válida e atual.

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