sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Ano Novo à moda de Gramsci


Peter Bialobrzeski - Transition, 2005
Resistam ao título. Deem um desconto para o último parágrafo. Levem em conta que quando o texto foi escrito, em 1916, seu autor não tinha muitos motivos para comemorar, nem para ser feliz. Depois disso, apreciem sem preconceitos a beleza do artigo. Que mostra um Gramsci em sua melhor forma. Literário, introspectivo, reflexivo, atento às rotinas que tornam a vida artificialmente programada.  Um Gramsci que se queria livre de cangas, protocolos e obrigações, e que queria o mesmo para todos os homens e mulheres. Que via nisso a essência do socialismo.
Ainda que goste de comemorar e ache bonito abraçar os amigos quando o novo ano desponta, não sou dos que se excitam com Anos Novos ou réveillons. Por isso me lembrei do texto de Gramsci, para com ele terminar 2011.
Que cada um comemore ou não, durma ou faça festa, se divirta como achar melhor e como puder, faça retiros espirituais, promessas e planos se assim quiser. E que todos aproveitem para pensar sobre o futuro e contribuir para que ele possa ser desenhado de maneira mais justa, democrática e coletiva.
Afinal, como nos diz a bela “Receita de Ano Novo” do grande Drummond, para ganharmos um “belíssimo Ano Novo cor de arco-íris, ou da cor da sua paz”, um Ano Novo “não apenas pintado de novo, remendado às carreiras/ mas novo nas sementinhas do vir-a-ser/novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota/mas com ele se come, se passeia/se ama, se compreende, se trabalha”, para ganharmos um ano assim não precisamos “beber champanha ou qualquer outra birita”, “expedir ou receber mensagens”, nem “fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta”.
Quase como se estivesse a parafrasear Gramsci, o verso do poeta nos recorda que “É dentro de você que o Ano Novo/cochila e espera desde sempre”.
Bom 2012 a todos.
Odeio o Ano Novo
Antonio Gramsci
Avanti! , 1º de Janeiro de 1916.
Toda manhã, ao acordar mais uma vez sob o manto do céu, sinto que para mim é o primeiro dia do ano.
Por isso odeio estes anos novos a prazo fixo, que transformam a vida e o espírito humano em uma empresa comercial, com sua prestação de contas, seu balanço e suas previsões para a nova gestão. Eles fazem com que se perca o sentido de continuidade da vida e do espírito. Termina-se por acreditar a sério que entre um ano e outro exista uma solução de continuidade e comece uma nova história; fazem-se promessas e projetos, as pessoas se arrependem dos erros cometidos, etc. É um equívoco geral que afeta a todas as datas.
Dizem que a cronologia é a ossatura da história. Pode-se admitir que sim. Mas também é preciso admitir que há quatro ou cinco datas fundamentais, que toda pessoa conserva gravadas no cérebro, datas que tiveram efeito devastador na história. Também elas são primeiros dias de ano. O Ano Novo da história romana, ou da Idade Média, ou da era moderna. Elas se tornaram tão invasivas e tão fossilizantes que nos surpreendemos a pensar algumas vezes que a vida na Itália começou em 752, e que 1490 ou 1492 são como montanhas que a humanidade ultrapassou de um só golpe para entrar em um novo mundo e em uma nova vida. Com isso, a data converte-se em um fardo, um parapeito que impede que se veja que a história continua a se desenvolver de acordo com uma mesma linha fundamental, sem interrupções bruscas, como quando o filme se rompe no cinematógrafo e se abre um intervalo de luz ofuscante.
Por isso odeio a passagem do ano. Quero que cada manhã seja um ano novo para mim. A cada dia quero ajustar as contas comigo mesmo e renovar-me. Nenhum dia previamente estabelecido para o descanso. As pausas eu escolho sozinho, quando me sinto embriagado de vida intensa e desejo mergulhar na animalidade para extrair um novo vigor. Nenhum travestismo espiritual. Cada hora da minha vida eu gostaria que fosse nova, ainda que vinculada às horas já transcorridas. Nenhum dia de júbilo coletivo obrigatório, a ser compartilhado com estranhos que não me interessam. Só porque festejaram os avós dos nossos avós, etc., teremos também nós de sentir a necessidade de festejar. Tudo isso dá náuseas.
Espero o socialismo também por esta razão. Porque mandará para o lixo todas estas datas que já não têm nenhuma ressonância em nosso espírito. E se o socialismo vier a criar novas datas, ao menos serão as nossas e não aquelas que temos de aceitar sem benefício de inventário dos nossos ignorantes antepassados.

Nenhum comentário: