domingo, 26 de abril de 2009

A República em questão


Dever-se-ia analisar com mais atenção o II Pacto Republicano de Estado por um Sistema de Justiça Mais Acessível, Ágil e Efetivo, recentemente assinado pelos representantes dos três poderes da República brasileira. Os presidentes do Supremo Tribunal Federal, da Câmara dos Deputados e do Senado, ao lado do presidente Luís Inácio Lula da Silva, num documento de seis páginas, comprometeram-se a empreender esforços para conseguir a aprovação de projetos sobre acesso universal à Justiça, agilidade na prestação jurisdicional e proteção aos direitos humanos fundamentais.

Curiosamente, o assunto não despertou emoção, nem entrou na pauta política.

Um pacto é tanto uma suspensão de litígios quanto um compromisso de defesa, algo que duas ou mais partes que não pensam obrigatoriamente do mesmo modo nem têm os mesmos interesses particulares propõem-se a fazer em nome de uma meta comum, valiosa para todos e que se encontra ameaçada. Também exige cooperação e implica uma resolução de se manter fiel a uma causa, um princípio ou uma instituição.

O gesto mesmo intriga. Se se faz um pacto republicano é porque se supõe que a República esteja a correr algum risco, não necessariamente de soçobrar, mas, por exemplo, de não estar sendo adequadamente valorizada. Se tal pacto tem no centro o sistema de justiça é porque o que existe é ruim, funciona mal ou não cumpre o que promete à sociedade. Se o compromisso é tornar mais acessível, ágil e efetivo o sistema, é porque se supõe que ele não está ao alcance dos cidadãos, é lerdo e produz poucos resultados.

É de fato o que se passa? Temos indícios de uma crise dessa magnitude, que mexe com os fundamentos éticos e a base institucional do Estado brasileiro e está a ameaçar o coração do sistema republicano, que pulsa, como se sabe, ao ritmo dos direitos humanos fundamentais, da lei e da justiça igual para todos?

A lista dos pontos estabelecidos como prioritários pelos signatários do pacto é grave. Inclui, por exemplo, a preocupação com a legislação penal e confere grande atenção à investigação criminal, aos recursos, à prisão processual, à liberdade provisória e aos critérios para a interceptação telefônica e o uso da informática em investigações. Tudo para evitar excessos e proteger a dignidade da pessoa humana. São previstas alterações no Código Penal para dispor sobre os crimes praticados por grupos de extermínio ou milícias privadas, assim como na legislação sobre crime organizado e lavagem de dinheiro. Há preocupação também com a questão do abuso de autoridade e com a responsabilização dos agentes e servidores públicos em eventuais violações aos direitos fundamentais. Pensa-se em aperfeiçoar o Programa de Proteção à Vítima e Testemunha, do Ministério da Justiça, e a legislação trabalhista, com o objetivo de ampliar as tutelas de proteção das relações de trabalho.

A se considerar o teor do documento, a situação é calamitosa. O compromisso entre os três poderes estaria, nesse caso, a endossar a tese do presidente do STF, Gilmar Mendes, de que convivemos com um “Estado policialesco”, que ele tem associado aos excessos que estariam sendo cometidos pela Polícia Federal em operações como a Castelo de Areia e Satiagraha, envolvendo banqueiros, empresários, delegados, políticos e funcionários públicos.

Seria, portanto, um cenário de horror.

Mas, e se o pacto não for um jogo de efeito mais do que algo para valer?

Como, em política, não há fumaça sem fogo, daria para vê-lo como instrumento de um “ajuste de contas” entre as instâncias superiores do Estado. Dizem, por exemplo, que há muitas arestas no interior da Polícia Federal. Mesmo as relações entre o Executivo e o Legislativo não são as melhores, com o segundo se mostrando muito subserviente ao primeiro. Poderia ser visto como palco para que se defenda a supremacia do Estado Judicial sobre o Administrativo ou o Político, ou para que alguém exiba seu amor aos ritos da Justiça. Tais coisas, diga-se de passagem, não seriam estranhas nessa nossa época em que conflitos, tensões e divergências políticas transbordam a esfera política para cair no terreno do julgamento espetacular, tido como mais rigoroso e imparcial. Judicialização da política, costuma-se dizer.

Outra maneira de analisar o pacto é lembrando que operações destinadas a defender e valorizar uma República não podem se limitar ao protagonismo dos Poderes. Um modo republicano de governar e organizar o Estado é aquele em que o interesse público se distingue dos interesses dos particulares, o direito e a lei preponderam e os cidadãos escolhem livremente seus dirigentes. Ele exige Poderes alertas e legitimados, mas só faz sentido e sobrevive se contar com bons políticos e estiver embebido de cima a baixo de educação cívica.

Possui virtude republicana uma comunidade que se organiza e se governa com instituições e hábitos públicos que são compreendidos e defendidos pelos cidadãos, que sabem valorizar a redução dos privilégios pessoais e das condições de possibilidade de imposição de um grupo ou classe sobre outros.

Atos de corrupção, abusos de autoridade ou defeitos da Justiça não podem ser vistos apenas como um problema de servidores, juízes ou políticos. Não estão associados a uma degradação da moralidade – daquilo que se refere ao homem moral, que responde por seus atos tendo em vista a própria consciência individual –, mas sim a um padrão de eticidade, referida ao homem ético, que define seus atos tendo em vista os outros homens. Têm tem muito mais a ver com vida intersubjetiva e organização social que com caráter pessoal ou força institucional.

Sem repercutir nesse terreno e envolver os atores sociais de modo amplo, qualquer pacto republicano que se propuser será limitado e poucos efeitos virtuosos produzirá. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 25/04/2009, p. A2].

Um comentário:

Cláudio André disse...

Olá professor, o II "pacto republicano" mexe com a poeira que deixa na normatividade uma democracia consolidada, que, mepiricamente, carece de sentido. será o PT um fiador da democracia e do "interesse bem compreendido" em termos gerais? segue abaixo um texto que divago sobre o último escândalo visto nos holofotes de uma mídia seletiva.


Em que democracia navegamos?

Cláudio André de Souza

Muitas análises e estudos acadêmicos poderiam ter vez e voz a partir do momento político que vivemos no Brasil de hoje. Em termos de análise, poderíamos falar da herança patrimonialista da estrutura escravocrata, dos frágeis valores democráticos e da cultura política do favor em vez da obrigação à luz do relacionamento entre representantes e representados. Haveria lugar nestas linhas, caso se buscasse marcos analíticos de observância do absurdo travestido em práticas de normalidade institucional, as críticas referentes ao auto-interesse das “elites políticas” minando as possibilidades democráticas combinadas às contribuições dos republicanistas cívicos espalhados pelas universidades, que enfocam a necessidade dos valores e do compartilhamento destes entre muitos homens e mulheres para a construção de uma sociedade que respeite as diferenças ao passo que dirima as desigualdades em termos sociais e políticos, havendo um liame entre os dois aspectos, como lembrara o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau, ao pensar a república vigorada pela vontade geral de uma nação assentada na igualdade política e material (financeira). O diálogo proposto aqui nasce dos fatos que invadem as mentes a partir das manchas de auto-interesse incrustadas nos três poderes da nossa pueril (ou desvirtuada?) república. O último de maior porte não é o dissenso entre os ministros de um Supremo Tribunal Federal (STF) que parece ter lado a partir da figura emblemática dos juízos de valor propalados pelo seu garoto-propaganda maior. O teor ácido da “farra das passagens” abre flanco para a necessidade de reflexões que dêem conta das bases valorativas de separação entre o público e o privado. Tal ideal democrático perfaz-se enquanto base constitutiva de um regime que julga ser a política a emancipação do público, do que há em comum entre pares postos em situação de igualdade. Além disso, há de se ter eco na sociedade civil os valores que sustentam políticos que passam pela porta do congresso carregando consigo vestígios dos eleitores e pregorrativa de decidir em nome e da forma destes? O que impressiona é a capacidade privatista de alguns representantes que perante as denúncias confirmadas de uso de passagens aéreas para fins privados! Ora, estamos falando de dinheiro público repassado a mandatos públicos para fins públicos! Não se trata de improbidade dos salários polpudos deles, sendo estes de caráter compensatório aos forçosos afastamentos profissionais derivada da tarefa de representar interesses e opiniões de cidadãos imersos na incapacidade de discutir e formular de corpo presente as suas próprias demandas. Alguns fatos a se pensar: em primeiro, por que até agora nãos se falou em cassação e punição aos culpados em privatizar a coisa pública? Será que tal prática privada era vista como algo normal pelas excelências? Além disso, no âmbito da cultura política se por um lado se entende a imensa desconfiança nos políticos, por outro quais valores e cidadãos sustentam um modo anti-político de se fazer política, entendendo esta enquanto o reino do público em vez do seu inverso, próprio da sociedade civil arvorada pelo mercado, espaço de contratos e relações de fins privados. Por último, há um lado positivo: tais provas cabais de total descaso com a construção de um modelo democrático de sociedade abrem a possibilidade de se reorganizar frentes de atores sociais insatisfeitos com a realidade política em que vivemos, na medida em que se converte em exemplo, confiança e prestimosidade os partidos e parlamentares que saem com menores arranhões de mais um escândalo que enquadra a democracia num retrato desgastado pelo tempo e pela falta de mimo do que se vê. Estudiosos da pós-modernidade acreditam numa falta de nexo da política fruto do descentramento dos sujeitos desalinhados de chaves explicativas ancoradas na totalidade social. Antes deste debate, a modernidade brasileira floresce a constatação do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda de que a democracia no Brasil nunca passou de um mal-entendido. Afinal, o dissabor do auto-interesse de alguns fiadores do bem comum refaz de sentido o cinismo com que grande parte da população encara com desconfiança a política enquanto espaço colonizado por uma lógica que reverte as “exceções condenáveis” em leis universais de conduta patrimonialista e, portanto, antidemocráticas. O jeitinho, o prestígio, o favor, a amizade, dentre outras formas patrimonialistas, são heranças de uma sociedade que diferenciava na matriz da raça e cultura quem mandava e quem obedecia até meados do século XIX. O mundo “público” do patrimonialismo sugere como cartão de visitas quaisquer critérios com exceção dos marcados pela democracia entendida modernamente a partir da separação entre Estado e sociedade (civil), sendo o primeiro o que é de todos e o segundo o que é permitido no tocante á subjetividade e interesses privados. Não precisamos de astúcia para perceber que as aflições do ideal democrático no século XIX chegam com vigor aos tempos atuais demonstrando a mobilização dos movimentos sociais, de setores do judiciário, do Poder Executivo e de raras exceções do Legislativo em defesa da democracia e suscitando confiança. Nada é impossível.

Mestrando em Ciências Sociais (www.ppgcs.ufba.br) pela Universidade Federal da Bahia