sábado, 22 de março de 2014

Maiorias paralisantes

As rusgas que no correr das últimas semanas têm turvado o relacionamento entre o governo Dilma e o PMDB, exageros e coreografias à parte, puseram no primeiro plano o tema das coalizões governantes.
Para que servem as maiorias que nos últimos vinte anos têm dado sustentação a Brasília? Elas forneceram base parlamentar aos governos do PSDB e do PT, mas não foram muito diferentes entre si. Cumpriram funções semelhantes: dar apoio a certos planos e ações governamentais em troca de cargos e vantagens, vistos como recursos políticos.  Por baixo do pano, porém, sub-repticiamente e talvez sem plena consciência, trabalharam para bloquear intenções reformadoras, travar a melhoria da gestão governamental e embaralhar a formulação e a execução de políticas públicas.
O resultado disso é que depois de vinte anos – período em que o país mudou bastante e melhorou em vários setores – a situação parece congelada em áreas vitais e estratégicas: na saúde, na educação, na infraestrutura, no transporte, na segurança. E, claro, na política.
Nunca a política foi tão ruim. Falta praticamente tudo nela: ideias, estadistas, lideranças, discurso, qualificação técnica, interação com a sociedade. É quase um cenário de fim do mundo: terra arrasada, à espera de algum herói que dê sentido e ponha ordem no caos. Difícil localizar alguma fonte de esperança. O fato de o país ter melhorado na sequencia do fim da ditadura militar – progressiva e lentamente a partir da Constituição de 1988 – fornece um contraste que dramatiza a questão: como foi possível chegarmos tão longe com a política que temos, ou que não temos?
Não se trata de culpar as coalizões pelo que existe de ruim, mas de vê-las por ângulos mais realistas, que sugerem, entre outras coisas, que o sistema pode estar estável, funcionar a contento em termos de seus inputs e outputs, dar condições de governança e de governabilidade aos governos, e mesmo assim o país não conseguir ser governado a ponto de enfrentar com determinação e coragem seus problemas seculares e seus déficits de eficiência e produtividade.
Coalizões fazem parte da dinâmica política. Negociações, barganhas, composições, alianças programáticas ou por interesse são como o sal da terra para a política. Quanto mais complexas e diferenciadas as sociedades, mais este sal parece necessário. Num país com 34 partidos, como o Brasil, se não há convergências e aproximações nada funciona, bate-se em ponta de faca. Especialmente quando se considera que, aqui, o sistema político foi sendo desenhado de modo a impor as composições como expediente de governo, estruturando o assim chamado “presidencialismo de coalizão”. Não há como evitá-las e elas cumprem um papel não desprezível: põem um pouco de pressão adicional sobre o Executivo – dificultando seus eventuais apetites tirânicos – e contribuem para viabilizar certas políticas e propostas provenientes dos governos. A estabilização monetária, a rotina democrática e a melhoria na distribuição da renda são exemplos emblemáticos disso.
Mas não se deveria apostar às cegas em coalizões, como se a mera existência delas garantisse automaticamente o sucesso. Coalizões sem eixo, sem densidade programática, movidas por interesses eleitorais ou pela vontade de se eternizar no poder transferem pouquíssima virtude aos governos. Sem clareza – eixos programáticos, planos, ideias – e sem coordenação inteligente, coalizões podem ser paralisantes: podem estragar partidos e viciá-los no escambo, tirar energia dos governos, dizimar talentos políticos, impedir a participação social. Terminam por arrastar governos, partidos e parlamentos para a mesmice, fazendo com que a “pequena política” sufoque a “grande política” e a impeça de respirar.
Por isso, quando o governo Dilma e o PMDB passam de “aliados incondicionais” a irmãos inimigos, exibindo ao país a mediocridade dos interesses eleitorais – ora jogando para a plateia, ora aumentando o preço de certos apoios, mas sempre com base na ausência completa de substância –, não podemos nos surpreender, mas devemos nos interrogar: como foi possível ter chegado tão longe? Até quando as coisas seguirão assim, indiferentes às dinâmicas e às expectativas sociais, aprisionadas pelas grades de um sistema que funciona mas não produz vantagem para a sociedade, nem para o Estado?
Como bem observou o analista político Carlos Melo em artigo ("Consensos negativos") publicado no caderno Aliás no dia 16/03, “o sistema assumiu uma lógica própria, funcionando, basicamente, para si mesmo”. Os que estão no jogo não parecem integrados à sociedade: falam em nome dela, mas não a representam de fato. Batem-se pelos próprios interesses e cálculos, manuseando recursos públicos como se fossem donos deles, sem visão social mais generosa. Roubam-se pedaços de poder uns dos outros – um poder discutível, porque de baixa repercussão social positiva, mas com o qual se vencem eleições. Só circunstancialmente processa-se a mágica que aproxima Estado e sociedade.
A época atual se mostra hostil à reprodução desse esquema. É ágil, dinâmica, pede respostas rápidas, busca a transparência. Está a criar o tempo todo instituições de novo tipo, que trazem consigo traços de um futuro que não seja mero prolongamento passivo do presente. Não desautoriza coalizões e busca de maiorias governantes, até porque intui que elas são indispensáveis. Mas está à espera de novas modalidades de deliberação política e de governo.

As coalizões que vêm sendo mantidas nas últimas décadas no Brasil não caminham nessa direção. Deveriam todos começar a pensar nelas com maior rigor. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/03/2014, p. A2].

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