quarta-feira, 2 de junho de 2010

A difícl viagem aos anos de chumbo


Meu amigo Luiz Sérgio Henriques, editor da revista eletrônica Gramsci e o Brasil, publicou dia 31 de maio passado um belo artigo no Estadão. Belo na forma, antes de tudo, porque seu autor é um estilista da palavra. E belo na postura, porque se trata de uma peça corajosa, que não teme enfrentar com realismo uma questão difícil, delicada e estratégica: a do ajuste de contas com os mortos, torturados e desaparecidos durante os anos da ditadura militar.

Já faz tempo que diferentes setores da opinião democrática brasileira tentam passar a limpo os crimes cometidos naqueles anos de chumbo. Trata-se, como diz Luiz Sérgio, de uma atitude nobre e digna, com a qual só se pode concordar: "chorar e enterrar os próprios mortos está na base da convivência humana, tal como a concebemos. E sobre isso não é possível transigir".

Precisamente por estar tão carregado de justiça e razão mas ao mesmo tempo ser tão dramático e pungente, o pleito muitas vezes escorrega e escapa do controle. Não conseguimos avançar cabalmente nesse terreno. A anistia tem sido vista ora como geral e irrestrita para todos (caso em que incluiria os que mataram e torturaram), ora como geral e irrestrita somente para os que agiram por convicção política, caso em que excluiria os torturadores que agiram por obrigação profissional. Há muita dificuldade de se acertar as contas com esse passado sem despertar monstros adormecidos, que habitam o imaginário político e se ocultam nas dobras da vida. O país, afinal, experimenta um longo período democrático, e talvez não seja fácil, nessa calmaria institucionalizada, encontrar brechas por onde repor agendas anteriores sem abalar demais o sistema.


Há ainda outra questão, central no artigo de Luiz Sérgio: como voltar aos anos de chumbo? Como revisitá-lo não só para passá-lo a limpo e conquistar a justiça necessária, mas aproveitá-lo como recurso para pensar e construir o futuro? Com que repertório teórico e conceitual? Dado que são as esquerdas que podem fazer isso de modo mais desprendido, estariam elas sabendo empregar essa indispensável viagem ao passado para se rever, se autocriticar e seguir em frente?

Ganharemos quase nada se voltarmos ao passado em nome da justiça e não conseguirmos nos desprender dos erros cometidos e sem superarmos a visão de sociedade e de Estado -- e sobretudo a visão de política e de reforma social -- com que boa parte das esquerdas operou durante os anos de chumbo. Afinal, como escreve Luiz Sérgio:

"Pode-se dizer que ninguém mais fala em luta armada. Verdade. Pode-se dizer, também, que ninguém defende "ditaduras progressistas", embora, em nuestra América, o pecado more ao lado e nem todos saibam resistir à tentação. Seja como for, resta por fazer um exame rigoroso de velhas categorias, que, desconfio, talvez resistam sob nova aparência. Se isso for verdade -- se a esquerda ainda não tiver esboçado os contornos de uma novíssima trama de conceitos políticos baseada na paz e nos direitos --, toda volta ao passado de chumbo e toda exigência de reparação correm o risco de se perder em recriminação facciosa ou irrealista, alheia aos valores universais que deveriam constituir uma esquerda democrática".

O artigo pode ser lido na íntegra clicando aqui.

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