quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O PT à esquerda


Obrigado, Nani.

Circula nos ambientes políticos a informação de que o PT pretende retomar um discurso de esquerda para as próximas eleições, fato que estaria a ser demonstrado por recentes declarações e documentos do partido.

Antes de saudar o fato, que pode contribuir para que se ganhe maior clareza no jogo político, é preciso avaliar a situação. O que indica ela? A presença de um movimento para enquadrar Lula, seu governo e sua candidata à sucessão, que carregam consigo uma imagem centrista e moderada bem consolidada? Ou o desencadeamento de uma operação para reerguer o partido e voltar a inseri-lo nos trilhos originais, de onde escapou nos últimos anos?

Enquadrar Lula é algo de que não se deveria cogitar, pois ele se tornou, com o tempo, maior que o PT. Hoje, segue carreira-solo, administrada por um seleto grupo de gestores leais e por uma imponente onda de culto e adoração popular, que impede até mesmo o exercício da ponderação, proíbe críticas e lhe concede oxigênio suficiente para dispensar maiores amarras e compromissos institucionais, incluindo os partidários. Seria como imaginar, mutatis mutandis, o enquadramento de um Fidel, um Jânio ou um Prestes.

Mas partidos de esquerda são seres condenados a explicar e justificar todos os seus passos. Nesse movimento, são sistematicamente tentados a reiterar convicções de antes, com as quais foram batizados e ganharam selo de identidade. Vivem de forma dilemática: precisam se renovar sempre, mas não conseguem fazer isso com facilidade, pois as tradições pesam e muitos de seus integrantes se recusam a seguir as novas orientações, regra geral decididas e impostas pelas cúpulas.

Dá-se algo assim com o PT, que desde o final dos anos 1990 enveredou por um caminho reformista, expulsou parte de suas alas tidas como “radicais”, chegou à Presidência da República e se converteu em expoente do universo social-democrata. Ao longo desse percurso, muitos erros foram cometidos, espocaram crises de identidade, diluições ideológicas e regressões fundamentalistas. Seria lógico, portanto, que suas direções se dedicassem a evitar a debandada dos militantes e eleitores saudosos dos velhos tempos, tanto quanto a atrair e soldar a adesão de novos seguidores.

A retomada de um discurso de esquerda pode ser vista como uma resposta a essa situação, uma estratégia direcionada mais ao público interno ampliado (militantes e eleitores) do que à sociedade. É como se as cúpulas partidárias estivessem a dizer: “continuamos de esquerda, não nos abandonem, não esmoreçam!” – num apelo para que não se multipliquem eventuais fugas rumo ao PSol ou à candidatura de Marina Silva, por exemplo.

É isso, mas não é somente isso. O PT também deseja se fazer presente nas campanhas de 2010, orientar seus candidatos, dar a eles combustível, recursos de combate e persuasão. Está a se movimentar para isso.

Se pensarmos em termos abstratos, típico-ideais, um partido cumpre essa meta em dois planos: olhando para as amplas massas e para o futuro.

No primeiro deles, elabora um kit de sobrevivência, um conjunto de princípios essenciais traduzidos em expressões simbolicamente eloqüentes e de fácil manuseio, estilo Estado vs. Mercado, projeto popular e democrático vs. projeto do Consenso de Washington, governo nacionalista e internacionalista vs. governo entreguista, o nosso Brasil vs. o Brasil deles, e assim por diante. É nesse plano que se apresentam as realizações governamentais, as virtudes do líder e de seus sucessores, os planos sórdidos dos adversários. A intenção, aqui, é organizar um guia para a ação e, acima de tudo, formar opinião. Sim, porque os eleitores precisam de formadores de opinião, mesmo quando são de esquerda.

No segundo plano, o partido elabora uma teoria da sociedade e da transformação social que julga a ela corresponder, determinando o lugar que ele próprio, partido, e seu entorno ocupam nesse processo. É um plano sofisticado, que requer uma análise do mundo, a definição de estratégias de longo prazo e das alianças fundamentais, o reconhecimento claro dos obstáculos e das possibilidades concretas de mudança. Nele, a simplificação não tem lugar e a agitação deve ser substituída pela argumentação.

Na dimensão típico-ideal, esses dois planos caminham juntos, se retroalimentam O partido fala para as massas com um discurso sustentado pela tradução criteriosa de uma teoria social consistente, que é corrigida e ajustada à medida que se obtém o feedback da sociedade.

Salvo avaliação mais aprofundada, o que parece estar a ocorrer no Brasil expressa uma disjunção entre esses dois planos, com uma concentração unilateral no primeiro deles. O PT está esquentando as turbinas para oferecer a seu “povo” o empuxo necessário para uma ação vitoriosa em 2010. Está a produzir armas de combate, agitação e identificação. Como seria mesmo de se esperar.

Não há porque alguém ficar surpreso ou incomodado com isso, que é política em estado bruto, igualmente praticada pelos demais partidos. Os puros de espírito, as almas mais sensíveis, poderão torcer o nariz para as acusações infundadas, os auto-elogios extremados e passionais, as manobras dedicadas exclusivamente a prejudicar inimigos e adversários. Terão de entender que política também é feita disso.

É feita disso, mas não somente disso. Se o PT se julga ou pretende ser um partido de esquerda de fato, não pode permanecer estacionado no plano da agitação, do discurso fácil para as massas. Precisa ir além e acoplar a esse plano um segundo plano, de elaboração teórica, produção cultural e projeção do futuro, como, de resto, espera-se que façam todos os demais partidos. Sem isso, ficará no meio do caminho e não se completará como partido de esquerda. Poderá até ter sucesso e vencer em 2010, mas não contribuirá para integrar a sociedade, convencê-la da necessidade de uma reforma social e fornecer-lhe algo mais denso e duradouro do que um sonho para sonhar. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/11/2009, p. A2].

2 comentários:

fernando disse...

Marco Aurélio, o texto está muito bom. Parabéns!
Duas questões: a primeira, será o PT um verdadeiro partido de esquerda? É possível pensar em um novo projeto de esquerda - democrática - para o país e, para isso, a formulação de ideias, paixões e, claro, em uma nova forma partido? Ou estamos condenados a disputa PT X PSDB, que no meu entendimento empobrece o cenário político brasileiro. Enfim. De qualquer modo vejo que a perspectiva crítica volta ao debate e isso é muito bom! Fernando

André Henrique disse...

Professor,
A invasão da esfera política pela lógica econômica levou os partidos a se racionalizarem e a profissionalizarem seus quadros - como Max Weber já havia assinalado. O PT, um partido de bases populares, para ganhar eleições entrou na lógica do mercado político (como define Clauss Offe) e se distanciou das bases e do seu discurso original. Em suma, todos os partidos se tornaram máquinas de disputar eleições. E militante virou uma profissão efêmera e sem sentimento ideológico e programático.

O professor afirmou no texto que o PT, na necessidade de não perder suas bases para o PSOL - agora turbinado por uma possível junção com Marina Silva -, entoa para as bases um discurso de esquerda. O PT pelo menos tem bases. O PSDB é um partido que se escora em quadros como, José Serra, Geraldo Alckmin, Aécio Neves etc. Partidos que dependem de quadros teriam mais dificuldades de fazer essa operação que o PT está fazendo, muito embora, os tucanos estejam fartos de quadros no momento.

Um caso que chama a atenção é o DEM. O partido sofreu um duro golpe no estômago nas eleições de 2006 elegendo um governador apenas. E, este governador, está aniquilado politicamente devido denúncias graves de corrupção. Todo mundo abandonou o Titanic Arruda, o DEM não terá outra opção a não ser apeá-lo de seus quadros para não ser ligado aos escândalos. Além da marca a ferro quente que ficará nas costas do partido, por conta do caso Arruda, o partido não tem bases e sofre com um déficit de quadros para disputar os cargos executivos nas eleições do ano que vem. Em função disso, o partido já desenha possibilidades para se aproximar dos estudantes e criar alguma forma de integração com setores da sociedade civil, que crie raízes e bases para o partido.

Diante destas explanações, pergunto: O modelo tecnocrata dos partidos chegou ao seu limite e, em função disso, os partidos sentem a necessidade de se voltarem às bases(como é o caso do PT) ou criá-las (como é o caso do DEM) ou este é um fato transitório? Seria uma oportunidade para os partidos ganharem algum protagonismo no cenário político institucional brasileiro?