quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Leandro Konder, meu amigo desenhista


Desenho de Leandro Konder, RJ, junho 1984

Como aconteceu com outros amigos, conheci Leandro Konder primeiro no papel e depois ao vivo.
Estudante, lia seus livros e me maravilhava com o fato de que eles pareciam ter sido escritos “para mim”, quer dizer, podiam ser compreendidos até por quem estava em formação ou sabia muito pouco, como era meu caso. Por volta de 1972, me interessei muito pelo marxismo de Georg Lukács, e Leandro era seu maior intérprete no Brasil. Lembro-me bem do entusiasmo com que li Realismo e antirrealismo na literatura brasileira (1974), volume coletivo com ensaios assinados por intelectuais de quem alguns anos depois eu me tornaria amigo. Leandro era o principal deles.
Mais tarde, no segundo semestre de 1976, quando participei da direção da revista Temas de Ciências Humanas, que tinha nítida influência marxista (Lukacs, Gramsci e PCI), procurei entrar em contato com Leandro, que na época morava entre Bonn e Paris. Pedi ajuda a Nelson Werneck Sodré e em pouco tempo estava escrevendo para Leandro. Trocamos muitas cartas. As que me chegavam, eram invariavelmente preciosas, escritas quase sempre à máquina e em papel de seda, um A4 cortado ao meio. Houve também alguns bilhetes escritos à mão com letra miúda e harmoniosa. Falávamos de tudo um pouco, mas sobretudo de projetos editoriais, marxismo, eurocomunismo e política brasileira.
Somente fui conhecer Leandro no início de 1979, quando ele voltou ao Brasil. Depois de tantas cartas, a expectativa era tamanha que ao encontrá-lo parecia que o conhecia há décadas.
De lá para frente, tivemos muitos encontros e participamos de inúmeras reuniões políticas.
Leandro tinha um mantra pessoal: era preciso não se levar jamais exageradamente a sério. Ou seja, rir da própria desgraça, não perder a capacidade de perceber o que há de patético e inesperado nas atitudes humanas, a natureza contraditória das pessoas. Havia nele, em doses fartas, um delicioso senso de humor que suavizava a firmeza da crítica e humanizava a exposição, recheando-as de detalhes e boutades que funcionavam como travas de sustentação da narrativa e sempre revelavam algo mais do personagem ou do assunto em foco. A verve e a leveza de Leandro certamente o ajudaram a deixar claro e demonstrar que um marxista não é necessariamente um chato. “Importante mesmo - reconheceu certa vez - é ser intelectual marxista e preservar o senso de humor”.
Tendo participado, com ele, de várias reuniões políticas, adorava vê-lo desenhar, fazer caricaturas e cartuns enquanto a discussão pegava fogo. Invariavelmente retratava os próprios amigos presentes ou personagens mencionados nas reuniões. Os desenhos funcionavam como um balãozinho de oxigênio: modulavam a chatice das discussões e nos traziam de volta à dimensão cômica da vida. Em suma, à vida.
Ganhei alguns daqueles desenhos de recordação. Perdi quase todos, infelizmente. Um deles consegui guardar, trancado a sete chaves. Feito em 1984, ilustra esta postagem.
Leo escreveu a quarta capa do meu livro Um Estado para a sociedade civil, em 2004. Foi um acontecimento para mim.
Escrevi sobre o marxismo de Leo no blog que mantenho no Estadão (o artigo pode ser encontrado aqui). 
Agora que ele morreu, no último dia 12 de novembro, aos 78 anos, deixando um enorme buraco em todos os que o conheciam, penso que posso homenageá-lo reproduzindo aqui a íntegra daquele pequeno texto, que mostra Leandro Konder por inteiro: um intelectual gentil e generoso, amigo de seus amigos.
“A política se faz com as mãos mergulhadas no sangue e na merda”, dizia brutalmente o velho Sartre. A reflexão sobre a política, entretanto, na medida em que pretende contribuir para a construção do conhecimento de uma atividade humana peculiar, deve procurar evitar a intimidade e o convívio duradouro com porcarias. Deve pensar grande.
Meu amigo Marco Aurélio Nogueira, leitor atento de Gramsci e de Bobbio, aberto tanto a sugestões de Giddens, de Bauman e de Beck quanto a ideias de Freud e de Habermas, vem repensando há vários anos os complexos problemas da relação entre o Estado e a sociedade. O Estado, atualmente, está em crise: tem desafetos à direita e à esquerda. Marco Aurélio, porém, adverte contra os riscos de um “Estado sem sociedade civil” e também contra os riscos de uma “sociedade civil sem Estado”.
Nas condições em que nos encontramos, arrastados num processo de mundialização que não corresponde às nossas aspirações, temos, entretanto, a chance de aproveitar importantíssimos avanços técnico-científicos, de promover uma desprovincianização.
Por tudo isso, mesmo em plena globalização neoliberal, Marco Aurélio Nogueira recusa a sedução de uma perspectiva catastrofista ou apocalíptica e busca delinear um reformismo democrático radical, para que possamos vir a ter acesso a formas de vida mais justas e mais inteligentes.  Leandro Konder

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