domingo, 17 de novembro de 2013

Oliveiros, Ubaldo e a morte da ideia de Estado




O artigo de Oliveiros S. Ferreira publicado no Estadão de ontem é saborosíssimo e faz pensar. Passeia pela história nacional com desenvoltura e erudição, como é habitual no autor. Leiam que vale a pena.  Até seu título é um convite à reflexão: “Onde está o Brasil nesses vários 'Brasis'?”. Pode ser acessado na íntegra aqui.

Mesmo quem não concorda com o texto aprenderá com ele. Da minha parte, aceito sem dificuldade o argumento e a tese central, ainda que talvez a desenvolvesse com outra tonalidade. A conclusão é categórica: não se pensa mais em Brasil porque a ideia de Estado morreu. Se bem entendida, fornece uma porta para que se analise o país que temos hoje, com suas dificuldades e problemas que se estendem no tempo praticamente sem solução.

Oliveiros faz uso inteligente e provocativo de um trecho de João Ubaldo Ribeiro: "Não tem essa besteira de Brasil-Brasil-Brasil, isto é coisa para os iludidos de minha marca, que agora estão abrindo os olhos. Agora tem o Brasil das mulheres e o Brasil dos homens (...) 0 Brasil dos negros, o Brasil dos brancos (...) 0 Brasil dos evangélicos e o Brasil dos católicos (...) e nem sei quantas categorias, tudo é dividido direitinho e entremeado de animosidades, todo mundo agora dispõe de várias categorias para odiar”.

É uma poderosa descrição do que temos na vida real. Projeto de nação? Nesse contexto? Impossível. Projeto de poder, sim, na verdade muitos projetos de poder. Mas nenhum deles com capacidade para plasmar o que quer que seja.

A isso que pareceria à primeira vista uma boutade para fazer rir, Oliveiros agrega sua verve, seu estilo e sua teoria política. “João Ubaldo está nos dizendo que aquilo que chamávamos de sociedade brasileira deu lugar a tantas corporações quantos sejam os que, minimamente organizados, têm alguma influência sobre os que são tidos como formadores de opinião. Influência que se transforma em poder, para reclamar tratamento distinto do que recebem os milhões que compõem o corpo eleitoral - os cidadãos”.  

Por que isso ocorreu? Oliveiros recorre a uma de suas chaves explicativas mais conhecidas. Porque não se se cuidou de “superar as servidões da infraestrutura e se permitiu que houvesse vários Brasis: o do Norte, o do Nordeste, o do Centro-Oeste, o do Sudeste e o do Sul”.  Mas houve mais. “Boa parte dos que orgulhosamente pertencem ao escol culto tem sua cota de responsabilidades na destruição da ideia do Brasil, vale dizer do Estado brasileiro”.

E segue em frente: “Não apenas a infraestrutura e a destruição da História nos conduziram ao grito de dor que João Ubaldo emitiu. É preciso ver que a serpente pôde vir ao mundo - ao nosso mundo político e social - quando deixamos de ser cidadãos e passamos a ser membros de uma categoria: metalúrgicos, bancários, comerciários, jornalistas, nem sei mais quê. Consagrou-se a corporação como a reunião de indivíduos com interesses distintos dos demais e sem coisa alguma que os unisse uns aos outros, a não ser o mero interesse imediato. (...)  Ao nos identificarmos como membros de uma categoria, deixamos de ser cidadãos e passamos a ser apenas indivíduos ligados por laços de interesse curto, ainda que vil. Não nos projetamos, nem no tempo nem no espaço”.

E, por fim, o passo mais complicado: “a sociedade e o Estado corporativos -- porque o Estado é hoje também uma corporação -- mataram a Política, e não mais conseguimos ver-nos como cidadãos de um Estado nacional”. Só pode haver Política (com “p” maiúsculo mesmo) naquele “reino das condutas que não são reguladas administrativamente pelo poder de Estado”. Somente assim as ações poderiam ser livres e a imaginação teria como prevalecer e indicar o modo de resolver conflitos coletivos. 

A conclusão é taxativa: “As crises de junho mostraram a falência do Estado e que, não tendo os governos impedido a presença do crime organizado no território, a ideia do Brasil perece. Porque a ideia de Estado -- que não é o mesmo que a ideia de corporação, a de algo relativo a uma ‘categoria’ – morreu”.

Eu acrescentaria, somente para enfatizar: o que perece é a ideia de Estado democrático. Porque um Estado que não seja democrático pode carregar consigo outras tantas maldades e impedir que se alcance uma ideia de sociedade que possa ser compartilhada e vivida por todos.

Estou certo de que Oliveiros concordaria com esse acréscimo.

Um comentário:

Janice Placeres disse...

Já havia lido o artigo de Ubaldo, dias atrás. O de Oliveira tomei conhecimento aqui. Brilhantes. O seu fecha tudo. Uma aula maravilhosa, Professor!
Leu a entrevista do Nobre para Folha?