sábado, 16 de junho de 2012

O passado teórico em novas bases

Em um momento de grave perda do poder de proposição e persuasão das grandes tradições do pensamento político, nada melhor do que uma volta às origens e de um esforço para recuperar elos perdidos ou mal entrelaçados. Se liberais e socialistas, por exemplo, nas suas variadas famílias e colorações, desejarem voltar a ter voz ativa nos debates acerca dos dilemas que atormentam as sociedades contemporâneas, terão de visitar seus mortos e repor em bases renovadas as poderosas ferramentas teóricas e ideológicas que inventaram para explicar a vida humana.
 
Convidar-nos a fazer essa viagem ao passado teórico com os olhos no presente e no futuro é o maior, mas não o único, mérito do livro De Rousseau a Gramsci (São Paulo, Boitempo, 2011), de Carlos Nelson Coutinho, filósofo e professor de teoria política da UFRJ.

 
Sendo ele um pensador marxista, leitores mais apressados poderiam achar que seu livro é um empenho unilateral para demonstrar a “superioridade” de Marx sobre o liberalismo. Nada mais equivocado. Primeiro, porque Carlos Nelson não é um marxista vulgar, interessado em elogiar sua “escola” contra as demais.  Seu trabalho não é do doutrinador, mas do pesquisador, do historiador das ideias.  Segundo, porque seu marxismo tem o sabor das vertentes que mais longe levaram a perspectiva dialética e totalizante anunciada no século XIX por Marx. Trata-se de um marxista da linhagem de Lukács e Gramsci, e isso deveria dizer tudo. Seu texto opera com categorias abrangentes mas tem elasticidade para compreender o dinamismo e o caráter contraditório das estruturas em que flui a vida humana atual, o lugar que nelas têm os sujeitos individuais e coletivos, as articulações dinâmicas entre seus vetores decisivos – o indivíduo e a sociedade, o Estado e o mercado, o todo e as partes.

 
O resultado nos convida a refletir sobre a potência das diferentes teorias políticas (e da sociedade) que demarcaram de modo particularmente intenso o processo de evolução das duas grandes tradições culturais e ideológicas da modernidade, o liberalismo e o socialismo. Podemos extrair dele, por exemplo, que as ideias liberais e socialistas, despidas de seus “excessos” e devidamente contextualizadas, demonstram ter muitos pontos de contato entre si. Isso, evidentemente, não elimina o que há de tensão, contradição e distinção entre elas – cada uma das quais porta uma bem estruturada concepção do mundo e um arsenal teórico próprio. Socialismo e liberalismo não são irmãos, e seria perda de tempo apagar suas divergências. São duas tradições distintas, e assim permanecerão, cada uma com suas apostas, suas convicções e seus códigos de conduta. Mas há algo nelas que também as aproxima e as alimenta, no mínimo fazendo com que seus seguidores reduzam suas taxas de autossuficiência e descubram, no outro, estímulos para se renovar ou corrigir suas limitações. Entre um liberal democrático e social como Rousseau e um marxista como Gramsci há muito mais comunidade do que entre Rousseau e um neoliberal ou entre Gramsci e um stalinista. Rousseau, por sua vez, antecipa teses – sobre a desigualdade, o interesse comum, o Estado, a liberdade e a democracia – que levariam seu liberalismo às fronteiras do socialismo e ajudariam Marx em suas formulações. Afinal, a superação do liberalismo pretendida pelos marxistas jamais significou a negação das ideias liberais, mas sim, ao contrário, sua superação, a assimilação do que há de mais avançado nelas.

 
Não é acidental que o livro de Carlos Nelson abra com um belo ensaio sobre Rousseau, o democrata liberal que tanta resistência encontra entre os liberais, siga com um ensaio sobre Hegel e a “vontade geral” para então desaguar num conjunto de textos dedicados a Gramsci, o mais universal, polêmico e criativo pensador marxista. O livro não diz isso, mas é como se dissesse: estão nessas expressões da teoria política alguns dos mais importantes elos que propiciam a fundamentação de uma teoria moderna da democracia. Elos tensos, complexos, nada mecânicos. Se Rousseau descobrira na “vontade geral” o veículo para afirmar a prioridade do público sobre o privado, Hegel buscaria a conciliação entre a liberdade individual e uma ordem social realista na qual o Estado responderia por funções construtivas fundamentais, como garante da vontade geral. Tal inflexão, que alargou o liberalismo, desembocaria em Marx e ganharia plena expressão com Gramsci, que refunda a teoria do Estado sem subsumir a ela a democracia e a liberdade individual.

 
Seria pertinente perguntar o que teria levado liberais e socialistas, com suas ideias tão carregadas de convergências potenciais, a construir trajetórias tão díspares e competitivas. Uma resposta seria: sempre que a questão democrática substantiva (ou seja, não meramente procedimental) foi privilegiada, como em Rousseau, Marx e Gramsci, liberais e socialistas puderam caminhar juntos e se retroalimentar. Talvez seja por isso que o livro marque muitos pontos ao sugerir que “uma teoria da democracia adequada ao nosso tempo” só poderá ser elaborada mediante um “profundo diálogo com a herança de Rousseau”, a incorporação das “contribuições decisivas” de Hegel e a devida atualização do marxismo e da tradição socialista, para o que Gramsci fornece base rica e consistente.
Livros como esse abrem enormes clareiras para o pensamento crítico interessado em agir sobre o mundo. [Publicado em O Estado de S. Paulo, Caderno Sabático, 15/06/2012, p. S7].

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