quinta-feira, 30 de junho de 2011

Marchas, abraços e contramarchas


Foram três manifestações distintas. Todas na cidade de São Paulo e na mesma semana, como que encadeadas. A coincidência delas, ainda que não seja inusitada, sugere alguma reflexão.
Quarta-feira, dia 22, foi o dia do “Abraço Coletivo na Paulista”, concebido como "um gesto de amor à cidade e respeito ao próximo", além de um repúdio aos atos de violência contra homossexuais ocorridos recentemente na região. Centenas de pessoas deram-se às mãos ao meio-dia, caminhando simbolicamente na contramão da avenida, um dos maiores ícones da cidade e expressão perfeita da vida frenética, tensa e impessoal que tem feito a fama dos paulistanos. Bela demonstração de que por aqui também há ações cívicas no sentido mais básico da expressão, qual seja, o da conduta que busca compartilhar o desafio de construir uma ordem social justa, igualitária e governada por todos e para todos.
No dia seguinte, sob o embalo do Corpus Christi, foi a vez da “Marcha para Jesus”, promovida por igrejas e congregações evangélicas com o intuito de expressar publicamente a fé, o amor e a exaltação do nome do filho de Deus, que precisaria ser mais valorizado. Muitos milhares de pessoas foram às ruas proclamar “o Senhorio de Jesus”, cantar e dançar ao som de bandas e cantores gospel. Diversas famílias aproveitaram para agradecer os milagres e as dádivas recebidas.   
Pelo andar da carruagem, porém, o que se viu na manifestação foram mais trevas do que luz. Valendo-se do nome e da imagem de Jesus, a caminhada desfilou uma sucessão de ataques aos que são considerados os atuais piores “inimigos” da cristandade, verdadeiros aliados do demônio: os homossexuais, atacados em si, em seus direitos e em suas reivindicações. Puxada por pastores-políticos, a passeata não perdoou algumas instituições do país (o STF, antes de tudo) que, por se mostrarem sensíveis a temas tidos como tabus, deveriam ser vistas como auxiliares do processo de entronização de Satanás na Terra.
O ato foi festivo e familiar na formatação geral, mas teve um subtexto que lhe deu o tom de marcha fúnebre, uma contramarcha, triste na evolução e reacionária no objetivo. Deixou claro que a fé muitas vezes caminha abraçada com o fanatismo e o fervor obscurantista, veículos certos da intolerância e da discriminação. Para piorar, a marcha forneceu palco para campanhas políticas explícitas, deixando-se arrastar por elas.
Por último, fechando a semana, o domingo assistiu à 15ª Parada Gay, festa alternativa que há anos contagia a cidade e a insere no circuito das mais avançadas lutas por direitos. São Paulo se acostumou e se identificou tanto com ela que chegam a surpreender as manifestações homofóbicas que ainda ocorrem entre os paulistanos. Os gays dão vazão em alto e bom som, de modo espalhafatoso, irreverente e alegre, muitas vezes chocante, a uma agenda sintonizada com o modo de vida atual, em cujo centro está um sempre mais ampliado desejo de liberdade. Põem-se no meio da democratização social em curso, processo que encontra resistência em hábitos seculares, manifestações de fé cega e fanática, postulações machistas de autoridade, fundamentalismos de todo tipo. A Parada por eles organizada proclama um mundo estruturado pela diversidade, pela tolerância, pelo respeito à liberdade de cada um e aos direitos de todos, mundo que não existe de modo pleno, mas que já dá mostras de sua potência civilizacional. O tema da Parada 2011 fala por si: "Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia!".
O registro das três manifestações mostra uma São Paulo de múltiplas comunidades e agendas, uma cidade plural, marcada pela diversidade – uma terra onde todos têm voz e podem se manifestar. A Marcha pela Descriminalização da Maconha, realizada semanas atrás, deve ser igualmente lembrada. A cidade condensa essa pluralidade em sua própria dinâmica, em seus bairros étnicos, em seu multiculturalismo, nos milhões de imigrantes europeus, escravos africanos, brasileiros de outros estados, latino-americanos, que ajudaram a construí-la e cujos descendentes aqui permaneceram, amalgamados e pouco segmentados entre si. Uma cidade plural e sem guetos.
Com o passar do tempo, São Paulo se tornou uma cidade hipermoderna, globalizada, que deslocou a vida tradicional que prevalecia soberana, ainda que não com exclusividade. Basta lembrar que foi aqui que se realizou a Semana de Arte Moderna, em 1922, com a qual se anunciou o destino que estaria reservado à futura metrópole. Hoje, a cidade avança sob os fluxos de uma vida mais “líquida”, tecnológica, pouco controlável e dificilmente governada. Não deixou, porém, de ser capitalista nem conseguiu civilizar seu capitalismo, que continua responsável pela reiteração do que há de desigualdade, pobreza e alienação na cidade. A “vida líquida” prevalecente também não soterrou a “vida sólida” de antes, que encontra muitas maneiras de se reproduzir, recebendo oxigênio até mesmo daquilo que a hipermodernidade produz de mais típico. A liberdade e a tolerância incentivadas pela “vida líquida”, por exemplo, fazem com que a fé cega e as convicções rígidas da “vida sólida” se encrespem e sobrevivam.
Gays e evangélicos, com suas marchas e contramarchas, mostram uma São Paulo em transição. O predomínio de um modo “líquido” de vida não produz imediatamente uma boa sociedade, nem mesmo uma sociedade melhor, pois oculta demasiadas distorções e injustiças, obriga a que se viva no risco e na incerteza, de maneira excessivamente frenética e fora de controle. Nem sequer facilita a mobilização social. Mas a “vida sólida” de antes já não tem mais como nos dar segurança ou nos orientar, o que faz com que tenhamos de viver entre dois mundos, um que ainda não se afirmou plenamente e outro que pena para sobreviver.
Assim com São Paulo, assim com a maior do planeta. Bem-vindos ao século XXI, no correr do qual estaremos imersos numa batalha para saber que eixo, que ética e que ideias estruturarão a “vida líquida” em que passaremos a viver. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 29/06/2011, p. A2].

5 comentários:

Fábio disse...

Marco,
Primeiramente, belo artigo, parabéns!
Na esteira do que vc chamou de uma "vida sólida" que pena para sobreviver, não estaria também incluso nossa maneira ibérica de tratar assuntos sem qualquer mensuração de implicações futuras?
Faço essa indagação, porque nessa questão que envolve religião e homossexualidade, há várias confusões que me remete a pensar no modo ibérico de confundir "as escritas profanas e as de Deus".
Explico: a distorção principal que encontro no tema Homofobia, se refere a sua caracterização na simples forma de expressar uma opinião contrária ao que pensa os partidário das relações homoafetivas.
O simples fato de um indivíduo exercer um direito constitucional de se expressar contrariamente ao que um grupo defende, não se constitui homofobia ou consevadorismo.
Homofobia é o ato de discriminar alguém pela escolha que fez e redundar em restrição de liberdades fundamentais.
No caso da livre expressão de opinião, não se pode dizer homofobia, como comumente se tem confundido.
A opinião defendida pelos evangélicos (termo muito abrangente porque coloca no mesmo saco protestantes, pentecostais e neo-pentecostais)se refere à escolha de se viver segundo os preceitos divinos.
Não há coação para se tomar um determinando comportamento, que homogeiniza os grupos.
Pelo contrário, o que não se pode tolher é a manifestação de opinião contrária.
Finalmente, a decisão do STF foi feliz em validar as prerrogativas de direitos civis para casais homossexuais.
Lembrando Michael Walzer,trata-se de uma questão, em sociedades complexas como a nossa, de "esferas da justiça", onde certos critérios de distribuição de bens e recursos não podem "invadir" outras esferas que possuem critérios distinos. É isso! Abraço!

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

Fabio, obrigado pelo comentário, excelente sob todos os aspectos. Concordo com vc que há uma generalização indevida no uso do termo homofobia. É algo que ocorre com vários outros termos, nessa época em que as palavras assumem mil significados e os conceitos são ressignificados o tempo todo. No caso, a generalização se deve também a uma inflação no próprio campo da homoafetividade: luta-se tanto para afirmar uma posição que todas as dissonâncias são vistas como inimigas, não como alternativas ou simplesmente oposições. Vale o mesmo para as acusações contra os evangélicos, que são, como vc bem disse, um agregado de correntes diversas entre si. Meu artigo mesmo pode ter incorrido nessa imprecisão, ainda que o foco dele não fosse de modo algum julgar os evangélicos, mas sim analisar uma manifestação evangélica específica, liderada por uma Igreja específica, etc.
Tenho claro que a dicotomia vida líquida e vida sólida não é suficiente como instrumento de análise. É uma metáfora que sugere dois modos de vida, mas não dá conta da complexidade do real. No caso brasileiro, o iberismo deve mesmo ser incorporado no esforço analítico para se apreender o que há de particular na nossa experiência.
Espero que a gente possa continuar essa discussão, não necessariamente aqui. Como vc não se identificou por inteiro, não consigo te visualizar direito.
Abraço

Fábio disse...

Marco,
Em nossa experiência, como você bem disse, há a necessidade de incorporarmos uma gama cada vez maior de conceitos que nos dê condições de interpretar o mundo complexo e fragmentado em que vivemos.
Nesse sentido, tanto o campo da homoafetividade quanto o da religião "absolutizam", cada um a seu modo, suas posições: para o primeiro, impõe-se uma definição de homofobia que atropela principios fundamentais dos indivíduos e, devido a isso, perde a oportunidade de atingir um consenso (fundamental para a definição de uma concepção de sociedade pluralista) quanto a legitimidade de suas petições; para o segundo, busca-se implantar o reino de Deus na "terra" e, devido a isso, os preceitos divinos se sobreporiam até mesmo à lei maior, isto é, à carta constitucional, válida para todo e qualquer cidadão.
Portanto, trata-se de uma querela que expressa exatamente o sofrimento coletivo em não se atingir níveis qualificados de vivência em sociedade.
A regra entre nós, talvez, seja a constituição de um mundo "hobbesiano" mais atenuado, ou seja, em que o conflito jamais é assumido como tal e, por isso, não se enfrenta as divergências de forma democrática e tolerante.
Digamos que homossexuais e religiosos dos campos católicos, protestantes, pentecostais e neo-pentecostais não são capazes de explorar as potencialidades daquilo que Maquiavel denominou de virtú.

P.S: Perdoe-me a falta de identificação! Meu nome é Fábio de Andrade e sou estudante do curso de CSO em Araraquara. É isso!

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

Inteiramente de acordo, Fabio. Muito bom o teu comentário. A única ponderação que faço é que no plano do movimento prático (onde estão sobretudo os gays) é improvável que se consiga o refinamento teórico feito por você. No plano da religiosidade é mais fácil, porque, afinal, padres e pastores têm (ou deveriam ter) formação doutrinária e filosófica. A conclusão disso é que faltam teóricos, intelectuais, a ambos os movimentos. Isso prá ficarmos somente neles, porque a falta de boa teoria é comum a praticamente todos os movimentos sociais do nosso tempo.

Fábio disse...

Marco,
A conclusão segundo a qual faltam bons teóricos e intelectuais aos movimentos sociais de uma forma geral, não decorreria de um equívoco histórico que concebe a ação de tais movimentos como que desvinculados da ação positiva do Estado?
Faço essa indagação, porque tenho estudado sobre cultura política e, sob a orientação do prof Milton, percebo que a intelectualidade que combateu o regime militar, mais precisamente, os fundadores do PT, PSDB e aqueles que se engajaram em movimentos sociais, não atentaram para a formulação de boa reflexão teórica como fundamental para a via prática.
Mais do que isso, a constatação de que se encontrava no estado nacional-desenvolvimentista as raízes do autoritarismo e, por consequência, toda norma que dele proviesse, daveria ser interpretada como autoritária.
Daí, como vc já mencionou em vários textos, passou-se a utilizar sem critério o conceito de sociedade civil sem qualquer vinculação orgânica com o estado.
É isso!