sábado, 23 de maio de 2009

Para compreender o mundo


Muitos jovens universitários e pré-universitários – assim como muitos não tão jovens profissionais já inseridos no mercado de trabalho – talvez se surpreendam com o presente texto. Ele se dedica a fazer o elogio das Ciências Humanas, esse amplo e controvertido conjunto de conhecimentos com os quais as sociedades têm procurado se conhecer ao longo do tempo.

A surpresa poderá existir, antes de tudo, porque o conceito mesmo de Ciências Humanas é relativamente impreciso, dado não existir consenso estabelecido a respeito de quais ciências devam ser incluídas no conjunto. Tome-se a economia, por exemplo. Numa visão abertamente econometrista, ela poderia ser vista como sintonizada com as matemáticas. Se o foco for o universo financeiro, ela se associaria unilateralmente aos negócios. Mas a grande economia – a Economia Política – é bem diferente disso. Tem lugar cativo entre as Humanas, e somente se realiza como ciência se interagir com os conhecimentos que se interrogam a respeito do homem em sociedade.

Dar-se-ia o mesmo com a Administração, a Psicologia e as Letras, que muitas vezes terminam por ser postas à meia-distância daquele conjunto a que pertencem no mínimo por exclusão.

O segundo motivo tem que ver com o primeiro. É que vivemos de modo tão pragmático, veloz e utilitarista, numa estrutura em que a luta pela vida é incerta e competitiva ao extremo, que as pessoas passaram a desconfiar das Ciências Humanas. Tendem a achar que elas – a Filosofia, a Ciência Política, a Sociologia, a Antropologia e a História, que formam o esteio de sustentação do bloco – estão incapacitadas para garantir um nicho consistente em termos de emprego ou pavimentar o caminho para aquilo que se considera “sucesso profissional”. Teriam pouca utilidade, já que seriam ciências mais “negativas” e reflexivas que “positivas” e aplicadas. O Mercado – esse semideus da modernidade globalizada – tomou o lugar do Homem, da Sociedade e do Estado, a ponto de fazer com que as pessoas percam a vontade de se conhecer a si próprias.

Sabe-se que a modernidade não é somente empenho cego para maximizar a racionalidade e a produtividade. É também disseminação de espírito crítico, incremento comunicativo e esforço para que se viva de maneira mais justa e sábia. Hoje, porém, o lado mais instrumental e perverso do moderno prevalece. Vivemos sobrecarregados por ele e acabamos por deixá-lo modelar muitos de nossos cálculos, expectativas e projetos.

Tal prevalência está na base da má-vontade que se tem com as Humanas. Pensa-se que elas atrapalhariam, pois convidariam as pessoas a um exercício intelectual supérfluo, meio romântico e “subversivo”. Acredita-se, além do mais, que todos seriam naturalmente capazes de entender a sociedade e a época em que vivem, mas nem todos conseguiriam atingir as esferas mais elevadas do pensamento técnico-científico. Acha-se que para dominar os fundamentos das Exatas ou das Biológicas é necessário muito estudo e inteligência, ao passo que a assimilação das Humanas seria tarefa fácil, quase uma extensão da alfabetização.

A partir daí, se cria uma muralha separando as Humanas das demais ciências. Os estratégicos conhecimentos produzidos pelas primeiras ficam assim fechados em si, em vez de serem incorporados pelas outras, que se especializam cada vez mais. As próprias universidades ignoram a relevância e as vantagens da integração disciplinar. São poucas, se é que existem, as faculdades de Exatas ou Biológicas que incluem matérias de Humanas em seus currículos. A recíproca, claro, é igualmente verdadeira.

Mas a questão vai além do universo acadêmico. Tanto que se tornou usual, entre pais e alunos, distinguir as escolas do ensino médio em “fortes” – que reforçam os conteúdos, dão destaque às Exatas e se dedicam a fazer com que os alunos cheguem à universidade – e “fracas”, quase sempre identificadas com orientações de tipo humanista e voltadas para a formação de um aluno mais crítico e criativo. Dada a competição entre elas, aos poucos todas vão se convencendo de que precisam ser “fortes”. Vão assim se deixando seduzir pela preocupação de funcionarem como preparatórios para o vestibular, em vez de se dedicarem à formação integral dos estudantes.

Acontece que o mundo é complicado demais para ser vivido e especialmente para ser compreendido. Ele não se revela de imediato, desafia-nos e nos confunde, chega mesmo a atemorizar. Precisa ser pensado, analisado em seus ritmos e determinações para poder ser concebido como um todo e não apenas como um amontoado de fragmentos desconexos.

Isso não é possível sem as Humanas. Sempre foi assim, aliás. Não é por outro motivo que a idéia moderna de universidade tem no seu coração uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, entendida como espaço onde os saberes e as especialidades encontram condições para superar suas estreitezas. Sem esse coração, a universidade não se completa.

Precisamente porque vivemos em ambientes complexos, dinâmicos e fragmentados, as Ciências Humanas tornaram-se estratégicas. A razão crítica por elas cultivada deveria ser amplamente disseminada, de modo a ajudar a que cidadãos e profissionais sejam mais do que meros receptores ou aplicadores de conhecimentos e adquiram recursos intelectuais abrangentes.

Fazer a defesa das Humanas não é somente defender os cursos e faculdades de Humanas, que certamente necessitam de maior valorização. É também defender a perspectiva de que bons profissionais – sejam eles quais forem – se caracterizam pela posse de uma visão coerente do mundo e por saberem articular saberes. São intelectuais, pessoas capazes de compreender o mundo em que vivem, traduzi-lo em termos compreensíveis para todos e organizá-lo tendo em vista uma idéia de comunidade política democrática. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 23/05/2009, p. A2].

3 comentários:

Lucas disse...

Uma beleza de texto, Marco. Imediatamente lembrei de um trecho que escrevi sobre o mesmo tema. Se couber no espaço, ficaria contente em tê-lo publicado em seu Blog.

Abraço,
Lucas.

As Ciências Sociais são um tipo de autoconsciência social, um ponto nevrálgico da distribuição social do conhecimento que supera as formas parciais com que os demais grupos e indivíduos transitam na repartição do conhecimento socialmente produzido pela própria reprodução da vida social. É um ponto nevrálgico, pois incorpora diversas destas perspectivas parciais, visões e pontos de vista muito separados - cada qual ressaltando determinados aspectos em detrimento de outros. Alguns debates não possuem fim, decerto não para sempre, mas certamente até o tempo de vida dos debatedores e de seus sistemas de pensamento. Porém, questão de maior importância, este politeísmo ilumina porções diferentes dos mesmos problemas (resultado da exploração de fraquezas alheias) e a somatória de conhecimentos produzidos é superior àquela que é produzida pelos próprios sujeitos sociais, pois estes, muito mais facilmente, ficam presos nas parcialidades que compõe sua situação social prática - ficam presos na porção disponível de conhecimento socialmente distribuído nas práticas sociais, ficando muito próximos da pura legitimação de sua vida prática. O intelectual também o faz no mais das vezes, porém, por questão de ética profissional, tem de declará-lo e é contra a hipocrisia daqueles que apresentam como conhecimento empírico suas idiossincrasias pessoais e políticas que Max Weber se pronunciava ao defender o valor da probidade intelectual. Os domínios do saber das Ciências Sociais nasceram, portanto, como observatórios sociais voltados à reflexão da sociedade mesma que os criou, estremecida pelos choques da modernidade capitalista. É este o nosso mundo social, por isso o valor de tais ciências: luta pela clareza. É também por isso que as idéias perdem autonomia lógica, pois não existe um mundo objetivo em que se situa um conhecimento puro, sem as interferências de todo um mundo de concretude histórica e social, pois aqueles que estão inseridos nas Ciências Sociais têm de levar em consideração sua própria condição histórica e existencial. Novamente, um problema de autoconsciência ligado à concretude do sujeito, uma contribuição positiva que a ciência traz aos homens no sentido de lhes fornecer clareza sobre os meios e os fins para se atingir determinadas metas reais e ideais de vida.

sizenando disse...

Eu deveria ser um tipo de esotérico, buscando noutros planos a ligação com as coisas que acontecem nesta vidinha aqui, neste mundo real e concreto - com todo o intangível que lhe dá consistência. Levei dois dias pra me preparar e comentar bem sisudamente este seu texto sobre as tais ciências humanas e tomo um balde de água fria, mas da água fria de boa qualidade: li e reli, rindo e rindo deu mesmo, seu material acima sobre futebol e o velho matheus. Voltando: não sou esotérico, talvez fosse mais fácil a vida, mas continuo dando uma de sizenando e estabelecendo relações entre coisas que, aparentemente, não estão ligadas. Explico.

Seu texto é mais do que adequado ao tempo atual; destaca com clareza pontos a serem ponderados - a meu ver - por aqueles que, por bem ou por mal, estão em postos de comando, em postos acadêmicos ou ainda em outros postos relacionados à educação ou difusão de informações – o que exige reflexão permanente, embora a maioria dos que ocupam tais postos não tenham conta da importância da reflexão sobre as mazelas deste torrão.

Muito bem. Delírios meus à parte, afirmo que sua análise tem tudo a ver com nosso dia dia, teoria e vida real casam-se perfeitamente. Pra não alongar: formado em história, tenho prestado atenção a várias oportunidades de trabalho, desocupado que estou, e, entre elas, os concursos públicos. Todos os concursos, especialmente em prefeituras, mas não excetuando os da área federal, estes apenas em menor número, não conseguem relacionar o curso de história aos cargos que oferecem: vc pode ser formado em geografia, ciências sociais, jornalismo e até arquitetura e tem direito a concorrer a determinados cargos relacionados a pesquisa, a projetos culturais a, enfim, qq coisa que se relacione à palavra “cultura”, tais cargos estão disponiíveis a qq tipo de formação acadêmica – menos a quem estudou história ou ainda filosofia. Pobres coitados. Filosofia e história, pra que!

Então, volto às tais relações que estabeleço entre as coisas. Primeiro, deixo claro que meu mau humor passou, causado por outro texto que li e que tem a ver com a questão das ciências humanas, como são vistas em sociedade e como são usadas, isto é, como são usadas as informações e as referências que as ditas nos oferecem. Conto com sua paciência. Refiro-me a este link aqui[http://agora.opsblog.org/2009/06/radicais-de-direita-radicais-de-esquerda/#comments], onde se discute, ou melhor, se vocifera sobre o que é esquerda e direita em política. Tentei, sempre me meto onde não sou chamado, fazer algumas ponderações mas não sei no que vai dar. O fato é que, dada a pouca presença da universidade e seus debates e questionamentos na vida real, as pessoas saem por aí, digo, por aqui no espaço virtual, falando o que bem lhes dá à telha, o que bem lhes apetece. E me parece que o individualismo é opção preponderante, escudado e mal escondido sob uma capa ou verniz de pretenso “intelectualismo ligeiramente bem informado”.

Então, tendo tempo, veja, se tiver tempo mesmo porque nada me parece tão pouco importante, entre no link que citei acima e veja e me diga: estou mesmo errado em afirmar, lá, nos comentários do link que indico, que existem diferenças entre esquerda e direita, no mundo social e político?

Acho que dessa vez exagerei. Desculpe, Marco, mas foi vc que escreveu com clareza sobre o significado e importância das ciências humanas para o dia a dia em sociedade.

Um abraço e meu pedido de desculpas

sizenando

Peço desculpas, inclusive, por não comentar as palavras do Lucas.

Anônimo disse...

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