quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

As duas faces da crise



O ano que ora se encerra parece destinado a ser avaliado a partir do espectro da crise.

A tendência analítica prevalecente destaca a crise financeira que assola o mundo como dotada de gravidade e profundidade suficientes para ameaçar o pouco que havia de otimismo e sugerir que ingressamos em uma fase na qual o capitalismo está novamente desafiado a reiterar sua autoproclamada racionalidade. Reconhece-se, aqui, a natureza eminentemente incerta e “imprevisível” do sistema capitalista, que a cada ciclo parece maximizar os elementos de risco e anarquia inerentes à sua estrutura de produção.

Este viés dominante embute um outro. É que, sendo a crise de “proporções históricas”, ela não só criaria dificuldades para a reprodução organizada da vida como também abriria oportunidades para a inovação, a revisão de convicções e a reprogramação do futuro. Afinal, todo processo carrega consigo problemas e soluções, falências e novas oportunidades. Não só de dor e sofrimento é feita a história.

Mas crises são crises, e nem sempre a criatividade que as acompanha mostra-se de imediato, de modo automático. Crises só são espaços de invenção quando encontram circunstâncias particularmente favoráveis, que agregam pessoas e despertam vontades desativadas, pondo-as em movimento. Requerem também atores qualificados para traduzir e potencializar tais circunstâncias, de modo a extrair o máximo delas.

Neste ponto, ingressamos num território confuso e controvertido, pois é consensual que vivemos num tempo refratário a mobilizações coletivas e à emergência de lideranças políticas maiúsculas. Além do mais, a própria explicação da crise divide as pessoas em múltiplos campos, que não se reduzem à dicotomia otimismo vs. pessimismo, embora estejam atravessados por ela.

Enfatizar o lado mais sombrio da crise tanto pode expressar um prudente brado de alerta contra os que banalizam e minimizam seus desdobramentos, quanto ter um efeito paralisante, que bloqueia o encontro de saídas e adaptações. Efeitos paralisantes deste tipo não conhecem ideologias; podem ser de esquerda ou de direita, quer dizer, podem explorar de modo invertido um arcabouço ideológico inspirado na idéia de que somente seria possível conceber um mundo “sem crises” se se vivesse em um outro mundo, inteiramente diferente do atual – um novo mundo, que viria na esteira ou de uma “revolução em nome da ordem”, pela direita, ou da completa subversão da ordem existente, pela esquerda.

A ênfase no lado sombrio da crise também pode ocultar estratégias de intimidação, com as quais se proporiam soluções autoritárias ou providenciais, na linha de que situações difíceis exigem soluções amargas e “chefes” especialmente dotados.

Já os que se dizem tranqüilos e “confiantes” diante da crise não são necessariamente sinceros. Alguns talvez desejem contrariar a rational choice e incentivar as pessoas a não cederem diante das dificuldades para não aumentá-las ainda mais. Outros podem manifestar confiança na capacidade que teria o sistema de se auto-regular ou simplesmente revelar algum tipo de cegueira diante da realidade, um tipo de antolho ideológico ou alienação. Tanto podem mobilizar energias coletivas adormecidas quanto impulsionar taras conservadoras. Podem servir para que se cristalizem fés fanáticas no sistema ou para que se recuperem velhas utopias, como a do mercado auto-regulável ou do Estado todo-poderoso.

Entre uns e outros, inserem-se os realistas autênticos, que trabalham para que as circunstâncias existentes se traduzam em uma teoria da ação que faça história e produza transformações em cadeia, isto é, dispostas progressivamente em um círculo espaço-temporal concatenado, no qual cada alteração, cada reforma, cada medida positiva, seja a plataforma para novas medidas ainda mais profundas e contundentes.

Momentos como o atual preparam o palco para que políticos e intelectuais realistas exibam seu estoque de recursos, mostrem-se à altura, equacionem os problemas na medida mesma da gravidade deles. É em momentos assim que surgem os estadistas, os grandes políticos, aqueles que dialogam com as massas mas não se negam a contestá-las, que não são paternalistas, mas generosos e ousados. É neles que os intelectuais deixam-se agitar pela urgência cívica, põem-se uma agenda teórica aberta e elaboram novos paradigmas.

À primeira vista, os dias atuais não parecem reunir condições para que se generalizem tais posturas realistas. A reorganização hipercapitalista a que o mundo está sendo submetido carrega no ventre um cenário embaçado e preocupante, simbolizado pela corrosão dos talentos políticos e intelectuais, pela desmontagem dos arranjos coletivos com que se protegiam as sociedades, pelo esvaziamento das instituições e pela subversão dos circuitos espaço-temporais que forneciam parâmetros para a vida.

Devemos, porém, pensar o tema com os olhos para frente. Se é verdade que o capitalismo turbinado das últimas décadas tem sido devorador da sociedade – estilhaçando a vida coletiva e roubando protagonismo dos grupos em benefício dos mercados – também é verdade que ele manteve ativa a dimensão estrutural e subjetiva do conflito, da contradição, da luta pela vida. A sociedade não morreu, somente foi redefinida. A política não desapareceu, somente foi desorganizada e posta em um plano mais técnico que ético, que não emociona nem inspira confiança.

Por sua gravidade e contundência, a crise pode forçar a que certas coisas voltem ao devido lugar. Há indícios de que algo novo começa a surgir nesta direção. E não deixa de ser uma excelente promessa de fim de ano nos comprometermos todos, cada um a seu modo, a brigar para que 2009 escape da mesmice, das fórmulas conhecidas, das frases feitas, do fanatismo ideológico e das posturas servis de conveniência. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/12/2008, p. A2.]

3 comentários:

André Henrique disse...

A partir do estouro da crise muita coisa tem sido dita e a maioria não passa de retórica de torcida irresponsável. Uma delas é essa história de Estado interventor. Brada os torcedores: Agora é hora de intervir!
Como se o Estado não existisse. O Estado atua na economia o tempo todo, mas de diferentes maneiras dependendo das particularidades. Não podemos dividir a política e a economia entre liberalizantes de um lado, e intervencionistas do outro. Porque há diferentes tipos de intervenções e liberalizações. Deve-se pontuá-las na hora de falar e escrever para não homogeneizar. O mundo atual é pouco passível de homogeneizações e simplificações.

A crise trouxe a baila os saudosistas do antigo Estado empresário, interventor que já provocou crises no passado e se mostrou um modelo político e econômico inviável – produtor de ditaduras (é só olhar o ambiente político do século XX) e produtor de ineficiência econômica. O capitalismo vive de ciclos - o que era “solução” antes vira problema hoje. No final dos anos 70 havia um excesso de intervenção, hoje falam em excesso de liberalização. Vai saber.

Os torcedores estão falando em intervenção sem pontuar. Tem professor na universidade pública conclamando alunos para tomar o poder, porque agora o capitalismo já era. Todavia, o euro está em sua melhor fase e várias empresas dão recorde de lucratividade – nem todos os setores estão sendo atingidos pela crise. Teve uma professora da área de educação (munida de uma reportagem sobre a crise que informava estatizações de bancos norte-americanos) que disse: “quando o Chávez nacionaliza os Estados Unidos chamam de ditadura, mas eles podem estatizar.”
Que ligação tem uma coisa com a outra? A ação de Chávez é de outra natureza, outro contexto, os bancos não estavam em dificuldade, Chávez estatizou mediante pagamento de indenização. Os Estados Unidos socorreram bancos mediante um ambiente de crise, numa estrutura de Estado totalmente avessa à venezuelana. Não dá para colocá-los no mesmo balaio. Salvar bancos significa salvar o correntista também. E o governo norte-americano o fez com dinheiro vindo do capitalismo turbinado, o dinheiro não apareceu por geração espontânea. Portanto não é o fim do capitalismo e nem retomada intervencionista coisa nenhuma.

O correto é pontuar as análises e levar em conta as particularidades. Tem “intelectual” dizendo que é o fim do liberalismo. Todavia no Brasil algumas propostas e medidas contra crise são de ordem liberal, como redução de impostos, flexibilização de leis trabalhistas, redução de impostos e reconhecimento de pequenos empreendedores, tirando-os da ilegalidade. Por outro lado, o Brasil está mais protegido da crise, porque nosso sistema bancário é blindado pelo PROER - programa de limitação de empréstimos e créditos - feito pelo governo Fernando Henrique Cardoso. O governo de FHC a época, injetou bilhões no setor financeiro, sendo chamado de neoliberal pelos “esquerdistas” que hoje estão no poder dando graças a deus que existe o PROER. Programa que eles não fizeram, mas tem o mérito de tê-lo mantido. Nem se cogita a hipótese de estatização de bancos no Brasil, porque não é necessário, os bancos estão bem – aqui não existe a farra do empreste sem limites.

Ou seja, em alguns pontos do globo as medidas devem ser mais “intervencionistas”, em outros, as medidas são mais “liberalizantes” – isso ocorre porque os países têm suas particularidades. Nos Estados Unidos houve uma radicalização da liberalização, a confiança estúpida no mercado criou um buraco negro sem dimensões que levou vários bancos do mundo para o espaço. Emprestavam sem limites, gerou-se uma inadimplência estratosférica - dinheiro invisível, títulos podres etc. As agências de regulação eram nulas e coniventes com a anarquia e a farra das hipotecas. Essa é amostra de que anarquia não funciona em lugar nenhum, porque rima com falta de compromisso e responsabilidade. No caso do sistema norte-americano, faltou compromisso social, eles renegaram a sociedade em nome de uma ambição imbecil e individualista. Mas nem todos os países agem assim, nem todos os setores da economia estão na mesma condição.

Não existe um mundo totalmente liberal ou neoliberal que se mostrou inviável e agora vai morrer dando lugar ao mundo intervencionista – com o Estado todo poderoso, como muitos oportunistas querem. Ocorreu uma crise NO capitalismo, não do capitalismo – em minha opinião – que mostrou sinais claros de que o mercado não está acima do bem e do mal e precisa ser vigiado. Mas nem todo mundo comete esse pecado. A “solução” para crise não é simplesmente o Estado intervir. Deve-se dizer onde e como ele fará isso. As coisas não são tão simples assim. A economia atual tem um grau de fluidez muito grande, ela se move 24 horas por dia, virtual, líquida e não pode ser controlada simplesmente pelo Estado.

Essa discussão em torno da intervenção do Estado tem um lado positivo, ela revitaliza a política – porque a partir de agora os estadistas terão que se reunir e discutir marcos regulatórios que coloquem limites ao mercado QUANDO NECESSÁRIO. Isso não quer dizer que devemos apelar para as velhas práticas do Estado como agente transformador da sociedade e timoneiro da economia, até porque isso é inviável e contraproducente, mas este certame nos possibilita encerrar o discurso delirante de que o mercado alto se regula. Deve haver um equilíbrio entre ações intervencionistas e liberalizantes, todavia é necessário colocar sobre elas uma carga de responsabilidade social, para tanto, a política e a sociedade ganha um papel primordial.

Não podemos entrar no jogo das retóricas personalistas de estadistas e intelectuais medíocres. As lorotas de Chávez que diz que o capitalismo morreu - sendo que ele é o maior magnata de petróleo do continente e o otimismo falso do Lula (que reconhece Cuba como democracia e diz que Chávez exagera em democracia) não passam de atitudes irresponsáveis. São tão ufanistas quanto os defensores da anarquia do mercado, que agora minimizam a crise. Não existe menor evidência de que o capitalismo vai acabar, assim como não existe alternativas viáveis. O que se tem são tentativas de retomada de governos populistas, autoritários e anti-democráticos.

Crise é um prenúncio de mudanças dos sentidos, de renovação, não de ações retrógradas e extremistas. Não podemos nos mover com o pensamento catastrófico, pois ele limita tanto quanto o pensamento ufanista: um leva a um radicalismo reacionário e outro a uma tibieza cara de pau, como se nada estivesse acontecendo. Devemos caminhar para frente, sempre pensando além, reformando e conservando quando necessário.

Celso P. Neris Jr. disse...

“Entre uns e outros, inserem-se os realistas autênticos, que trabalham para que as circunstâncias existentes se traduzam em uma teoria da ação que faça história e produza transformações em cadeia, isto é, dispostas progressivamente em um círculo espaço-temporal concatenado, no qual cada alteração, cada reforma, cada medida positiva, seja a plataforma para novas medidas ainda mais profundas e contundentes”.

Professor, sem querer jogar confete. Foi um dos melhores textos que li sobre a inferência da crise na política e os efeitos posteriores na sociedade civil e organização do poder.

Agora minha dúvida é a seguinte: como seremos capazes de reorganizar um sistema de poder deslocado, fragmentado como bem diz o senhor aqui e no seu livro? Quanto ao excerto que destaquei, fica a minha inquietação quanto a “auto-continuidade” do processo, dada a natureza humana, tão instável. Eu creio que o senhor deposita uma fé, não diria inabalável, mas sim grande na sociedade civil e nas suas formas de organização. Ou seja, poderá a crise nos forçar a rever as sociedades a reverem seus hábitos e costumes? Dentre eles rever a posição de “sociedade do consumo”, como diz Giddens, para a sociedade da organização produtiva sustentável. Sei lá professor, se possível faça algum comentário. Agradeço.

Blog do Marco Aurélio Nogueira disse...

A expectativa, Celso, é justamente esta: a de que a crise reponha algumas coisas no lugar. Se é fácil ou possível? Possível certamente, mas fácil de modo algum. Creio que o intelectual "realista" não existe para mostrar os caminhos fáceis, mas sim os necessários, e sobretudo para tentar apontar quais caminhos são ilusórios, ou mesmo equivocados. A crise atual é parte de uma crise maior, que envolve reestruturação produtiva, alterações no modo de vida e na estrutura social, mudanças de hábitos e valores. Não dá para ser isolada, como se fosse uma gripe do capitalismo. Pode até ter sintomas de gripe, mas é mais profunda. Justamente por isso, contém drama em dose alta, complicando a vida mas também abrindo caminhos. o problema, como sempre, é saber como a política reagirá.
Abraços