Estou certo de que a imensa
maioria dos brasileiros, entre os quais me incluo, não tem a mínima ideia do
que significa “autonomia do Banco Central” e nem imagina os efeitos que ela
teria sobre a vida cotidiana, caso viesse a ser adotada. É só fazer uma rápida
consulta: ou as pessoas desconversam, ou falam qualquer coisa. Militantes despejam
litros de veneno na opinião pública em torno disso. Muitos acreditam que se
trata de algo próximo ao fim dos tempos, a antessala da mais plena e abjeta
escuridão.
O tema, que é eminentemente técnico, entrou na agenda nos últimos dias, graças à irresponsabilidade, às
facilidades retóricas e ao jogo de cena dos candidatos à Presidência. E especialmente
graças à propaganda posta em circulação pela campanha petista.
Estamos todos ganhando com a
discussão que subjaz à disputa eleitoral de 2014. Há muito lixo e muito ruído no
debate, armadilhas retóricas para capturar ou neutralizar eleitores, mas debate
político não é debate acadêmico, tem muita sujeira mesmo. Com algum esforço, as
coisas vão aparecendo e os eleitores, se esclarecendo.
Por baixo da troca de farpas
meio doentia entre os candidatos, há coisas sérias, que deveríamos nos esforçar
para entender. Em vez de aceitar as versões apocalípticas, o certo seria ir atrás
de informações, ouvir especialistas e pousar na realidade. Para driblar as
pegadinhas e armadilhas das propagandas eleitorais, nada melhor do que um pouco de
reflexão.
Fui atrás da autonomia do Banco
Central, para tentar compreender melhor o fundo da discussão. Fiz uma pesquisa
e fui escrevendo. Ficou um texto grande demais para um blog. Cheio de obviedades para
os economistas e cheio de frases controvertidas. Mas talvez sirva para quem não
tem tempo de fazer a mesma pesquisa.
O que é o BC?
Os Bancos Centrais operam
basicamente como gestores da moeda e do sistema financeiro como um todo. São o
que alguns chamam de guardiões da estabilidade macroeconômica, aqueles que
manejam a taxa de inflação e a mantém sob controle, impedindo-a de atrapalhar o
crescimento econômico. Fazem isso controlando e supervisionando as emissões de
dinheiro e as condições de sua circulação (taxas de juros, de câmbio, de
crédito, de poupança). Assim, tendem a estimular ou não a economia.
Os BC, em suma, são entes
reguladores, que interferem tanto no mercado quanto nos gastos públicos. Esse
papel é claro no Brasil, por exemplo. No mínimo por isso, suas atribuições são
explosivas e qualquer discussão a respeito deles tende a ganhar grande
intensidade política e ideológica.
Os economistas neoclássicos,
que hoje dominam a teoria econômica no mundo todo, são defensores apaixonados destas
funções do BC, pois acreditam que o excesso de oferta monetária tende a
produzir aumento de preços e inflação. Para eles, o BC não pode ser entregue aos
políticos, pois estes não são “racionais”, gastam em excesso e são escravos de
suas promessas e de seus interesses eleitorais. Defendem, por isso, a
independência do BC e a sua condução por “técnicos”, que em tese seriam mais
“responsáveis” do que os políticos.
Há de fato motivo para
divergência. Discute-se o tema há
décadas sem que se chegue a conclusões cabais. Um BC com independência
garantida por lei, dizem os defensores da tese, resistiria melhor às pressões
políticas e teria mais credibilidade para regular o sistema, ajudando assim a
controlar as expectativas de inflação. Para os críticos, o governo não pode
abrir mão de sua autoridade monetária e precisa poder contar com o BC como
instrumento de intervenção. Além disso, sabem que muitos “técnicos” são
vinculados ao mercado financeiro e poderiam prestar serviços aos bancos, em dez
de ao Estado.
A coisa é tão feia que mesmo em
países com governos progressistas, como o Brasil, o BC tem agido para beneficiar
o sistema financeiro, sobretudo graças à intensa utilização que faz do
instrumento da taxa de juros (a taxa Selic), o que indica que ele goza de boa
margem de autonomia perante o governo, ainda que não seja formalmente
independente. Seu corpo diretivo é invariavelmente integrado por gente do
mercado. Isso ocorre no Brasil há vários anos.
Nosso BC tem ampla autonomia,
mas nem assim a paz prevalece. No ano passado, por exemplo, o presidente do Senado
Renan Calheiros anunciou que colocaria em votação um projeto que daria mandatos
fixos aos diretores do BC, que somente poderiam demitidos por decisão do
Congresso. A iniciativa não prosperou. (Hoje, no Brasil, a diretoria do Banco
Central pode ser demitida pelo Presidente.)
Mas por que isso, se o BC já
tem tanta autonomia? Ficou difícil entender, e talvez por isso a ideia não
tenha ido para frente.
Críticas
Os economistas mais críticos – keynesianos,
neokeynesianos, estruturalistas, de esquerda –não poupam críticas à autonomia de que já goza o BC no Brasil. Por extensão, também são contra os que
propõem ampliá-la. Olhando o quadro em grande angular, porém, a impressão é de
que eles se batem mais contra o BC que já existe do que contra o BC autônomo
de algum proposta. Eles fazem luta de ideias, também.
Para a professora Maria da
Conceição Tavares, por exemplo, a atuação do BC brasileiro não ajuda a animar a
economia. “O BC não está agindo de maneira contracíclica. A política atual é
pró-cíclica. O ciclo de crescimento desacelerou e o BC está ajudando a
desacelerar. Subir a Selic não vai incentivar o investimento, tampouco a
demanda”.
Conceição não poupa palavras: a
independência do Banco Central é uma “patetada”. Para ela, “não há nenhum banco central
independente! O dos Estados Unidos, que devia ser o paradigma, não é
independente, como é que o nosso seria? Independente quer dizer o quê? Não quer
dizer nada. Independente do governo? Do mercado? Das metas da política
econômica? Independente não quer dizer porcaria nenhuma! O BC tem é que tentar
agir de uma maneira coerente”. [Entrevista ao Brasil Econômico, maio de 2014].
O ponto é amplamente reconhecido:
não existe a possibilidade de um BC inteiramente independente e entregue ao
mercado. A estrutura da economia capitalista não permite isso. Nenhum
governante equilibrado dá aos banqueiros poder de decisão “sobre a vida, os
juros, o emprego, os preços e os salários da população”, como vem falando a
propaganda da campanha de Dilma. Nem no mais bestial capitalismo. Nenhum BC
funciona como um poder acima dos demais poderes do Estado.
O que pode haver é mais, ou
menos, autonomia operacional.
Qual autonomia?
Vários bancos centrais ao redor
do mundo têm autonomia formal garantida por lei - entre eles o Federal Reserve,
nos Estados Unidos, o Bank of England, na Inglaterra, o BoJ, no Japão, o BCE
(Banco Central Europeu) e os bancos centrais do Chile e do México. Entre eles,
há diferentes níveis de autonomia e de independência. O chinês e o japonês não
são independentes. O Banco Central Europeu é, assim como o norte-americano, o FED,
que é um banco privado. No Brasil, o BC tem grande autonomia e bastante
independência, mas é formalmente subordinado ao Conselho Monetário Nacional e
ao Ministério da Fazenda.
Alguns bancos centrais são
livres para determinar seus objetivos e como eles serão alcançados. No Brasil,
o BC estabelece qual deve ser a inflação máxima e que recursos ele usará para
mantê-la neste patamar. Faz isso junto com o Conselho Monetário Nacional (CMN),
que é integrado pelo ministro da Fazenda, pelo ministro do Planejamento e pelo presidente
do BC.
O regime de metas de inflação
foi adotado em junho de 1999 e concedeu ao BC a responsabilidade e a
independência operacional para conduzir a política monetária de forma a
alcançar a inflação definida pelo governo. Imaginou-se, assim, dar ao governo condições
de manejar as expectativas dos mercados e controlar a inflação em um contexto
de livre flutuação do câmbio. O Índice
de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, é o parâmetro
utilizado.
Um BC com autonomia operacional
está mais livre de pressões políticas, não financia o déficit público e não adota
políticas de emissão de moeda. Seu principal papel é manter a estabilidade do
nível geral dos preços e o funcionamento do sistema monetário nacional, de modo
a garantir o crescimento econômico. Evidentemente, isso não faz dele uma
entidade santificada, não impede que ele seja alvo de manobras de corrupção,
chantagens financeiras e falhas de gestão.
Bem fixada, esta autonomia faz
com que os diretores do BC, nomeados pelo governo e sabatinados pelo Congresso,
sejam responsáveis, para fixar metas de inflação e juros, dentre outras coisas,
conforme diretrizes fixadas pelo governo e pelo Conselho Monetário Nacional.
Autonomia operacional não é,
portanto, uma situação em que o BC esteja acima de regras e controles, ditando suas próprias leis. Não se pode dar “independência” ao que faz
parte do governo e é por ele monitorado. Mas dá para que se criem melhores condições para que o BC funcione bem e cumpra suas funções. A ideia de se ter mandatos fixos, em
princípio, tornaria mais difícil o “enquadramento” governamental do BC caso ele
tome alguma decisão que contrarie o Executivo.
Um BC completamente
independente estaria fora de qualquer controle democrático e tenderia a se
dobrar às pressões e aos interesses do sistema financeiro. Isso dificilmente
existiria na prática. O corpo dirigente de um BC é escolhido e aprovado pelos
Estados ou se submete, em maior ou menor grau, às orientações gerais de
política econômica, até porque é um dos principais artífices dela.
Um BC menos sensível
É assim que as coisas funcionam
entre nós nos últimos anos. Em boa medida, Marina Silva está reiterando algo que já
existe. Na pior das hipóteses, poder-se-ia dizer que ela quer um BC menos
sensível aos interesses governamentais (que nem sempre são a expressão
decantada do bem público, independentemente de quem for o presidente) e aos
jogos político-partidários.
Sua proposta muda pouco. A
justificativa é que, ao longo dos últimos governos, “a autonomia do Banco Central
foi corroída na prática". Para recuperá-la, o ajuste seria simples. Em vez
de se ter diretores sem mandatos fixos, como hoje, ela propõe que os mandatos
sejam definidos por lei. Em vez de diretores demissíveis por ato presidencial,
como hoje, propõe diretores que somente sejam substituídos ou demitidos com
autorização do Congresso. Eles continuariam
a ser nomeados pelo presidente da República e sabatinados pelo Senado, mas o
período de permanência no cargo não coincidiria com o do chefe do Executivo.
O economista Luiz Gonzaga
Belluzzo, crítico contumaz da ideia de “independência”, concorda com essa
mudança, desde que as sabatinas realizadas pelo Senado sejam levadas a sério:
“Hoje elas são precárias, passa todo mundo”. Para ele, o BC somente terá
autonomia de verdade quando deixar de incluir apenas dirigentes oriundos de
instituições financeiras privadas em seus quadros.
Outros economistas acham que os
mandatos fixos dariam aos diretores do BC um poder excessivo, fora do controle
da sociedade.
Em suma, discussão sem fim.
Nossa experiência governamental
recente é rica de ensinamentos, mas nem sempre é levada em conta na discussão
eleitoral.
O próprio Lula, secundado por
José Dirceu, garantiu em 2002 que daria autonomia ao BC. Com Henrique Meirelles
à frente do BC (2003-2010), houve autonomia de fato, promovida e garantida Presidente
e combatida por parte da bancada petista no Congresso. Com Dilma, e Tombini no
BC, o governo interveio mais na política de juros, buscando ajustá-la à sua
“contabilidade criativa”.
Relações de intimidade e
colaboração entre bancos e governos são corriqueiras na vida atual. Lula sempre
repetiu que os bancos nunca ganharam tanto dinheiro como nos governos do PT.
Não é por acaso que os bancos privados contribuíram com R$ 9,5 milhões para a
campanha de Dilma mas não deram mais do que R$ 4,5 milhões para a de Marina.
FHC, que é pintado de neoliberal fervoroso,
não cogitou da autonomia do BC, que passou a ser praticada com Palocci e o
primeiro governo Lula.
A discussão atual, portanto,
nada acrescenta de novo e não de fato a nossa estrutura de gestão econômico-financeira.
Para concluir
Fico, aqui, com a posição de
Belluzzo, que numa entrevista concedida em 2006, observou: “Temos que discutir
a sério a independência do Banco Central. Ela significa que o Banco tem
autonomia para decidir os instrumentos que vai usar, a forma como ele vai
operar a política monetária, mas ele não pode ter autonomia, por exemplo, em
relação à meta de inflação. O que planeja não pode ser o mesmo que executa. Nos
Estados Unidos, o presidente do Banco Central tem que prestar contas ao
Congresso. A quem ele presta contas aqui? A ninguém. O Banco Central brasileiro
tem uma independência de fato”.
O importante é que se tenha
coordenação, metas claras e comando coeso na área econômica. No Brasil, o
mercado financeiro é quase sagrado. Não se mexe com ele. Ninguém tem poder para
contestar ou discutir taxas de juros. O
BC é tão especial no Brasil que é quase como se fosse um poder paralelo.
Falar em autonomia do BC hoje é
reconhecer uma situação de fato. E é, também, pensar em formas de melhorar essa
autonomia. Pode ser um erro, mas não é um crime de lesa-pátria, nem uma
proposta para prejudicar a população.
A discussão de superfície,
hoje, é chapada demais, sem nuances e sem qualquer rigor. O esforço maior é
para que haja desentendimento, não entendimento. Somente serve para criar na população
atitudes defensivas e ignorância.
A economia é tão
importante e tão complexa que políticos responsáveis jamais deveriam embalá-la
em frascos de boçalidade para ser injetada na veia da sociedade.
3 comentários:
Prof concordo com vc que seu texto servirá de guia pra os eleitores q tem pouco tempo p estudos e estao se informando e tb para estudiosos que gostam do tema embora seja complexo. É sp bom uma leituea de um intelectual. Quanto ao desentendimento professor, acho necessário não para criar os ruídos no sentido q o sr colocou, mas para criar dissenso e criação de novos consensos, tb necessários. Tipo na vertente do Jacques Ranciere. Abs. Obgda. Sp gosto de ler o que você escreve.
Ótimo primeiro texto. Divulguei em minha página no facebook,
Ótima primeira leitura. Divulguei em minha página no facebook, Obrigado.
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