Desde 1994, as eleições
presidenciais no Brasil têm sido disputadas por partidos de centro-esquerda e
privilegiado a política econômica e a política social. Houve mais convergências
que divergências em relação à primeira. A inflexão dos governos FHC se fez em
nome da estabilidade, do ajuste fiscal e do combate à inflação, e foi mantida
pelos governos Lula-Dilma, que assim puderam apostar em políticas de emprego,
na valorização do salário mínimo e na busca de crescimento. Os dois ciclos se
interpenetraram.
Na política social, o período
Lula-Dilma investiu no aumento do poder de compra dos salários e da renda da
parte mais pobre da população, incrementando também o Bolsa-Família. A
orientação posta em prática turvou um pouco a racionalidade estatal, expôs a economia
à inflação, beneficiou excessivamente os bancos e o mercado, mas teve efeitos positivos.
O País melhorou, mas o investimento não trouxe consigo avanços na educação, na
saúde, na previdência. A infraestrutura estagnou.
Nas eleições de 2014, as
circunstâncias mudaram. Mas o embate continua a se dar entre formas esmaecidas
de esquerda. Os democratas batem-se consigo próprios. Não há um partido
capitalista disputando votos com um partido socialista, rótulos à parte. Nem
sequer o PT ocupa lugar claro à esquerda, depois das reviravoltas que afetaram
seu pensamento e sua conduta. Não mais se apresenta como partido, somente como
governo. O PSDB continua tão socialdemocrata quanto antes, o que não quer dizer
muita coisa, dado o permanente desinteresse do partido em esclarecer o real
significado de sua sigla. E Marina Silva, incorporada ao PSB, ainda está
procurando definir tanto a substância das novidades que propõe quanto a
filiação delas.
A contraposição
esquerda-direita, hoje, no Brasil, indica no máximo uma posição espacial. Tanto
quanto a polarização anterior – PT vs. PSDB –, os choques atuais reduzem-se a um
sistema de vetos cruzados, alimentado por muitos interesses, muitos adjetivos e
pouca substância. A perda de potência da díade esquerda-direita sugere a
abertura de outro ciclo no País, no qual as ideias políticas ganharão nova
vida.
Em que pese isso, há um salto
de qualidade. Em 2014, estão sendo discutidos temas caros à democracia: sustentabilidade,
distribuição de renda, igualdade, direitos sociais e participação popular. Por
baixo das escaramuças eleitorais e das baixarias de campanha, corre um rio mais
sereno, cujas águas acumulam fatos e consensos importantes. Ele flui nas profundezas
do subterrâneo, não consegue ser processado pela sociedade, mas vai assim mesmo
deixando marcas por onde passa, organizando o futuro. Pode ser condensado em um
pequeno conjunto de pontos.
1. Uma ideia nova de política
tornou-se imperativa na vida brasileira, seja derivada de uma “reforma
política” ou de uma “nova política”. A sociedade não aceita mais o modo como os
políticos atuam. Há um amplo consenso contra a falta de transparência, o
excesso de chantagem e a mixórdia de interesses que condicionam as relações
entre governos e partidos.
2. Um bom sistema partidário é
decisivo na democracia representativa. Nenhum Presidente governa sem partidos.
Os tempos exigem, porém, partidos mais qualificados, que coordenem e eduquem
seus integrantes, selecionem com critério seus quadros e interajam com as
características, os valores e as demandas do atual modo de vida.
3. A participação popular na
política energiza e oxigena a democracia representativa. Aumentar os espaços
para que se ouça a população e suas organizações ajuda a que se ajuste a
democracia aos tempos atuais, ampliando o controle social sobre o poder.
4. Um Presidente é eleito para
governar o país inteiro, sem exclusões. Suas escolhas terão de ser devidamente
processadas pelo sistema político e na sociedade. Seu maior dom deve ser a
capacidade de convencer, negociar e contemporizar, sem temer confrontos ou
recuos. Seu papel não é o do executor, mas o do estadista, do “fundador de
novos Estados”.
5. É preciso dar dignidade,
condições de igualdade, direitos, educação e saúde às enormes parcelas da
população que vivem na miséria e na pobreza. Pensá-las como cidadãos de um
Estado democrático e como consumidores, base de um mercado interno que sustente
a economia.
6. As “minorias” étnicas, de
gênero, etárias, religiosas devem ser tratadas sem paternalismo, em nome do
respeito à sua integridade, à sua dignidade, a seus direitos e às suas
reivindicações. Quanto mais se avançar neste terreno, mais chances a sociedade
terá de enveredar por uma trilha de bem-estar e justiça social.
7. Uma economia centrada na
exploração infrene, no consumismo e na superacumulação mata o futuro. A
sustentabilidade, o respeito às gentes, ao trabalho e à natureza, o cuidado no
trato com a experimentação transgênica e genética, o esforço para reduzir a
poluição e a dependência ao automóvel precisam ser objeto de ações pontuais e
permanentes.
8. A economia globalizada e
financeirizada não está em bancarrota e sufoca os governos. De tripé em tripé,
os programas econômicos dos diferentes partidos seguem pouco se diferenciando
entre si. Os mantras dos economistas – superávit primário, independência do
Banco Central, câmbio flutuante, juros altos, pleno emprego, ajuste fiscal –
funcionam como cataplasmas para dores localizadas: não mudam o sistema. A luta
política no terreno da economia não deveria ser essencializada, a não ser que
fosse para pôr em xeque os grandes interesses e os “poderes fortes”, fáticos, o
que nunca é feito.
Estes pontos estiveram
embutidos nas campanhas dos candidatos principais. Não vieram à tona com força.
Não conseguiram ser, portanto, traduzidos politicamente. Tivessem sido,
teríamos um mapa para a recomposição de forças de que necessitará o País a
partir de 2015. Dá para esperar algo diferente no segundo turno? [Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/9/2014, p. A2].
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