A figura
do Presidente da República, no Brasil e muito provavelmente nos demais países
com regimes presidencialistas, tem forte marca decisionista.
O
decisionismo, de modo geral, está associado ao nome do jurista alemão Carl Schimitt
(1888-1985), que supunha que a decisão absoluta, categórica e imperativa
deveria se superpor à ordem, para garanti-la, especialmente em épocas de crise.
Não poderia, portanto, haver vacilação na tomada de decisões, que seriam sempre
“arbitrárias”, já que derivadas de um ato de vontade, a partir do qual o caos
cederia lugar à ordem. A vontade do soberano não seria necessariamente a de um
indivíduo (Schmitt fala também em “vontade institucional”), mas estaria sempre
revestida de primazia. Pensada em termos de Estado, funcionaria como uma
espécie de cimento, que unificaria e soldaria as diferentes partes e
instituições envolvidas na dinâmica política.
Schmitt
não foi um teórico democrático. Flertou abertamente com o nazismo. Sua teoria,
mesmo assim, permaneceu como referência para muitas discussões sobre o processo
da decisão política. Foi sendo combatida pelos teóricos e pelos partidos
democráticos, que alargaram o campo do problema. O decisionismo sobreviveu, assim,
como algo a ser questionado, mais uma vertente problemática que uma fonte de
inspiração.
Ecos de
decisionismo, em um sentido não propriamente schmittiano, sempre ocuparam lugar
no presidencialismo, de modo a engrandecer e a reforçar a autoridade do
Presidente, peça-chave do regime.
Espera-se
que um Presidente não erre, não vacile e não volte atrás. Ele não faz
autocrítica, não reconhece erros ou fracassos e jamais deve dizer que mudou de
opinião. Trata-se não propriamente de um estadista, mas de um demiurgo, uma
entidade que os antigos gnósticos entendiam como tendo a arrogância típica dos
que se acham onipotentes e a cuja vontade todos deveriam se curvar. Alguém que não pode vergar, que não se abaixa
para ninguém, sequer para o povo. Que deve surgir sempre com ar confiante, um
sorriso nos lábios e o olhar firme focado no infinito. Sempre que possível deve
ter graça e bom humor. E não tem o direito de ser espontâneo. Não pode chorar,
se emocionar em excesso ou ficar deprimido.
No
Brasil, país de tradições presidencialistas deformadas e cultura democrática de
má qualidade, a narrativa dominante inclui ainda o paternalismo. Presidente bom
é o presidente que cuida da gente, nos ajuda e protege, olha pelos “mais
fracos”. A ele se costuma associar tudo aquilo que faz o povo viver melhor,
como se o Presidente fosse o responsável imediato por todas as coisas
indispensáveis: arrumar empréstimo no banco, melhorar a quantidade de arroz e
feijão, conseguir emprego, ganhar dinheiro e educar os filhos, dentre outras.
Em tese, as pessoas não acham ruim que, para tudo isso fazer, o presidente ceda
alguns anéis aos ricos: o importante é que ele ajude os pobres. Na cabeça dos
brasileiros mais velhos, repousa a imagem fabricada do Getúlio “pai dos pobres
e mãe dos ricos”.
Com
este personagem dominando o imaginário brasileiro, é inevitável que muita gente
se impressione negativamente com os vaivéns de Marina. Dizem que eles
demonstram inconsistência e fragilidade, o que não combina com a figura de um Presidente.
Os recuos no programa da candidata, o bate-cabeças entre seus assessores e a
campanha de difamação que circula pelas redes contribuíram para isso. Marina se
fez de vítima, chorou e mostrou indignação. Mesmo que estivesse carregada de
razões para assim reagir, teve seu gesto usado para que se dissesse que ela não
tem preparo emocional para exercer o cargo máximo da República.
Aquilo
que deveria ser elogiado e visto como virtude – sua sensibilidade e sua
capacidade de reformular posições –, foi interpretado ao reverso, como vício e
fraqueza.
Um Presidente
democrático é um cidadão como outro qualquer. Deveria ter as mesmas dúvidas e
cometer os mesmos erros que qualquer cidadão democrático. Precisa evidentemente
obedecer ao que se costuma chamar de “liturgia do cargo” (as obrigações
formais, que impõem certos ritos e comportamentos), mas deveria poder levar uma
vida normal. Não é o que acontece, e Presidentes são sempre vistos como figuras
inacessíveis, cercadas de seguranças, reclusas em palácios e salas fechadas.
Quando vão a público, é somente para comunicar algo ou interagir com
finalidades políticas e eleitorais. Deixam assim de ter vida privada, ou a ter
vida privada exclusivamente para que ela turbine e suavize (humanize) a vida
pública.
Alguém
é Presidente porque tem poder e mais capacidade de coordenar e tomar decisões.
Espera-se que tenha, porém, mais liderança que autoridade, exerça mais o
diálogo que o comando. Não se trata de um de um duce ou de um fuhrer. Ser
líder significa entusiasmar e dar sentido aos liderados, não simplesmente “comandá-los”.
Não significa decidir a jato, sem reflexão, sem o devido processamento das
dúvidas e sem a incorporação de sugestões e correções vindas de grupos,
interesses e organizações da sociedade. Exclui a ideia de um Presidente que deva
sempre seguir em frente, inflexível, como se tivesse um mapa que ninguém mais
conhece, indiferente às opiniões das pessoas que o cercam ou com quem interage.
Sem bom senso e ductilidade, nenhum Presidente poderá se arvorar a condição de
democrata. Será um tecnocrata, um populista, um ditador ou simplesmente um
chefe.
O
“comando” que se espera de um líder democrático assemelha-se àquele “comando do
maestro” de que falou Gramsci nos Cadernos
do cárcere: “acordo prévio alcançado, colaboração, o comando como uma
função distinta, não hierarquicamente imposta”.
Quando
Marina desmente a si própria ou a seus assessores, quando reformula itens ou
passagens de seu programa de governo, quando envia mensagens conflitantes ao
público, ela não está reforçando a figura institucional do Presidente. Deve ser
criticada por isso, mas não por ter “mudado de opinião” ou por ser “fraca”.
A crítica
faz sentido se for direcionada não a uma eventual inconsistência, mas sim a uma
postura de conveniência. A atitude tem a ver não com a estrutura do programa, com
as ideias que estão nele alinhavadas ou com as convicções da candidata, mas sim
com o efeito que ela pretende obter junto ao público e com o modo como serão
traduzidas e processadas.
Em
suma, pode-se criticar Marina por ceder a certos apelos publicitários para
vender sua candidatura e por demonstrar que mesmo numa pessoa como ela – avessa
a artificialismos e zelosa de sua autodeterminação – a política se subsume ao
marketing, este personagem inevitável da política atual. Diante dele, o político
pode se entregar por completo (como faz Dilma, por exemplo) ou pode tentar
manter a autonomia e os princípios básicos de pensamento e conduta, como é o
caso de Marina. Mas ninguém consegue, a rigor, afastar por completo a busca de
efeitos mercadológicos.
Todos
os candidatos, sem exceção, uns mais outros menos, são “fabricados”. Cada um
deles encarna uma maneira de aparecer no supermercado político, cabendo aos
eleitores determinar – sem informações confiáveis – qual marca é melhor, qual
“embalagem” seduz mais. Da “esquerda coerente” de Luciana Genro ao “privatismo”
compulsivo do pastor, tudo é rótulo e prato pronto. Na ausência de propostas
claras e ideias políticas, trabalham para que as escolhas eleitorais terminem
sendo feitas por emoção, ou por impulso. Como no mercadinho da esquina.
Um Presidente
não pode mostrar fraqueza ou dúvidas paralisantes. Mas sua força não está na
demonstração de que não tem dilemas e não volta atrás, de que suas decisões são
as únicas certas ou de que ele sempre sabe o que é melhor. Sua força está na
capacidade de ouvir e dialogar mais, refletir mais e processar as múltiplas e
conflituosas opiniões da sociedade. E a partir disso e na velocidade que for
possível e necessária, decidir com os olhos no interesse das maiorias.
De
resto, Presidentes não decidem sozinho. Precisam levar em consideração as
circunstâncias políticas e institucionais em que atuam. Suas decisões são
sempre – invariavelmente – tomadas em um circuito ampliado. No presidencialismo,
por exemplo, passam pelo Congresso, pela composição das bancadas partidárias e
pelo equilíbrio de forças entre elas, pelos humores e protagonistas da
sociedade civil. Nenhum Presidente gosta de ver uma sua proposta ser derrotada
em plenário. Juntamente com suas assessorias, procuram estimar margens de risco
e probabilidades de que isso ocorra. A partir dessas estimativas, buscam
persuadir opositores, consolidar apoios e esclarecer pontos controversos ou
obscuros e levar em conta as opiniões dos parlamentares. Esta é a alma do
governo representativo, e nenhum Presidente pode dela se dissociar, sob pena de
perecer ou fracassar. O modo como organiza sua própria agenda de propostas –
mais radicais ou menos, mais oportunas ou menos, mais consensuais ou menos –
joga um peso importante na obtenção dos apoios necessários para seu sucesso.
Um
Presidente, assim, tem na persuasão, no planejamento e na capacidade de
negociação sua principal ferramenta de trabalho. O magnetismo pessoal, a
competência discursiva, o prestígio, o carisma, a simpatia e o domínio de
certas “habilidades de salão”, por exemplo, o ajudam sobremaneira, ainda que
não sejam sempre determinantes e suficientes.
A posse de visão estratégica e situacional importa igualmente, pois será
ela a determinar a capacidade presidencial de compreender os demais atores com
que interage, o timing das decisões, o substrato do que está em discussão.
Seja
como for, o exercício da Presidência se faz em um sistema de trocas, de
barganhas, de negociações permanentes. Presidentes, neste sentido, não decidem,
mas coordenam processos de tomada de decisões.
Se Dilma e Aécio exploram os atributos do Presidente mais energético, Marina
tem a seu favor a imagem da ductilidade, da disposição para negociar e da
capacidade de reformulação. Corre o risco, porém, de deixar esta imagem ser
ofuscada pelos ataques que recebe e pela sucessão de desmentidos e
reformulações programáticas que terminou por fazer. Se no médio prazo conseguir elaborá-la e
traduzi-la adequadamente, poderá
contribuir para que passemos a cultivar uma narrativa mais equilibrada da
figura presidencial.
2 comentários:
Caro Professor. O jovem Beccaria também vislumbrou alguns desses problemas que tão magistralmente conseguiu aqui sintetizar.
E que nos entristece pelo potencial de atraso que engendram no desenvolvimento de nossa sociedade civil, refém/cética de atores que não se pejam de mostrar que "(...) esses monstruosos exemplos não são raros; eis porque tanta gente só vê na sociedade política uma máquina complicada, na qual os mais hábeis ou os mais poderosos governam as molas ao seu capricho.(...)".
Obrigado. Muito boa a citação. Abraço
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