sexta-feira, 4 de julho de 2014

O futebol como metáfora


Candido Portinari, Futebol, 1955

Todo mundo conhece aquele clichê de que o futebol imita a vida.  Uma partida segue de perto a vida, com seus dramas, dualidades e emoções. Cada vez mais, o futebol é uma grande economia, que enriquece alguns e leva muitos à miséria. Espelha a grandeza e a pequenez dos humanos, tanto dos jogadores quanto dos torcedores, que muitas vezes são projetados no horizonte complicado da passionalidade extrema. É uma manifestação sociocultural enraizada nas características e no modo de ser, pensar, viver e sentir de um povo.
Entre cidadãos e jogadores existem muito mais nexos e laços do que aqueles da identificação imediata com um clube. O futebol expressa a loucura da vida e o acaso, as tensões entre organização coletiva e individualidade, os momentos de euforia e depressão, o narcisismo de uns e a timidez de outros, os conflitos entre a ambição desmedida, o respeito aos adversários e as regras éticas e legais que regulam o jogo e a vida. Ser mais ousado ou ter mais segurança e garantir o que já se conquistou -- ser mais ofensivo ou mais defensivo -- são estados que convivem e se negam dentro e fora do campo.
Ter de lidar com o fracasso e a glória, as conquistas e derrotas, a fama e o dinheiro é algo que une atletas e torcedores. Assim também com o “Imponderável de Almeida” inventado por Nelson Rodrigues, tão decisivo na vida e no campo, sempre à espreita, a possibilitar que o mais fraco vença o mais forte.
Pois bem. Se o futebol é de fato uma metáfora da vida, daria então pra pensar que a atual seleção brasileira é uma metáfora da sociedade brasileira?
Creio que sim.
Ela tem a cara de um país que se encontra, hoje, mais próximo do sucesso social, que avançou e melhorou em todos os aspectos. Mas o país não é um conjunto bem integrado e suas diferentes partes não funcionam no mesmo ritmo e tom. Não tem meio de campo: falta-lhe coordenação, clareza tática, projeto, um estadista para articular o povo e as classes. A improvisação e o amadorismo continuam a ser regra, às vezes até mesmo motivo de orgulho nacional, sinônimo de engenho e criatividade. Há muita resistência à mudança, e não só do técnico da seleção.
Em compensação, no campo e na vida, sobra energia e disposição para o trabalho. Há alegria sobrando e muitos talentos individuais. Todos riem, choram, se emocionam, acreditam piamente que Deus é brasileiro e que o destino está em Suas mãos, aprenderam a cantar o hino e vivem com a expectativa de que o futuro tudo permitirá.
A seleção e o país são meio isolados. O futebol brasileiro ainda vive tomado pela cultura da autossuficiência. É verdade que, graças à globalização e à transformação do esporte em um grande negócio internacional, as diferenças entre as escolas diminuíram e os brasileiros copiaram o estilo mais físico e pragmático dos europeus, abrindo mão do tal “futebol-arte”. Mas continuam a não gostar de aprender com os outros. Debocham das demais escolas, seguem contaminados pela arrogância e pela vontade de ser diferentes. Não buscam inspiração nem na comunidade europeia, nem na integração latino-americana, não se veem como sendo parte de nada. Acreditam que o brasileiro é uma matriz que forja tudo e pode, por isso, desprezar o que existe fora dele. Com isso, deixam de incorporar coisas boas e de inovar e se renovar com maior rapidez.
O país e a seleção, além do mais, desaprenderam de apreciar a política. Passaram a pensar que ela é coisa de corruptos e picaretas. No futebol, a política é lixo puro: clubes desorganizados, calendários equivocados, dirigentes medíocres e oportunistas, roubalheira aberta. Na vida, a política tem oferecido muito pouco: acima de tudo, não oferece uma perspectiva e um critério para que se processem as diferenças, as opiniões, os interesses, os problemas. Não é resolutiva e nem educativa.
Fiel à metáfora do futebol, a sociedade assiste a embates políticos e participa do debate público como se tudo fosse um interminável Fla x Flu.

Um comentário:

Júlio Andrade disse...

Olá prof Marcos,
precisa sua análise. Em especial o que toca o debate político (reduzido ao embate partidário, que é muito diferente do debate político).
Além disso, o futebol carrega em si as contradições e paradoxos de nossa sociedade.
Escrevo este comentário no inicio do jogo da Seleção. Reparo na emoção de todos: jogadores, torcedores, organizadores.
E um momento se apresenta de modo bem "paradoxal": a campanha da FIFA contra o racismo. Várias falas institucionais, o capitão de cada equipe faz um discurso, e a câmera panorâmica percorre a platéia ... não se vê qualquer negro ou índio ...contradições à parte, hoje mais importante do que "ser" é "parecer ser", enfim ... GOOOOOOL do Brasil!

Abs, Júlio Andrade